O economista Bagão Félix foi o convidado para encerrar o ciclo “Escuta-me” deste ano pastoral, promovido pelo grupo Cáritas Jovem, da Diocese de Leiria-Fátima. A conferência, com o título “Ética e Economia”, juntou cerca de meia centena de pessoas, no passado dia 9 de junho, na aula magna do Seminário Diocesano de Leiria.
O orador, que já foi ministro das Finanças e também da Segurança Social e do Trabalho, bem como presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, começou por referir que “falar de ética é falar de coisas básicas do nosso dia a dia” e clarificar alguns conceitos essenciais à discussão, nomeadamente, em relação às duas palavras do tema. “Não poderão ser consideradas um oxímoro”, apontou, referindo-se à figura de estilo que junta na mesma expressão palavras contraditórias, como o “silêncio ensurdecedor”, o “ilustre desconhecido” ou o “contentamento descontente” celebrizado por Camões. Apesar de haver “exemplos brutais” que podem indicar o contrário, “economia e ética têm de ser amigas, não se podem opor” e não podem também ser “palavras estranhas” às pessoas, pois dizem respeito à vida concreta de todos os dias.
A economia “não é mais do que o governo da casa”, seja a de cada um, a de um país, ou a casa comum da humanidade, sintetizou, criticando que “cada vez mais a economia se tenha centrado no jogo das estimativas”, que poucos entendem e que a poucos interessa. Já a ética é a definição de um padrão de valores universais que leva à distinção entre o que é bom ou mau, o que é correto ou incorreto. “Não se pode confundir com moral, que é a distinção das noções fundamentais entre o bem e o mal” e que implica um julgamento mediado por fatores como a cultura, a religião ou as tradições.
Ética, economia, lei…
Parece simples, mas a verdade é que há muitos conceitos que se cruzam e que podem implicar visões diferentes do que é a ética e do respeito que por ela se tem na prática económica ou política. “A ética não se pode impor”, mas resulta de um consenso, e tem como “grande equação a pergunta se os fins justificam os meios”, como no caso da justificação de uma guerra que tenham como finalidade evitar um genocídio, mas implique matar pessoas no processo. Por norma, no campo ético, “os fins nunca justificam os meios”. No caso da economia, uma primeira questão é que as necessidades são sempre superiores aos recursos, isto é, “os fins excedem os meios”, pelo que a sua função é “arbitrar a decisão do uso dos recursos para satisfazer necessidades que, ainda assim, nunca são totalmente satisfeitas”.
Outros conceitos importantes neste jogo de palavra são os de “indivíduo”, “cidadão” e “pessoa”. Só a “pessoa” engloba o total da “alma, sensibilidade, carácter, deveres e direitos que tem cada um” e só nesse contexto se pode falar de uma dimensão ética. “No domínio do cidadão, apenas cumpro a lei, que pode nem ser ética; e mesmo cumprindo toda a lei posso não ser ético”, considerou Bagão Félix, apontando que “ética e lei não são coincidentes e o mais importante é a parte da ética que não está plasmada na lei”, pelo que “tem mais deveres a pessoa do que o cidadão”. E foi clarificando que “a ética não se estrutura em leis e nem tudo o que a lei permite nos deve ser imposto como ético”. Pelo contrário, “nenhuma lei obriga a ser bom, generoso, solidário”, pelo que “a consciência ética é mais exigente do que a lei”.
Conjuntos de valores e saberes
Mais conceitos surgem quando se tenta encontrar o conjunto de valores e saberes que determina a definição de ética. Valores como a relação direitos/deveres, a decência, o carácter, o respeito, a honradez, a coerência, a sensatez, a lealdade, a exatidão, etc. E saberes como o cognitivo, a compreensão, a experiência, o relacionamento, a adaptação, a partilha, o entendimento, a liderança, a motivação, o humor, a utopia, entre outros. É no “jogo” entre todos estes valores e saberes que surge a pergunta ética, cruzando-se, também, com a distinção entre o que é importante e urgente, sendo que “vivemos o primado do urgente e uma iliteracia do importante”, bem como uma “falsificação do urgente, que passou a ser emergente”, considerou o orador, levando a uma “nebulosa entre o requerido, o permitido e o proibido”.
Um outro conceito, ainda, é o da globalização que leva à diluição de barreiras e onde “tudo tem tendência para se uniformizar”. No entanto, “paradoxalmente, a globalização veio acentuar a nossa importância como pessoas”. Também aí, há a considerar que “os meios e técnicas são apenas meios, que não nos devem afastar do sentido da vida” e que “a diferença reside nas pessoas”. Propondo uma classificação “simplista”, o economista apontou quatro estereótipos, conforme as decisões que assumem: os inteligentes, cujas opções levam a que ganhem eles e todos os outros; os generosos, que perdem para outros ganharem, os malfeitores, que ganham quando todos perdem; e os estúpidos, cujas ações levam a que percam eles e todos os outros.
O dever ativo
Em jeito de conclusão, referiu que a verdadeira ética é o cumprimento do dever ativo, isto é, cumprir por si aquilo a que não está obrigado além da sua consciência. “Isso é que é a beleza da ética”, afirmou Bagão Félix, alertando ainda para a necessidade de se evitar a atual tentação do “politicamente correto, que retira as palavras do seu casco ético”. Nessa linha, há que não ter medo das palavras, como é o caso da “caridade” cristã, que é muito superior à “solidariedade” de base social.
Um dos exemplos de proposta deste “dever ativo” é o da Doutrina Social da Igreja, assente na dignidade da pessoa, na procura do bem comum, no destino universal dos bens e na opção preferencial pelos mais fracos. Isto e uma clara “noção do todo” poderão ser a resposta para uma verdadeira ligação entre economia e ética, tendo como objetivo uma sociedade mais justa: “poderá acontecer quando funcionarmos como uma orquestra, em que todos leem a mesma partitura e todos são importantes para o sucesso da obra”.
Há solução ética para a sociedade?
Logo no início, o moderador da sessão, padre Jorge Guarda, apontou alguns dos exemplos mais mediáticos em que a ética é posta em causa na atuação de pessoas ligadas à política e economia. No debate, foi retomada essa questão de se haverá uma solução para que a ética seja respeitada na vida social. Reconhecendo que não há “soluções mágicas”, Bagão Félix partiu da sua experiência de vida para indicar caminhos possíveis para uma sociedade mais justa e repetiu que só a “utopia” de cada pessoa assumir esse compromisso resolveria todos os problemas.
Ainda assim, a própria sociedade “tende a encontrar meios de aperfeiçoar e forçar esse compromisso, nomeadamente pela imposição de leis”. Nesse contexto, o orador considerou que “estamos no bom caminho, com a legislação a responder cada vez melhor aos desafios exigentes desta sociedade em constante evolução”.