Temperatura amena de Outono, a condizer com um sol brando, que não aquece demasiado, mas que nos livra de certas correntes de ar frio, sempre perigosas, de modo particular nestes tempos de pandemia. Junto o respeito pelos conselhos de quem cuida de mim, com o fascínio da natureza e uma certa fome de ar puro, e desço ao bosque que rodeia a nossa Casa, sem me afastar muito, consciente dos perigos que me podem advir das minhas naturais debilidades físicas.
Assim, prudência, fome e docilidade juntam-se para me sentir mais seguro nos passos que vou dando, aproveitando também o tempo para fazer um pouco de oração, meditando os “mistérios” do Rosário; agora, com os acrescentos de São João Paulo II, temos quatro séries de “mistérios”, ao contrário das tradicionais três. Procuro rezar as quatro; por coincidência, aparentemente um pouco em contradição com as minhas circunstâncias pessoais, calha meditar a segunda série: os “Mistérios da Dor”, como lhes chamou o Papa.
Os “Mistérios da Dor”, lhes chamou o Papa, pensando talvez mais no sofrimento da humanidade, do que no protagonista das acções que aqui designamos por “mistérios”. Na minha primeira escola de piedade, que foi a família, ensinaram-me a chamar-lhes dolorosos, porque se pensava mais no sofrimento de Jesus. Algum tempo depois, já em plena adolescência, passei por outra família, onde, antes de cada dezena, se convidavam as pessoas a meditar “nas dores da Santíssima Virgem, quando viu o seu divino Filho…”
Pensando bem, acho que todas as formulações estão correctas: porque, se, segundo o pensamento do Papa São Paulo VI, expresso num documento demasiado importante para estar esquecido como está, na contemplação dos “mistérios” do Rosário, mergulhamos nos mistérios da salvação, através do coração que os viveu mais de perto, o modo como Ele fez suas as nossas dores, é precisamente aquilo em que se torna mais evidente a seriedade do amor salvífico de Deus.
Deus, que assume todos os nossos medos e sua sangue perante a iniquidade que o envolve, que sofre sem um queixume os golpes das nossas faltas de moderação, coroado de espinhos pelos horrores dos nossos pensamentos corrompidos, aguentando com quedas e retomadas as nossas deserções, que morre de braços abertos, para abraçar com infinito amor a cruz que nos redime de tudo quanto, por maldade ou ignorância, suja a nossa vida.
Os mistérios da dor, que Ele não quis no mundo, mas que assume na totalidade, para salvar o mesmo mundo.
E isto, enquanto à sua volta cantam vitória as cabeças bem pensantes, todos os que sabem mascarar os abusos do poder com belos discursos; os grupos de pressão, cuja hipocrisia se esconde mal com a invocação oportunista dos direitos de César, ou a referência sacrílega às exigências da religião… E Pilatos, os pilatos de todos os tempos, que lavam as mãos cobardemente, fingindo ignorar que usam o poder que lhes foi dado para defender a verdade, condenado os inocentes, os que incomodam os tais grupos de pressão.
Sempre de terço na mão – eu continuo a chamar-lhe terço, porque ainda não encontrei palavra mais adequada, para substituir as “contas”, que ainda era comum na minha infância – regresso ao conforto dos meus aposentos, com o pensamento no meu Senhor, preso, escarnecido, flagelado, insultado, cambaleando, a caminho do calvário, onde morre, da morte mais horrorosa e iníqua que então se aplicava aos escravos.
Triste?
Sim, muito triste, trágico mesmo, quando o vemos, sozinhos, de lado de cá, fechados nos limites intransponíveis das nossas capacidades, como uma irremediável fatalidade a que estão condenados os homens.
Mas quando penso que é o meu Senhor, que é o meu Deus que está naquela cruz, de olhos cerrados, para não ver a minha maldade, mas a ternura que as suas dores podem despertar em mim, no meu pobre coração, perdido com tantas distracções, não sei como é: assalta-me uma alegria irreprimível, uma enorme vontade de cair de joelhos gritando: obrigado meu Deus, porque contigo morrendo assim por mim, o mundo recupera toda a bondade que lhe encontraste, quando, no sexto dia das origens, o contemplaste na totalidade da sua beleza criatural!
Eu sei. Só falta que caiam as máscaras da tirania que se insinuou na tua obra, quando o homem quis ser igual a ti, sem ti. Tu, ao contrário, fizeste-te igual nós, connosco. Sempre aliado, mesmo quando nós traímos essa aliança!
Será por isso que as máscaras se tornam às vezes tão persistentes?
Evidentemente. Mas salvar-nos de outro modo não seria digno de um Criador divino que ama divinamente a sua obra.
Ajuda-me, Senhor, a arrancar da minha vida as máscaras que, ao contrário das profilácticas, dão guarida ao vírus da pandemia das origens.
(Retirado da página do autor)