A ideia de que a poesia pode ser um “ponto de encontro e de fulguração” adequado para “tocar o limiar de Deus” foi um dos motes do Encontro de Reflexão Teológica do movimento Metanoia, que decorreu no Seminário de Leiria, entre 28 e 31 de Julho.
Com a participação de mais de uma centena de pessoas, o tema principal – “Tocar o Indizível – a poesia e os nomes de Deus” – teve como animador o poeta Luís Soares Barbosa. Mas outras experiências se cruzaram e partilharam os seus modos de fazer relacionar o nome (ou ideia) de Deus com a expressão artística.
Textos e entrevistas de António Marujo / Luís Miguel Ferraz
Manhã de 28 de julho. O Seminário Diocesano de Leiria acolhe cerca de uma centena de membros do Metanoia – Movimento Católico de Profissionais, para o seu Encontro de Reflexão Teológica anual. Vêm de todo o país – sobretudo, Aveiro, Braga, Coimbra, Lisboa e Porto – para tentar “Tocar o indizível” através da poesia. O programa estende-se por quatro dias e inclui intervenções temáticas, tempos de oração, lazer e uma dinâmica própria para os mais novos.
O principal convidado para conduzir a reflexão é Luís Soares Barbosa, professor de Ciências da Computação na Universidade do Minho, associado do Metanoia e autor de quatro livros de poemas. “O nome de Deus é simultaneamente o que a nossa palavra não alcança (o indizível) e a palavra maior que nos acolhe. Não o nomeio eu, o que seria idolatria, mas sou dito nele”, diz na entrevista que se publica abaixo, explicando o tema do encontro.
No itinerário que propôs, o autor começou por fazer uma aproximação à ideia da poesia, através do contributo de alguns poetas: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. Melhor que nomear é aludir. Aonde eu não estou as palavras me acham.”, do brasileiro Manoel de Barros (1916-2014) e “A minha fé é forte, cega e sem razão”, da polaca Wislawa Szymborska (1923-2012, Nobel da Literatura em 1996), foram dois dos versos citados para chegar à origem da poesia no mito de Orfeu: este comove Caronte e leva Hades a deixar sair Eurídice do lugar dos mortos e regressar com ele ao mundo dos vivos; mas Orfeu acaba traído por si mesmo, quando olha Eurídice antes de regressar à terra dos vivos, contra o que Hades exigira. “O canto nasce de uma perda, de uma ausência; é para trazer à luz que descemos aos infernos”, comentou Luís Barbosa. “Como Orfeu, ninguém pode ver a Deus e viver, advertem os poetas.”
No percurso, Luís Barbosa falou da poesia como utensílio para tocar os nomes de Deus, de Deus como ausência e como próximo ou como lugar de exílio; da poesia nas místicas cristã, oriental e islâmica e no agnosticismo; e da poesia como ressurreição.
Para concretizar esse itinerário espiritual e teológico, além dos poetas já citados, outros nomes foram referidos. Entre eles, Czesław Miłosz (1911-2004), Marguerite Yourcenar (1903-1987, que escreveu “Os 33 nomes de Deus”), as epifanias de Alda Merini (1931-2009), o judeu Yehuda Amichai (1924-2000), poeta da filiação e ausência, a salvação e os exílios do vietnamita-americano Ocean Vuong (1988), ou a compaixão e resiliência da russa Anna Akhmatova (1889-1966) e a contemplação do concreto do japonês Kobayashi Issa (1763-1827).
Na poesia de matriz mística, foram citados Ko Un (1933), Bashô (1644–1694), autor de “O caminho estreito para o longínquo norte”, Hugo Mujica (1942), que dizia que “a escuta do silêncio é a poesia”, São João da Cruz (1542-1591), John Donne (1572-1631), Farid Ud-Dinn Attar (1145-1221) Mevlana Rumi (1207-1273), Adonis (1930), ou o agnóstico Joe Bousquet (1897-1950), que viveu 32 anos retido na cama, por ter ficado ferido e paralisado dos membros inferiores, e que escrevia: “Privado do meu corpo, é dele a única experiência que possuo.” E, finalmente, a poesia como sinónimo de ressurreição, nos casos de Dylan Thomas (1914-1953), Adélia Prado (1935), Jack Kerouac (1922-1969), autor de um livro de “Salmos”, ou Jean Grosjean (1920-2006).
Alguns excertos de poemas e referências a estes e outros poetas são partilhados no blogue deste autor.
