Já depois de ter escrito o título desta minha partilha de pensamentos inspirados na fé, que tenho como o maior dom da bondade de Deus, assaltou-me, por cima de todas as dúvidas, um temor quase paralisante, nascido da consciência de que utilizo uma palavra tão gasta e vilipendiada na nossa cultura, que se torna, no mínimo, incompreensível. E o pior de tudo é que, no vocabulário actualmente em uso, não temos qualquer palavra que esteja livre de conotações impeditivas de se entender o que os textos sagrados nos dizem com o termo original da palavra “caridade”.
Tendo presente que o discípulo por antonomásia, nomeado no quarto evangelho como aquele que Jesus amava, recostou a cabeça no peito do Mestre, tomo como base dois versículos do mesmo evangelho, nos quais Ele define o Seu amor pelo Pai, no qual radica igualmente o Seu amor por nós:
«Já não falarei muito convosco, porque vai chegar o Príncipe deste mundo. Ele nada pode contra Mim, mas é para que o mundo saiba que amo o Pai e faço como o Pai Me ordenou» (Jo 14, 30-31).
«Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como Eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor» (Jo 15, 9-10).
Assim que, em meu entender, o amor de Jesus pelo Pai se manifesta na totalidade da Sua entrega, para que se realize a vontade do Pai, que é a salvação do mundo; e esse é também o amor que tem por nós e quer que permaneça em nós.
Partindo daqui, diríamos que, propriamente falando, a caridade não tem dimensões alcançáveis pelo nosso olhar exclusivamente mundano: ou temos o coração aberto ao infinito, ou ainda não chegámos sequer aos átrios da caridade. E muito menos somos capazes de descobri-la onde, de facto, ela maraca o ritmo da vida.
Não se trata de uma visão pessimista; muito ao contrário: porque é minha convicção que, apesar das aparências, há muito mais corações abertos ao infinito do que seríamos levados a pensar se nos fixássemos apenas nos ambientes em que se utilizam os termos “caridade” e “amor de Deus” para etiquetar certas acções, quando não processos de qualificação e condenação de pessoas ou instituições.
A dois passos do Natal, que este ano será tão diferente daquilo a que estamos habituados, em plena Novena da Imaculada Conceição, não podemos deixar passar este momento sem pensar no coração de pura criatura que, em toda a história da humanidade, esteve mais aberto ao infinito: tão aberto que, quando, chegada a plenitude dos tempos, com o diria São Paulo, o infinito quis tornar-se finito, para o que precisava de um coração de mulher, ele se Lhe abriu sem reservas.
Assim mesmo! Maria totalmente à disposição de Deus para o que Ele quisesse dela: porque confiava n’Ele, porque não existia senão para Ele: “Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra!”
Talvez devêssemos aproveitar as limitações que este ano são impostas ao nosso Natal, para recuperarmos o sentido pascal da nossa fé em Cristo, no qual o Verbo eterno de Deus se faz criatura para dar dimensão divina aos nossos votos de infinito. E isso passa pela Cruz e o Sepulcro, a “hora de Jesus”, na qual Maria completa a sua função de Mãe de Deus e dos homens.
Sem a Páscoa, o Natal não passa de mais uma efeméride para gestos vazios de conteúdo, habilmente utilizados por todas as forças exploradoras da natureza humana.
É por isso que hoje, com perdão dos liturgistas e da Comunidade cristã, depois de ler o relato da multiplicação dos pães, segundo São Mateus, me detenho na consideração dos pormenores que dão ao relato de São João um carácter nitidamente pascal e eucarístico:
“Naquele tempo, Jesus partiu para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades. Seguia-O numerosa multidão, por ver os milagres que Ele realizava nos doentes. Jesus subiu a um monte e sentou-Se aí com os seus discípulos. Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus. Erguendo os olhos e vendo que uma grande multidão vinha ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: «Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?» Dizia isto para o experimentar, pois Ele bem sabia o que ia fazer. Respondeu-Lhe Filipe: «Duzentos denários de pão não chegam para dar um bocadinho a cada um». Disse-Lhe um dos discípulos, André, irmão de Simão Pedro: «Está aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?» Jesus respondeu: «Mandai-os sentar». Havia muita erva naquele lugar e os homens sentaram-se em número de uns cinco mil. Então, Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, fazendo o mesmo com os peixes; e comeram quanto quiseram. Quando ficaram saciados, Jesus disse aos discípulos: «Recolhei os bocados que sobraram, para que nada se perca». Recolheram-nos e encheram doze cestos com os bocados dos cinco pães de cevada que sobraram aos que tinham comido. Quando viram o milagre que Jesus fizera, aqueles homens começaram a dizer: «Este é, na verdade, o Profeta que estava para vir ao mundo». Mas Jesus, sabendo que viriam buscá-l’O para O fazerem rei, retirou-Se novamente, sozinho, para o monte” (Jo 6, 1-15)
Em síntese: Estamos perto da Páscoa, frisa o evangelista, que fará seguir o seu relato do discurso do Pão da Vida, Eucaristia, sacramento da Salvação, que se consuma no Calvário, com a Morte e Ressurreição de Cristo. As dúvidas da visão puramente contabilística (Filipe), e a mediação, que traz a Jesus a generosidade anónima dos corações desprendidos (André). Pertence aos discípulos distribuir, não o que têm no bolso, mas o que Jesus lhes entrega como fruto das boas vontades reunidas. Assim, posta ao serviço da compaixão do Filho de Deus, a escassez humana torna-se abundância divina. E, porque é abundância divina, tem de se respeitar, guardando o que sobra e não permitindo que nada a manipule, pondo-a ao serviço da exploração dos necessitados.