Nascido e criado numa aldeia rural, em que os animais serviam todos para a manutenção da casa, cada qual segundo a sua espécie, por isso se chamavam animais domésticos, nunca conheci qualquer cabeça de gado que pudesse considerar-se animal de estimação: criados segundo a função e o destino próprio de cada um, procurávamos que não fossem nunca substituto de pessoas, para compensação de afectividades mal orientadas ou descargo de fúrias sem contenção.
A “humanidade” com que aprendi, prática e teoricamente, a tratar os animais domésticos, encerrava-se entre o não esquecer a sua natureza, com a provisão do necessário para a sua utilidade, e o evitar maus tratos escusados.
Não havia animais de estimação; mas havia casos e momentos em que através deles se diminuía, ás vezes se diluía mesmo, o que nos separava da natureza selvagem e inanimada.
Passo adiante pormenores inúteis, para dizer que isto explica o tempo que demorei a entender o episódio da mulher cananeia que, enquanto Jesus atravessa a Samaria, vem ao seu encontro, pedindo compaixão para a filha, atormentada pelo demónio.
«Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio».
«Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos»
De facto, o cão era o animal doméstico cuja imagem na minha mente, mais se aproximava desse mundo selvagem humanizado pela domesticação. E o cachorrinho evocava todo um mundo de ternuras descomprometidas, mas preciosas, da infância campesina.
Vieram mais tarde as explicações referentes ao facto de o cão, na cultura hebraica, ser um animal impuro, e os povos dominados pelas tribos descidas do deserto se designarem por Cananeus. E fui percebendo que Jesus, como acontecia muitas vezes, provando a fé das pessoas antes de lhes conceder o que pediam, lançava um especialíssimo desafio àquela mãe aflita.
Continuei, no entanto, a pensar que este episódio, tão pormenorizado em São Mateus, assim centrado na aparente dureza das palavras de Jesus à Cananeia, tem de ser analisado de forma mais global.
Após uma discussão com os guardiões da Lei, apontando o vazio de prescrições puramente humanas, que pretendiam basear-se nela, “Jesus retirou-Se para os lados de Tiro e Sidónia. Então, uma mulher cananeia, vinda daqueles arredores, começou a gritar: «Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio». Mas Jesus não lhe respondeu uma palavra. Os discípulos aproximaram-se e pediram-Lhe: «Atende-a, porque ela vem a gritar atrás de nós». Jesus respondeu: «Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel». Mas a mulher veio prostrar-se diante d’Ele, dizendo: «Socorre-me, Senhor». Ele respondeu: «Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos»”.
Invocado como Filho de David e como tal seguido e abordado pelos discípulos, Jesus quer certamente que todos vejam onde pararia o socorro prestado àquela pobre mulher, se ele se mantivesse dentro das fronteiras do étnico e consuetudinário que, por vários motivos, incluído o geográfico, parece ser o da própria mulher.
Choca a nossa sensibilidade aquele «Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos», e temos todas as razões para pensar que isto quer exactamente Jesus: é chegado o tempo de começar a ver n’Ele mais do que um qualquer hebreu, profeta taumaturgo, o que não se consegue senão pela fé.
Aquela mãe aflita, entre muitas outras coisas, torna claros dois pontos fundamentais da nossa existência: Jesus Cristo é um mistério ao qual não se chega senão pela fé; por isso tantos dos que hoje, tal como a maioria dos seus contemporâneos, conhecem, em pormenor a sua identidade étnica e civil, não passam disso.
Sem fé não se chega lá; e a autenticidade desta fé mede-se, como no caso da cananeia, pela humilde coragem com que se aceitam os caminhos de Deus, por irracionais e chocantes que nos pareçam.
“Ela insistiu: «É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos». Então Jesus respondeu-lhe: «Mulher, é grande a tua fé. Faça-se como desejas». E, a partir daquele momento, a sua filha ficou curada”.
Como um cachorrinho, no ambiente cultural em que fui criado, não estava isento de ternura; mas Jesus insiste: “Faça-se como desejas”!
Estar aos seus pés, no seu regaço, como um cachorrinho, é mais, muito mais do que estar parado, em iniciativas, contentando-se com os seus carinhos.
Faça-se como desejas: o que desejo a partir da fé que me lança assim a seus pés e me impulsiona a procurar a cada momento o que lhe agrada: como todas pessoas figuradas nesta mãe aflita, que certamente não se fechou na alegria, perfeitamente legítima, mas a reclamar expansão solidária, de ver a filha curada.
Como um cachorrinho. Que encanto, Senhor!