Múltiplos olhares
“Escavar palavras” na vida
e chegar à música litúrgica
O arquiteto e compositor José Carlos Cantante contou como das suas viagens nasceram músicas onde se nota uma forte inspiração bíblica, grande riqueza melódica e uma marcada linguagem contemporânea. Essas viagens – desde o quarto alugado, em Lisboa, até lugares como Porto, Ermesinde, Costa da Caparica, Feijó, Sobreda, Albergaria-a-Velha, Águeda e Coimbra (onde nascera) – foram sempre acompanhadas de uma guitarra, instrumento que era como “uma cana de pesca, para pescar a realidade com uma procura de verdade” e para “escavar palavras”. “Sinto-me estranha e impropriamente ‘tomado’ pelas Escrituras. São elas que me fazer mergulhar na realidade e ver nela abismo e esplendor”, diz na entrevista que pode ser lida abaixo, onde conclui que cantar era uma “urgência.”
Em duas das noites do encontro, outras tantas sessões de “Artes ao Luar” fizeram um percurso pela música, pintura e teatro, bem como pela inspiração bíblica dos textos da escritora Maria Gabriela Llansol, autora de “Ardente Texto Joshua”. O compositor João Madureira (autor do “Requiem pela Aurora do Amanhã”, com texto do agora arcebispo José Tolentino Mendonça, estreado no final de julho em Lisboa), as músicas Rute Prates e Sofia Sequeira, a pintora Catarina Castel-Branco, a professora de literatura Cristiana Vasconcelos Rodrigues e o ator e encenador Júlio Martin foram os participantes.
O padre jesuíta Rui Miguel Fernandes, que irá em breve para o Líbano fazer uma tese de doutoramento sobre o diálogo entre islão e cristianismo a partir da música ´hip hop´, defendeu a ideia de uma “teologia da rua”, que contrarie a ausência de “carne na teologia”, que a tentação gnóstica tem provocado.
De exílios – na experiência pessoal e na poesia – falou também o poeta Fernando Echevarría, o primeiro a receber o Prémio Árvore da Vida Padre Manuel Antunes, do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (2005). “Na poesia, a palavra não tem a função que lhe é habitual, trata-se de uma língua diferente.” E, sobre o tema do encontro, disse que “Deus é irredutível e todos os nomes de Deus são irredutíveis”.
Entrevista a Luís Barbosa
“A poesia é essencialmente
uma captação profunda do real”
Membro do Metanoia, o professor Luís Soares Barbosa é autor de quatro livros de poemas: “onde sopra o vento” (Quasi, 2004), “embora seja noite” (Cosmorama, 2007), “sobre fio de lume” (Cosmorama, 2008) e “e fico só e falo com as sombras” (CMBraga, 2016). Mas, além de autor, o principal animador deste Encontro de Reflexão Teológica é um grande leitor e conhecedor de poesia.
Partindo do tema deste encontro, pedimos que partilhasse os modos como vive e escreve a relação com Deus, a partir da palavra poética.
Porquê “tocar o indizível” e não “dizer o indizível” ou “tocar o intocável”?
O nome de Deus é simultaneamente o que a nossa palavra não alcança (o indizível) e a palavra maior que nos acolhe. Não o nomeio eu, o que seria idolatria, mas sou dito nele. E por isso apenas pode ser tateado, isto é, aproximado pela experiência concreta de cada um. A poesia, palavra-fulguração que, como escreveu o [poeta brasileiro] Manoel de Barros, serve para “carregar água numa peneira, roubar um vento e fazer uma casa sobre orvalho”, é talvez o instrumento adequado para dizer a forma como tocamos a vida e ela nos toca e, assim, ajudar-nos a enunciar os múltiplos rostos que Deus toma em nós.
Há nomes de Deus que surgem mais na experiência poética?
O Talmude começa cada um dos seus vinte volumes impressos na página dois: por mais que se tente não se chegará à origem. A origem não é o começo. Como o Talmude, a poesia começa sempre na segunda página. Não diz, não ensina, não mostra, não faz. É iniciática: origina. Neste encontro procuramos percorrer um conjunto diverso de poetas e identificar focos na sua obra por onde Deus se diz. Por exemplo, claridade, exílio, filias, resiliência, encontro, excesso, expectativa, utopia, proximidade, ausência, eco, vazio, noite, carne, desocupação, aridez, carne, presente, abismo, entre muitos mais.
O poeta escreve para costurar feridas, separações, prantos, equívocos, deslumbramentos, paixões e liberdades. Continuamente retomar e refazer uma costura que se desfaz. Como um fio de lume, na dupla ignorância da origem que a gera e do fim que porventura não terá. A poesia traduz nessa costura a condição humana e ao fazê-lo enuncia em nós, de forma misteriosa, os múltiplos nomes de Deus.
Incluir poesia e Deus na mesma frase significa pairar no reino da emoção, da relação com o divino, ou permite entrar na reflexão mais profunda sobre a ideia de Deus?
