Visitar os presos não se fica apenas pela presença física junto deles. Requer acolhimento e apoio espiritual, humano e social que ultrapassa as paredes da prisão.
Na Diocese, a ação pastoral aos reclusos é garantida pelos Samaritanos – associação de visitadores dos estabelecimentos prisionais de Leiria, com a coordenação do padre Rui Acácio Ribeiro, que nos dá a conhecer o trabalho dinamizado e a realidade da assistência religiosa nas prisões.
Entrevistámos ainda o coordenador nacional da Pastoral Penitenciária, padre João Gonçalves, que aponta esta obra de misericórdia como “um trabalho muito vasto” que cabe a cada cristão.
Ir atrás das grades para ouvir e dar a mão
“Estava preso e fostes visitar-me…”
A vida moderna está feita de estereótipos que de forma silenciosa se implementaram na nossa rotina e já quase nada nos dizem. Todas as manhãs nos levantamos e, de forma stressante, corremos para os locais de trabalho ou de estudo; em muitos casos, passamos frente às prisões nas quais muitos dos nossos irmãos sofrem a solidão e a indiferença. E no entanto também eles são pertença do “rebanho do Senhor”.
Mas quem se move nestes ambientes tem plena consciência de que há um mundo dentro do mundo em que a maioria dos cidadãos se move. Um mundo diferente onde na verdade imperam os mesmos sentimentos que todos sentimos, mas talvez de forma mais angustiante e sentida, porque não é possível evitá-los nem fugir-lhes. “Estamos condenados a ser condenados por tudo e por todos”, diria o Pedro. Nos seus 32 anos de idade, sente a dor do sofrimento e da solidão e não tem dúvidas de que estas são mais sofridas porque, por muito que queira, não tem condições para lhes fugir. O Pedro espreita pela janela da sua pequena cela, e fala da indiferença que sente naqueles que, lá fora, passam ao lado sem saberem desse mundo que ali dentro se vive.
Um outro mundo ou apenas uma sequência lógica deste mundo que é o de todos e que é único? Talvez nunca cheguemos a saber. Por isso, o José, de olhar distante e fixo, apenas sabe responder, por entre lágrimas que lhe tornam o olhar luzidio, que “estamos onde nos quiseram pôr, por erros que cometemos, ou não. Mas é triste saber que somos enviados para o esquecimento e para a indiferença, quando não é mesmo para a desconfiança”. E fala-nos da “chaga que sangra” em cada olhar e em cada encontro que vai tendo com o exterior. “Estou marcado para o resto da vida, por causa de um erro que cometi sem nunca ter pensado que cometeria”. A resignação é afinal o último refúgio destes irmãos que aqui encontram tempo para pensar e falar da vida, de forma diferente da habitual.
Conforto?! Encontram-no, muitas vezes, fora do próprio âmbito familiar. Nem sempre, é certo. Mas na maioria das vezes assim acontece. E na nossa diocese o grupo dos Samaritanos é o símbolo visível desse conforto regular, desejado e sempre esperado com ansiedade.
Visitar os presos
Mais que um sentimento de solidariedade ou até humanismo, a visita aos presos transforma-se numa verdadeira obra de misericórdia, no sentido em que o coração passa a bater a outro ritmo e volta-se de forma espontânea para rostos que retratam de forma singular uma panóplia de sentimentos que moldaram o próprio Jesus: a solidão, o abandono, o medo, a vontade de transformar a realidade presente, refletem-se naqueles rostos e fazem da nossa presença uma verdadeira obra de salvação.
E, no final de cada visita, a lembrança de um sorriso, ou mesmo a lembrança de um rosto envergonhado e arrependido, alimentam a esperança de que é possível ser diferente. Só por isso e por esta certeza vale a pena estar ali todas as semanas, porque assim a fé se torna uma fonte inesgotável de crescimento.
Um padre cúmplice na prisão…
A imagem que mais me aflora à mente quando falo ou me questionam sobre o trabalho pastoral no ambiente prisional é esta “sinto-me a dar de comer a uma criança que está cheia de fome e quer mesmo comer”. De facto, a maioria dos reclusos está afastada da fé e da vida da Igreja há já muitos anos, isto no caso dos que alguma vez tiveram contato com estas realidades. Por isso, toda a forma de estar, falar e celebrar escapa aos formalismos das normas litúrgicas e por vezes até ao regulamentado civismo.
Como padre, chego a sentir-me recluso no meio dos reclusos e busco formas de os fazer sentirem-se verdadeiros cristãos, por vezes até comprometidos e tocados (pelo menos amados) pela Igreja. Sem permitir faltas de respeito ou “avanços “exagerados, procuro estabelecer um contato tanto mais próximo quanto mais amigo e cúmplice. Assim funcionam os grupos que naturalmente se formam naquele mundo que é a prisão. A cumplicidade é a marca de pertença e aceitação.
