APENAS UM PORMENOR

Para quem nasceu e cresceu numa aldeia rural, com encostas cobertas de árvores e vales verdejantes, de culturas irrigadas pelas águas que desciam, sem ímpeto, mas abundantes, por valas, ribeiros e rios, permitindo que se lhes detivesse ou reencaminhasse a marcha, segundo as necessidades dos campos, para quem nasceu em ambiente assim, o São João terá invariavelmente de despertar, antes de mais, memórias da terra e seus produtos.

Havia os primeiros frutos maduros, entre eles, os figos e os pêssegos de São João: aqueles que mais tarde identifiquei com os “figos lampos”, do delicioso conto de Teixeira Gomes, e estes com um sabor que não encontro nos que agora aparecem põe esses mercados. E, quando os provo, aumentam as saudades do São João da minha infância e adolescência, apesar de tudo, festejado com uma proximidade da teologia do tempo e do espaço, que hoje dificilmente se capta. Tanto se deturpou com a repaganização que, além do mais, é despudoradamente explorada pela voracidade do quase universal consumismo.

Também não ajuda muito uma catequese litúrgica que, ou se limita a repetir lugares comuns da pregação, ou se perde em questões de erudição bíblica, cuja oportunidade é pelo menos muito duvidosa.

Foi por isso que, para não me afogar numa saudade estéril, esta madrugada, depois de reparar que a luz brilhava menos do que há dois dias, me lembrei de um texto de Santo Agostinho, um sermão em que ele procura levar os seus ouvintes, os cristãos de Hipona, a uma frutuosa contemplação do mistério que liga, no seu próprio nascimento, o Messias e o Precursor.

À falta de uma tradução mais fiel, consciente de que não conseguimos verter na nossa língua toda a beleza do texto original, tento dar uma ideia aproximada aos meus leitores, pedindo perdão ao Santo e a eles de traduzir tão mal um dos mais excelentes, se não o mais excelente dos cultores do latim do Baixo Império:

“Nascimentos ambos admiráveis, o de Cristo e o de João, apesar da enorme diferença que os separa:

Nasceu João e nasceu Cristo: João foi anunciado por um anjo, por um anjo foi anunciado Cristo. Ambos são um grande milagre. Uma estéril dá à luz de um homem idoso, o Servo Precursor; uma virgem dá à luz, sem intervenção de varão, o Poderoso Senhor. Grande homem, João; mas mais do que homem, Cristo, porque é Deus e homem.

Grande homem; mas o homem deve humilhar-se para que se exalte Deus.

Assim, porque devia humilhar-se o homem, escuta o próprio homem: “Não sou digno desatar-lhe as correias das sandálias”. Se se dissesse digno, nessa medida se humilharia; mas nem sequer isso disse: prostrou-se completamente sobre a pedra.

Pois era o luzeiro, temeu ser apagado pelo vento da soberba.

De facto, todo o homem devia humilhar-se perante Cristo; por isso também João; e que devia ser exaltado Cristo homem Deus, mostrou-o o dia do nascimento e o modo como sofreram.

João nasceu hoje. A partir de hoje, diminuem os dias. Cristo nasceu a vinte e cinco de Dezembro; a partir desse dia crescem os dias; na sua paixão, João é decepado, Cristo é levantado no madeiro” (Augustinus, “sermo” 287).

As correias das sandálias!

Parece um pormenor sem importância e passa despercebido à maioria dos comentadores, que se limitam, quando muito, a frisar a humildade de João, quando Jesus se aproxima para sujeitar-se ao rito de penitência em que aparentemente João não se distinguia de outros penitentes pregadores.

Afinal, ele era o Precursor, que apontava a chegada do Reino com as palavras e os gestos indicativos das características do Reino, humilhação suprema do Criador, para recuperar a grandeza da Criação.

No pensamento de Agostinho, a Criação humilha-se para abrir passagem à humildade do Criador, sem a qual não poderá ser exaltada.

Da diferença dos nascimentos de João e Cristo, ao modo como ambos morrem pela Verdade, Agostinho utiliza o pormenor do Servo que não se considera digno de desatar as correias das sandálias do Senhor, para mostrar como na recuperação do mundo perdido pelo pecado, não há lugar sequer para o orgulho de um testemunho visível a quem não tem as luzes da fé:

João e Jesus, vítimas da tirania do mesmo rei que manda decapitar um e vestir de louco o outro, são bem as vozes clamorosas de todos os que não se conformam com a mentira que nos envolve e cujo pai, no dizer do próprio Jesus, é o diabo.

Talvez estejamos todos de acordo com o santo bispo de Hipona.

Mas será que aceitamos a coerência, direi mesmo, o sentido messiânico, da morte do Precursor, num silêncio imposto pela decapitação, precedendo a morte do Redentor, gritando do alto da Cruz: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem?

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