Manhã cedo, temperaturas outonais, vento e chuva proibindo qualquer veleidade de sair em higiénico passeio matinal. O meu conforto é, porém, irritantemente sobressaltado com permanentes cortes na corrente eléctrica, que me deixam na escuridão de um deserto onde o vaivém das trevas e da luz, até a vontade de rezar me tira.
De repente vem-me à lembrança aquela frase, dita em surdina, como quem se dirige a um interlocutor invisível; essa frase que ouvi dezenas, se não centenas de vezes a minha mãe, quando, nos seus breves trabalhos de costura, se lhe enrolavam as linhas: eu espantava-me que ela, em vez de cortar o mal pela raiz, rebentando a linha, como me apetecia fazer, ela tentava pacientemente desfazer o nó, dizendo: coisas do Mafarrico! Mas agora não levas nada… e continuava até conseguir o seu objectivo.
Coisas do Mafarrico!
Alguns diriam que era pura superstição: o Mafarrico, eufemismo, em vez de Diabo, vinha lá agora embrulhar as linhas!
Não sei se era isso mesmo que pensava aquela que foi para mim a primeira e mais adequada catequista que tive em toda a minha vida; mas sei que ele – o Diabo – não selecciona as ocasiões, e a melhor maneira de não cometer erros será tomar como sugestão sua, tudo quanto, seja em que ocasião for, tudo quanto pensemos, digamos ou façamos que não possa entrar num diálogo íntimo com Deus, mesmo que para Lhe manifestar a nossa estranheza, segundo o que lemos no livro de Job.
Aliás, talvez seja também tempo de corrigirmos a perversão contida na frase com que nos referimos muitas vezes à “paciência de Job”.
Por mim, se não andassem já perdidas num mar de confusão, criado precisamente por quem devia cuidar de modo especial a língua comum, diria que a figura de Job nos oferece um bom exemplo de resiliência.
Voltando ao embrulhar das linhas com que minha mãe pregava um botão ou remendava um fato roto, é evidente que não precisamos de recorrer a algum poder sobrenatural para explicá-lo; mas o modo como se reage perante isso, qualquer explicação puramente natural peca, pelo menos, por falta de coerência.
Jesus, no deserto, durante quarenta dias, no fim, sentiu fome, dizem Mateus e Lucas (Cfr Mt 4, 1-11; Mc 1, 12-13; Lc 4, 1-13); sentiu fome, porque não tinha comido; nada mais natural, como o cansaço e a sede junto do poço de Jacob, porque tinha caminhado durante o dia, pelo calor (Cfr Jo 4, 1-13); nunca ninguém se lembrou de dizer que esse cansaço e essa sede, foram uma tentação, porque, de facto, dizemos nós muitas vezes, em vários contextos, sentir não é pecar.
Óbvio, dir-se-á.
Claro, muito claro mesmo, no caso de Jesus, que, como diz São Paulo, é em tudo igual a nós, excepto no pecado: “Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, n’Ele, justiça de Deus” (2 Cor 5, 21).
Mas, ocorre perguntar: que diferença há entre o sentir fome no deserto, após quarenta dias de jejum, e sentir sede, após um dia de caminhada, pela força do calor?
Afinal, a fome e a sede, como tais, seja qual for a sua origem, só se tornam tentação e hipotéticos pecados, na medida em que cedemos a alguma pressão vinda do exterior: à partida, como algo de natural, serão uma prova, uma oportunidade de crescer na fé e no amor de Deus e dos homens, como acontece com Jesus, que não é apenas modelo, mas redentor; e a Sua vitória sobre o Tentador, vem remir, não as nossas sedes e fomes, o que , no meio delas, aceitamos, ainda que muito ao de leve, soluções desviacionistas, redutores da nossa fidelidade à condição de discípulos.
Santo Agostinho cuja análise do que na tentação pode ou não ser pecado, atinge uma profundidade sem rival (Cfr “De Sermone Domini in Monte”, II. 9, 30-32), a certa altura, em polémica com os hereges, que rejeitavam o Antigo Testamento, por nele se dizer que Deus teria tentado A, B, ou C, o que lhes parecia absurdo, dizia, depois de explicar a dupla tradução latina – “ne inducas” e “ne ínferas” -, possível do único termo grego “me eisenenkes”, acrescenta:
“Portanto, aqui não se pede que não sejamos tentados, mas que não sejamos lançados na tentação; como alguém que precisa de ser provado pelo fogo, não pede que não seja tocado pelo fogo, mas que não seja por ele consumido”.
E cita os casos de José, tentado ao estupro, mas não lançado na tentação, Susana, tentada, mas não conduzida nem lançada na tentação, e muitos outros, de ambos os sexos, especialmente Job.
E termino, voltando ao princípio, agora que cessaram os cortes na corrente eléctrica, restituindo-me a possibilidade de continuar o meu trabalho matinal de reflexão e escrita, ainda que não à hora em que o faço habitualmente.
Cortes de energia eléctrica, ventos ciclónicos ameaçando a resistência de qualquer raiz, tempestades e fogos, destruindo mares e florestas, podem provocar tentações de muito tipo; e, se me não engano, a mais forte de todas será uma revolta interior, a maior parte das vezes, não dirigida contra um protagonista concreto.
E, quando nos damos conta do negativo dessa revolta, podemos e talvez devamos superá-la, com o pensamento correcto de que estamos a ceder ao tal Mafarrico.