Não posso esquecer o abalo interior que, há algumas décadas, poucos anos aos a aprovAção do documento charneira do Vaticano II – a “Lumen Gentium” – o abalo que me provocou a declaração solene daquele ilustre membro da hierarquia católica que, ao tomar posse da sua diocese, comentava o desabafo, talvez inconsequente, dos outros bispos e sacerdotes, desabafo que, mais palavras menos palavra, se repete hoje, ainda de forma mais ruidosa: temos cada vez menos vocações.
– Ele respondia: se a Igreja é a Esposa de Cristo, não podemos admitir que Ele a abandone. A falta de padres não pode nunca provir da falta de vocações.
Não tenho intenção de comentar, nem as palavras, nem os meios de que o ilustre bispo se serviu para dar seguimento prático ao que lhe inspirava esta doutrina, aliás, tão universalmente reconhecida, que só espanta como se traduz tão pouco em iniciativas verdadeiramente eficazes.
Apenas evoco o facto porque ele me veio mais suma vez à mente, quando lia o trecho de São Lucas que integra o leccionário ferial desta quarta-feira da vigésima quinta semana do Tempo Comum:
“Naquele tempo, Jesus chamou os doze Apóstolos e deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demónios e para curarem todas as doenças. Depois enviou-os a proclamar o reino de Deus e a curar os enfermos. E disse-lhes:
«Não leveis nada para o caminho: nem cajado, nem alforge, nem pão, nem dinheiro, e não leveis duas túnicas. Quando entrardes em alguma casa, ficai nela até partirdes dali. Se alguns não vos receberem, ao sair dessa cidade, sacudi o pó dos vossos pés, como testemunho contra eles».
Os Apóstolos partiram e foram de terra em terra a anunciar a boa nova e a realizar curas por toda a parte” (Lc 9, 1-6).
Li, reli, e reparei que se trata de um texto, autónomo, relativamente a passos paralelos – presentes nos três sinópticos, incluindo Lucas -, pois não fala de três coisas quase sempre nos vêm à mente quando lemos a narração do envio, quer dos Doze, quer dos “setenta e dois; este exclusivo do terceiro evangelho. Não se fala do tamanho da messe, a exiguidade dos trabalhadores, nem da oração para que sejam enviados mais.
Sabemos que a messe é um termo messiânico – João diz mesmo que ela está pronta para a ceifa (4, 35.38) -, em qualquer dos casos, muito presente no AT. Isso explicaria a ausência do termo, neste passo, que define a missão da Igreja – são os Doze, não a generalidade dos discípulos -, e o modo de a realizar.
Quanto à missão: “enviou-os a proclamar o reino de Deus e a curar os enfermos”.
É evidente que o “deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demónios e para curarem todas as doenças”, visto à luz da revelação bíblica, não pode ter o significado puramente literal que lhe dá quem não entende a historicidade dos textos sagrados. Talvez tenhamos oportunidade de, em breve, aprofundamos esta questão, quanto a mim, tão complexa como essencial, mau grado os silêncios e as deturpações a que está sujeita.
Aí se alimentam muitas das mais persistentes raízes dos nossos fracassos.
Fracassos que nascem também, segundo me parece, do esquecimento ou sistemática desvalorização do que está na essência do método indicado por Jesus aos Doze:
«Não leveis nada para o caminho: nem cajado, nem alforge, nem pão, nem dinheiro, e não leveis duas túnicas».
Não leveis nada para o caminho!
Nada, é mesmo nada daquilo que, por facilitar o caminho, pode conduzir tanto à secundarização do essencial, como tornar-nos réus da cedência ao tentador do deserto, que, diante do Messias, manipulando o poder que Lhe advém da sua condição de Filho, procura desviá-lo da sua obediência ao Pai, com a tríplice tentação em que se afunda a humanidade sem Deus: o pão, o poder e a glória.
E não se pode descurar a genialidade do tentador, que sabe perfeitamente como colorir as máscaras: nisso vai muto para além dos que, no nosso tempo, atingindo o cúmulo de todos os sacrilégios, se conseguiram até deturpar as cores do arco íris.
Como não se deixar enganar, num contexto destes!
É que, para anunciar com fidelidade a boa nova e curar as enfermidades, no verdadeiro sentido que lhes dá o Messias, não basta ver como se faz no mundo, nem propriamente aprender nos livros: é fundamental que se cumpra, em todos os tempos, mais ainda no nosso, o que diz São Marcos, 3, 13-15:
“Jesus subiu depois a um monte, chamou os que Ele queria e foram ter com Ele.
Estabeleceu doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar, com o poder de expulsar demónios”.
Por agora, fixo-me neste estarem com Ele: Ele, que subira ao monte, segundo os outros sinópticos, antes de escolher os doze; em Marcos, talvez devido a um estilo mais sintético, chamou os discípulos ao monte e aí escolheu os doze.
E, quem sabe? Talvez tenha sido exactamente dos que subiram o monte com Ele que escolheu os doze.
Em todo o caso, é no contacto íntimo com o Senhor em oração ao Pai, que nascem, se cultivam e perseveram as vocações, sem as quais, como dizia São Paulo VI, uma comunidade está morta ou moribunda.
Mas vamos ficar com a vocação e envio dos Doze.