A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) publicou uma carta pastoral dedicada ao Centenário das Aparições na Cova da Iria, com o título “Fátima, sinal de esperança para o nosso tempo”, que sublinha a importância deste aniversário.
Com data de 8 de dezembro, solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, o documento apresenta as aparições marianas de Fátima como “dom” e “bênção” para a Igreja e para o mundo, mas também como “interpelação” e “convite” ao anúncio profético, rumo à paz.
Ontem e hoje
“No centenário das aparições da Virgem Maria, em Fátima, desejamos dar graças a Deus por nos permitir viver este acontecimento, que nos enche de júbilo, e reafirmar a atualidade da sua mensagem para a revitalização da nossa fé e do nosso compromisso evangelizador.” Esta é a frase que abre a carta pastoral “Fátima, Sinal de Esperança para o Nosso Tempo”, aprovada na Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa, no passado dia 13 de dezembro. Uma frase que apresenta o motivo e resume todo o conteúdo do documento.
Os bispos portugueses começam por resumir a história das Aparições de 1917, antecedidas pelas do Anjo em 1916, tendo “três crianças entre os sete e os dez anos de idade, Lúcia, Francisco e Jacinta, como protagonistas” e num contexto “dramático” a nível nacional e internacional: “Portugal atravessava uma crise política, religiosa e social profunda e a Europa estava, como nunca antes na sua história, imersa numa guerra mundial, em que também o nosso país estava envolvido”. A mensagem transmitida era de “misericórdia e paz” e rapidamente se espalhou pela região e pelo País, levando ao local milhares de pessoas, “umas crentes, outras céticas”.
Foi o “sentido da fé” dos fiéis que primeiro credibilizou as Aparições como realidade divina e que de imediato transformou a Cova da Iria em local de peregrinação. Só em 1930, o Bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, publicaria a Carta Pastoral “A Providência Divina”, que declarava “como dignas de crédito as visões das três crianças” e permitia oficialmente o culto de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. E a multidão dos fiéis crentes estendeu-se a todo o mundo e não mais parou de aumentar.
“Em sintonia com a piedade do nosso povo e sob a iluminação do Espírito Santo, nós, os bispos, sentimos a responsabilidade de aprofundar o significado deste acontecimento, de destacar a sua atualidade para a nossa vida cristã e de explicitar as suas potencialidades para nutrir a nossa conversão espiritual, pastoral e missionária”, refere a carta pastoral agora publicada.
Bênção para a Igreja e para o mundo
São as Memórias de Lúcia que virão a revelar o que realmente se passou nas Aparições e que mensagem era essa que Nossa Senhora trazia, como “bênção” de Deus para a humanidade. “Essa bênção era a motivação de quanto estava a acontecer e permite-nos penetrar no núcleo da iniciativa de Deus que, na presença cheia de luz e de beleza da Virgem Maria, mostrava a sua proximidade misericordiosa, junto do seu povo peregrino”, concluem os bispos.
Foi uma bênção para aquele tempo concreto, “no meio de situações verdadeiramente dramáticas (…), quando a força do mal e do pecado parecia impor o seu domínio”, em que o “convite à conversão, à oração e à penitência” servia de chave para “desbloquear os obstáculos que impedem os seres humanos de experimentar uma bondade que procede de Deus e foi depositada no coração humano”.
Foi uma bênção para os portugueses de todos os tempos, que “encontraram no Santuário de Fátima, em volta da Capelinha e da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, (…) uma casa maternal, na qual se sentem acolhidos, compreendidos, consolados, perdoados, reconfortados e renovados”. Na verdade, “o Santuário de Fátima converteu-se no coração espiritual de Portugal, tornando-se um dos traços identificadores do nosso catolicismo, como um carisma da nossa Igreja em sintonia com o carisma dos três pastorinhos”, refere o documento, lembrando o constante movimento de consagração e peregrinação nacional, que “revitalizou a fé de muitos crentes cansados, suscitou a conversão de muitos corações endurecidos, reafirmou a pertença eclesial de muitos batizados desorientados, tornou possível que muitos indiferentes redescobrissem o Evangelho, suscitou uma religiosidade que plasmou a vida de grande parte do nosso povo”. E que tornou este santuário, hoje, “lugar de oração, mas também polo de dinamização cultural, centro eclesial de reflexão teológica”.