A presença do padre, assim se espera, é essencialmente sacramental, no sentido de que ali deveria estar para presidir à celebração da Eucaristia ou outros momentos de oração. Mas quando se atravessam as paredes, sentimos de imediato que a presença passa por outros campos mais vastos e mais abrangentes. Por isso, os formalismos, os ritualismos, e sobretudo os esquemas previamente estudados correm sempre o risco de serem esquecidos e abandonados. O improviso toma conta de nós e sem nos apercebermos estamos noutro mundo, com outras medições de tempo e com outros espaços. Na verdade, um mundo diferente do habitual.
Na passada semana senti isso mesmo de forma física: entrei na prisão fazia sol, e quando saí, sem que me tivesse apercebido, tinha chovido e estava a chover. Foi como sair de uma realidade diferente. Vinha de um outro mundo e voltava ao meu mundo de cada dia. E quase fiquei sem saber onde queria verdadeiramente estar”.
Passar umas horas naquele ambiente com os “irmãos reclusos” transforma a minha forma de estar junto dos “irmãos de cada dia”. Às vezes chego a ter dúvidas onde me sinto melhor, porque venho sempre tocado e transformado. Saber ouvir, saber escutar é uma virtude tão necessária nos nossos dias e ali é tão natural e normal. Habituado a ter que falar, aprendo a saber calar-me e ouvir. E ouço lamentos, e interrogações que tocam cá bem no fundo de mim mesmo.
Desde que iniciei este trabalho junto dos reclusos, a minha oração passou a ser diferente. Não sou capaz de rezar sem que à minha mente não surjam rostos de pessoas concretas, situações de vida que me inquietam e transformam por isso a minha oração. Pouco a pouco, sinto que para lá da ajuda que posso levar, sou eu o primeiro a ser ajudado.
Padre Rui Acácio Ribeiro,
Capelão dos estabelecimentos prisionais de Leiria
Quem são “os Samaritanos”?
Trata-se de uma associação de visitadores dos estabelecimentos prisionais de Leiria, composta por voluntários. O objetivo é “assistir humana e cristãmente a todos quantos se encontram privados de liberdade”. A associação presta apoio aos presos, “assistindo-os moral e materialmente, trabalhando para a sua reintegração na vida social e amparando-os, quando libertados”.
Todas as semanas as portas das prisões abrem-se para este grupo de “amigos” que não apenas são ansiosamente esperados pelos reclusos, como também são já parte da “família” dos que trabalham nas prisões. Os Samaritanos trazem consigo a boa disposição, a amizade e a presença de um afeto e de uma saudação. Quando é permitido, dá- -se também lugar à assistência material e lá vem mais um saco de cal- çado, roupas, pasta de dentes e por vezes um simples “mimo” em forma de chocolate.
Os Samaritanos são, nas palavras de alguns dos reclusos, “a voz que nos faz falar para podermos ser ouvidos, e a mão que nem sempre temos para sentirmos que ainda estamos vivos”. Uma presença amiga que, semana após semana, procura trazer à lembrança aqueles que normalmente são esquecidos e ignorados. Mas no fim quem acaba por se sentir enriquecido na sua vida são os próprios voluntários, que acabam por “aprender autênticas lições de vida” junto daqueles que parecem ter errado na vida.
Testemunho de um recluso
“A presença amiga de quem me visita e me ouve, ainda que seja por pouco tempo e de forma por vezes ritual é tão importante para mim e desperta em mim um sentimento único: o da unidade. Quando me visitam pessoas que não me conhecem e não têm qualquer ligação comigo, sinto- -me pequeno e pergunto-me que força é essa que torna as pessoas capazes destes gestos?!
Tenho pensado muito nisso e tenho uma resposta que encontrei aqui na minha cela: terá que ser um forte sentimento de unidade aquele que explica esta “teimosia” de quem me visita. Não quero que me visitem por pena, mas é muito bom sentir que somos respeitados na nossa dignidade. E isso só é possível porque nos sentimos unidos na mesma fé e na mesma condição. Obrigado por seres meu visitador.”
Zacarias
Entrevista ao padre João Gonçalves,
Coordenador da Pastoral Penitenciária em Portugal
“Quando alguém vai para a cadeia,
outros deveriam acompanhá-lo…”
O Presente Leiria-Fátima falou com o padre João Gonçalves, de Aveiro, coordenador nacional da Pastoral Penitenciária em Portugal, que falou do trabalho importantíssimo que a Igreja assume nas prisões. Capelães e voluntários garantem um serviço que é feito dentro e fora das prisões: no apoio aos reclusos, na prevenção e na reinserção social, “um trabalho muito vasto que cada um de nós pode fazer”.
Tem ideia de quantas pessoas estão ligadas a esta pastoral em Portugal?
