O trecho do Evangelho que lemos hoje, na Santa Missa (Mc 10, 32-45), começa por se referir a um ambiente algo sombrio envolvendo o grupo dos seguidores de Jesus:
“Naquele tempo, Jesus e os discípulos subiam a caminho de Jerusalém. Jesus ia à sua frente. Os discípulos estavam preocupados e aqueles que os acompanhavam iam com medo”.
Compreensível: antes acontecera o episódio do jovem que perdera a sua oportunidade de ser feliz, e Jesus manifestara a sua mágoa, repetindo talvez um adágio popular, mas fazendo-o de tal modo, que todos compreenderam a admoestação que o acompanhava:
– Tende cuidado! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.
Além disso, iam a caminho de Jerusalém, que, na mente de um galileu, para mais discípulo de um profeta como aquele, que já era tratado depreciativamente pelos habitantes da Cidade Santa como o Nazareno: assim era de crer que os horizontes do pensamento lhe aparecessem demasiado sombrios.
Jesus parece querer carregar nas cores: “tomou então novamente os Doze consigo e começou a dizer-lhes o que Lhe ia acontecer”. É a profecia da Paixão, referida com os pormenores mais chocantes, horríveis para a mentalidade daqueles homens que, apesar de galileus, estavam imbuídos do ancestral triunfalismo dos descendentes de Abraão.
Como quem não percebeu, senão metade das coisas – aquilo poderia ser uma alegoria, na linha de outras que conheciam dos textos sagrados – dois deles, por sinal irmãos – Mateus diz até que usaram a influência que imaginavam poderia ter junto do Mestra a mãe de um discípulo – pedem o que talvez também os outros desejassem, mas não se atreviam a pedir.
A resposta de Jesus, que pode parecer negativa, só o será também parcialmente: porque o que pedem os dois irmãos é muito mais sublime do que o que provavelmente têm em mente: sem se darem conta, estão ainda no plano do jovem que queria ser feliz por uma via errada: o Mestre, com uma pergunta fá-los sair desse plano e, perante a generosidade que manifestam, promete-lhes, não o que os enganava, mas o que, no fundo desejava o seu coração; o deles e dos outros discípulos e seguidores, aos quais explica depois o que é verdadeiramente ser grande no Seu Reino. E não o faz para desencantá-los, mas, como dirá no discurso de despedida, para que tenham a Sua paz, se alegrem com Ele, e a sua alegrai seja completa.
Alegria completa, ainda neste mundo, apesar de todas as contradições; mas sobretudo quando estiverem com Ele no seio do Pai.
Alegria, que nos virá, não de razões terrenas, medidas apenas pela linha do horizonte temporal, mas da consciência de que participamos do Amor que existe entre o Pai e o Filho e como o Filho, com Ele, não estamos no mundo para sermos servidos, mas para servir: “porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos”.
Esta era, sem qualquer sombra de dúvida, a alegria de Filipe Néri, jovem florentino que, chegado a Roma, mal saído ad adolescência, quase como o jovem do Evangelho, ao perceber que ainda tinha coisas a mais, queimou tudo, literalmente, queimou tudo o que ainda era sinal de apego ao mundo e cultivou de tal modo a alegria de servir, de viver para os outros, que, mesmo depois da sua morte, aos oitenta anos, Roma continuou a chamar-lhe o Santo do Bom Humor.
Filipe Néri, que sempre me despertou particulares simpatias, pelo modo como quis fazer penetrar o Evangelho na vida corrente, sem emblemas nem bandeiras, apostado em fazer da amizade o anzol da sua pesca, que apanhava toda a espécie de peixes: pessoas de todas as condições sociais, homens, mulheres, jovens e adultos, com os quais se reunia semanalmente, para ler, estudar, rezar, cantar e conversar.
Era o santo titular da rua onde vivi quase dez anos, durante a frequência da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e tive a felicidade de o reencontrar em Roma, coberta de vestígios das celebrações do quarto centenário da sua morte; celebrações particularmente vistosas, que haviam ocorrido dois meses antes.
Estava mais uma vez na Cidade Eterna por razões de estudo, que não tinham sido as do jovem florentino: ele, já nessa altura, procurava motivações diferentes, mais elevadas que as da maioria de quem viajava para a Roma do século XVI. E confesso que houve um momento em que quase me senti envergonhado. Mas o santo do bom humor, que eu encontrava em tantos locais relacionados com o meu trabalho académico, com a sua alegria contagiante, ajudou-me a perceber que, estando ali por obediência, como era o meu caso, com o desejo único de servir a Igreja, que ela tanto amara, não tinha senão que agradecer a Deus e continuar a fazer do meu trabalho a matéria da minha santificação.
Afinal, encontrar a alegria de viver, a verdadeira, compatível com as muitas lágrimas que temos de chorar, enquanto estivermos do lado de cá da história, não será assim tão difícil: basta seguir exemplos como o de Filipe Néri, evitando o medo do jovem do Evangelho, que se foi embora triste, por não ter percebido a simpatia do olhar de Jesus.