Foi uma bênção para a Igreja Universal, como espelha a ligação dos sucessivos Papas a Nossa Senhora do Rosário de Fátima, desde Pio XII e São João XXIII até aos três que vieram peregrinar à Cova da Iria (Beato Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI) e ao Papa Francisco, que virá celebrar connosco este Centenário em maio de 2017. Mas são muitos outros os sinais da massiva difusão da Mensagem de Fátima pelos cristãos de todo o planeta, como o acolhimento caloroso às imagens peregrinas que o percorrem desde 1947, as milhares de igrejas dedicadas a Nossa Senhora de Fátima, a celebração do 13 de maio e outras devoções ligadas a Fátima, os livros e jornais, os movimentos laicais e institutos religiosos…
Foi, por fim, uma bênção que “estendeu-se ao mundo inteiro como mensagem de esperança e fonte de paz”. Não só naquele início de século XX “conflituoso e trágico”, como ainda hoje, “quando vivemos, como diz o Papa Francisco, uma «terceira guerra combatida em episódios»”, esta mensagem “agita as nossas consciências para que reconheçamos a tarefa desta hora histórica: a tarefa de não nos deixarmos cair na indiferença diante de tanto sofrimento; de respeitarmos a memória de tantas vítimas inocentes; de não deixarmos que o nosso coração se torne insensível ao mal tantas vezes banalizado”.
Interpelação permanente
Mas esta é uma mensagem que continua a interpelar a Igreja e o mundo de hoje, em que “o confronto entre o bem e o mal que continua no coração de cada pessoa, nas relações sociais, no campo da política e da economia, no interior de cada país e à escala internacional”. Por isso, há que “corresponder ao chamamento de Deus, a combater o mal a partir do mais íntimo de si mesmo, a compreender o sentido da conversão e do sacrifício em favor dos outros”, defendem os bispos portugueses.
Em primeiro lugar, há que manter e renovar a “atitude adorante” que marcou a experiência das aparições e a vida dos Videntes. Uma “experiência íntima de Deus Trindade” como “Pessoa viva que está próxima das suas criaturas”, que foi para os Pastorinhos “fonte de profunda felicidade e alegria”. De modo diverso, conforme a sua sensibilidade e carisma, “deixam aflorar a sua experiência mística”: o Francisco pela contemplação, a Jacinta pela compaixão e a Lúcia pelo anúncio.
Depois, pela perceção de Maria como “ícone de ternura e de misericórdia” de Deus, especialmente revelada na devoção ao seu Coração Imaculado. Iniciada no “sim” ao mistério da Encarnação, “a sua missão maternal para com os homens perdura sem cessar na economia da graça”, refere a carta pastoral. “Deste modo, na Virgem Maria, no seu coração materno, transparece a vontade misericordiosa de um Deus Trindade que não é indiferente à situação das suas criaturas, que não abandona o pecador na sua culpa, que não esquece os desgraçados no seu sofrimento, que não ignora as vítimas e os excluídos, que sempre oferece o seu perdão e a sua consolação, que abre sempre a porta da esperança, quando os seres humanos se fecham no seu egoísmo ou na sua inconsciência”.
Em terceiro lugar, no assumir esta “mensagem profética” que é “convite à conversão e ao combate contra o mal”, o que torna Fátima na “mais profética das aparições modernas”, como diz Bento XVI. “De facto, denuncia as máscaras do mal, que provoca no mundo tanta dor injusta e atinge, por vezes, os membros da Igreja: por um lado, os mecanismos que conduzem à guerra, o ateísmo que quer apagar as pegadas de Deus neste mundo, os poderes económicos que não buscam mais que o seu próprio benefício à custa dos pobres e dos débeis, a perseguição contra a Igreja e contra os santos que se opõem aos ídolos criados pelos interesses humanos; por outro lado, a hipocrisia ou a infidelidade daqueles que, na Igreja, se deixam dominar pela apatia ou pelo espírito mundano: a comodidade, a corrupção ou a busca de poder”. Por isso, defendem os bispos, “a mensagem de Fátima é um veemente apelo à conversão e à penitência”.