É difícil ter um número exato. Os capelães são um por cada cadeia, num total de 47. Nem todos são sacerdotes. Há uma assistente espiritual que é uma religiosa, em Beja, e um diácono permanente, na Covilhã. Quanto a voluntários, não sabemos. Tentámos fazer um levantamento, mas ainda não conseguimos chegar a um número final. É um trabalho importante… É um trabalho importantíssimo, sobretudo na medida em que, quem vai de fora, leva algo de novidade, que faz o recluso acreditar que a sociedade não os esquece. É presença que está em nome de toda a sociedade, que ali vai através da Igreja.
No último encontro nacional da Pastoral Penitenciária de Portugal foi sublinhado o trabalho da Igreja Católica que “é tão ou mais importante do que qualquer abordagem técnica”. Podia concretizar?
É uma convicção generalizada. Muitas vezes, os reclusos sentem-se mais à-vontade para desabafar sobre a sua vida pessoal com alguém que não faça parte do sistema. Quando vai alguém de fora, concretamente da Igreja, que vai voluntariamente com o sentido de ser escuta, os reclusos sentem-se mais disponíveis para falar.
São criadas as condições necessárias para esta assistência espiritual, prevista na lei?
O decreto-lei n.º 252/2009, que regulamenta a assistência religiosa nos estabelecimentos prisionais dependentes do Ministério da Justiça, concretiza o que já está definido na Concordata entre a Santa Sé e o Estado Português.
Na sua aplicação, esta legislação trouxe algumas limitações à presença da Igreja nas prisões. Desde a nossa entrada, que passou a estar muito limitada pelas horas, pela disponibilidade de espaços e dos guardas. Exemplos muito concretos: para que os reclusos possam vir às nossas celebrações, têm de passar por uma série de regulamentos internos que, muitas vezes, complicam a sua presença; há cadeias em que a capela se encontra muito distante das alas, sendo necessária a presença de guardas para acompanhar os reclusos e nem sempre há essa disponibilidade. Estas dificuldades acabam por criar algumas dificuldades a um direito que é dos reclusos. Para garantir a assistência espiritual religiosa aos reclusos têm de ser criadas condições necessárias.
A Pastoral Penitenciária faz algum tipo de acompanhamento na reinserção social da pessoa que esteve presa?
Temos essa preocupação, mas nem sempre isso é possível com todos, tendo em conta os recursos que temos. Cada vez mais temos estado envolvidos em protocolos com outras instituições, que possam ajudar os reclusos a serem reinseridos. Em algumas Dioceses é feito um acompanhamento muito próximo àqueles que saem da cadeia: na preparação da sua saída, em colaboração com a família; na ligação com possibilidades de emprego e noutros aspetos que promovam a reinserção social.
Esta questão da reinserção é, de resto, uma das áreas que deve merecer a nossa maior atenção. Ou trabalhamos todos para a reinserção social no mundo familiar e laboral ou então vale de muito pouco o tempo que a pessoa esteve em reclusão, sobretudo se pensarmos na possibilidade que existe de ela lá voltar.
Quando alguém sai da cadeia, não deve ser rotulada, mas sim acolhida, por cada pessoa em particular e pela sociedade em geral.
Conseguem envolver a sociedade neste esforço?
Um dos grandes objetivos da Pastoral Penitenciária, fora da prisão, passa por tentar envolver a pró- pria sociedade, através da reinserção, como já referi, e da prevenção. O trabalho de prevenção é feito numa ligação direta com as comunidades, concretamente através das escolas e paróquias. Num contacto com crianças, jovens e pais, falamos da realidade das cadeias e das causas que levam à prisão, por forma a sensibilizar as comunidades para esta realidade e a preveni-la através do acolhimento. A prevenção é abordada num sentido de co-responsabilidade. Quando alguém vai para a cadeia, outros deveriam acompanhá-lo, pela sua omissão ou por não a terem acolhido e ajudado quando deviam. Cada um de nós é também responsável por aquilo que não fez.
Neste Ano da Misericórdia, estamos a sensibilizar as comunidades para uma atitude de grande abertura e misericórdia. Uma das Obras de Misericórdia, visitar os presos, não pode ser feita apenas indo às cadeias… Há um trabalho muito vasto que cada um de nós pode fazer na área da prevenção e da reinserção.
De que forma o pontificado do Papa Francisco, focado nas periferias, contribuiu para uma maior consciencialização do trabalho da Pastoral Penitenciária?
Tudo quando o Santo Padre escreveu e disse sobre presos e prisões já dava um bom livro. Tem tido intervenções extraordinárias neste sentido. Ainda agora, no México, onde ele disse que não basta condenar, mas devemos tentar ir à causa pela qual a pessoa cometeu um ilícito que a levou à cadeia, alertando a sociedade para que se volte mais para as causas, como forma de prevenção. Aos reclusos, o Papa lembrou que podem ser profetas na sociedade, assumindo também um trabalho de prevenção junto daqueles que não conhecem a realidade das prisões.