Por fim, o convite à “identificação com Cristo” pelo sacrifício e reparação. «Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?» é a pergunta-chave feita aos Pastorinhos e aos cristãos de todos os tempos. Eles responderam com a oração e a convicção de que “a sua vocação era uma missão e que o dom recebido levava consigo a entrega da própria vida em favor dos outros”, o que exigia “a penitência, o sacrifício e a reparação”. Hoje, o desafio é “a não nos resignarmos diante da banalização do mal, a vencermos a ditadura da indiferença face ao sofrimento que nos cerca”, refere a carta pastoral, numa espiritualidade que se educa e alimenta na Eucaristia e na oração do Rosário.
Futuro da Igreja, de Portugal e do mundo
O último capítulo do documento aponta o sentido do título e revela a “pedagogia evangelizadora da espiritualidade de Fátima”. Numa “dupla dimensão mística e profética”, Fátima é apresentada como “farol e estímulo para a conversão pastoral da Igreja e critério e bússola a orientar o compromisso dos cristãos nos conflitos do nosso mundo”. A espiritualidade “que acompanha e sustém as peregrinações, purifica e eleva atitudes puramente naturais da religiosidade para as transformar em atitudes filiais”, revelando “como é insuficiente todo o projeto de autorredenção, que tanto seduz os nossos contemporâneos”. Escrevem os bispos: “O nosso Deus não é autoritário nem concorrente do ser humano, mas fonte de esperança e de humanização”.
É daqui que brota o seu “dinamismo evangelizador apoiado na piedade popular”, com especial manifestação nas peregrinações, em que “caminhar juntos, leva-nos a sair de nós próprios e a abrirmo-nos aos outros, escutando-os e partilhando a própria existência, com o espírito missionário e sinodal que se espera hoje da Igreja”, onde ganha relevo a atenção “aos mais frágeis e vulneráveis – as crianças, os doentes, os idosos, as pessoas com deficiência, os migrantes – que neste lugar e na sua proposta espiritual encontram hospitalidade, cuidado, rumo e energia”.
Por outro lado, “a mensagem de Fátima inspira a Igreja a encontrar e a aprofundar os traços do seu rosto mariano”, procurando “acolher com Maria e como ela a missão que procede de Deus, a seguir Jesus como discípula fiel e crente, a ser sensível às necessidades dos próximos e aos clamores dos distantes, a estar disposta a permanecer junto à cruz, a assumir o peso da incompreensão e da perseguição, a irradiar a glória e as primícias da ressurreição, a ser ‘hospital de campanha’ que sai ao encontro dos feridos e não ‘alfândega’ que fecha as portas”. No fundo, a ser “mãe dos batizados” e dos que “a veem de fora, qualquer que seja a distância a que se encontrem”.
Uma última missão é a do “anúncio profético da misericórdia e da paz”. Assim, “face às injustiças e a todos os fenómenos de exclusão, qualquer que seja a sua raiz”, o desafio é continuar o caminho apontado no recente Ano Santo da Misericórdia e “dar o primado à misericórdia, numa cultura contemporânea que a quer erradicar”. Nas palavras dos bispos portugueses, “fiéis ao carisma de Fátima, somos chamados a acolher o convite à promoção e defesa da paz entre os povos, denunciando e opondo-nos aos mecanismos perversos que enfrentam raças e nações: a arrogância racionalista e individualista, o egoísmo indiferente e subjetivista, a economia sem moral ou a política sem compaixão”.
“Fátima ergue-se como palavra profética de denúncia do mal e compromisso com o bem, na promoção da justiça e da paz, na valorização e respeito pela dignidade de cada ser humano”, conclui a carta pastoral. Pelo que, “a missão dos cristãos manifesta-se no esforço por tentar tudo fazer, para que o poder do mal seja detido e continuem a crescer as forças do bem”.
E fecha assim: “Na medida em que por ela se deixar habitar, a comunidade dos crentes pode oferecer ao mundo a Luz de Deus que preenche o Coração cheio de graça e misericórdia da Virgem Mãe, custódia da inabalável esperança no triunfo do amor sobre os dramas da história”.