Acho que os termos da pergunta estão errados. A poesia é essencialmente uma captação profunda do real (porventura mais real que a reportagem jornalística ou o registo do historiador). Nada lhe é estranho; muito menos a razão.
Sente que é a poesia, pela sua essência de expressão da alma, que fala necessariamente de Deus, ou será antes Deus a fonte que ilumina de forma imanente a poesia?
De Deus nada sei. A não ser talvez o desabafo de Joe Bousquet: “Não posso tomar consciência da minha vida sem nela encontrar qualquer coisa que possa adorar”. A experiência de Deus não é da ordem do conhecer ou do sentir, mas da ordem da relação. E nessa relação é Ele quem nos precede. A poesia ajuda-me nessa visão das coisas. No entanto, nada lhe é mais estranho que as narrativas redondas ou o gosto por uma ordem estável e um espírito tutelado, como às vezes a Igreja parece alimentar. Deus vive perigosamente, não como um reflexo, nem como uma sombra, mas como o ingrediente mais significativo do fogo.
É possível encontrar a poesia fora das palavras?
Possivelmente. A música, o risco ou a cor sobre o suporte até então vazio, a luz moldada por uma escultura, respiram do mesmo modo. Mas eu só vivo de palavras.
E é possível encontrar Deus ou nomes de Deus na poesia de não crentes?
O dominicano frei José Augusto Mourão dizia que “a fórmula ‘encontrei Deus’ é obscena”: Deus não é uma coisa, um objeto ou mesmo alguém que possamos perder e encontrar e meter ao bolso. Isso responderá à primeira parte da sua pergunta.
Para a segunda, sinceramente não sei que linha demarca o crente do não crente (para além das efémeras fronteiras das instituições e das doutrinas). Um dos poetas que discutimos neste encontro, Jean Grosjean, escreveu que a questão essencial será reconhecer que o tempo não é apenas história, mas poema, e saber estar atento não só “aos nossos passos no silvado, mas também àqueles que fazem a ronda das constelações”.
Consegue identificar o poema ou o poeta que mais o ajudam a sentir Deus?
Como disse, a experiência de Deus para mim não é codificável (coisificável) dessa forma. Ao contrário dos registos da ciência ou da filosofia, o poema não abstrai, não classifica, não explica. Mas, ao mesmo tempo, em cada leitura recomeça e em nós convoca paisagens insuspeitas. Que poema? que poeta? Cada dia um.
O centro da poesia, desde Orfeu, tal como o da vida, é a ausência. Mas ausência não é o nada ou o vazio. A ausência geradora, erótica, isto é, aquela cuja essência é ser ausência de. E esse “de” cabe a cada poeta e a cada leitor enunciar…
Neste encontro… sentiu que se “tocou o indizível”?
Tocámos as nossas vidas (nossas e as do nosso tempo), ou partes delas, suas fulgurações e lamentos, desconstruções e esperanças. Costurámo-nos um bocadinho, reconhecemos que há em cada um abismos e claridades, fendas por onde “o que nada deixou no domínio da morte” eventualmente pode passar. Foi isso.
Entrevista a José Carlos Cantante
“Cantar para mim torna-se urgência”
José Carlos Cantante, arquiteto natural de Coimbra, teve uma participação especial neste encontro, enquanto compositor de música litúrgica que alia a poesia ao texto bíblico e às experiências da vida para cantar a sua relação com Deus. Iniciou esse exercício em tempos remotos, ainda antes de colaborar na comunidade da Capela do Rato, em Lisboa, mas acabou por não o desenvolver muito durante a vida. Nos últimos quatro anos, voltou a fazê-lo, também pela necessidade de animação da catequese de adultos a que se tem dedicado, já em Coimbra. Com apenas 23 músicas compostas, revela uma linguagem musical única, que a pastoral litúrgica deveria ter seriamente em conta como referência de atualidade.
A poesia é mais forte quando cantada?
Para quem tem o treino da poesia, creio que não… O cântico pode é funcionar como trombeta, conduzindo e perfurando as nossas muralhas e levando vitoriosamente o poema ao íntimo de cada um.
Nas suas músicas, nota-se uma profunda inspiração bíblica, que se cruza com a sua vida pessoal e os acontecimentos do País e do mundo. Essas intersecções são importantes para uma música litúrgica contemporânea?
De facto, sinto-me estranha e impropriamente “tomado” pelas Escrituras. São elas que me fazer mergulhar na realidade e ver nela abismo e esplendor. Creio que foi sempre assim… Terá sido pela minha surdez? Cantar para mim torna-se urgência – é um emergir do mar dos acontecimentos da vida, por vezes em sufoco…, por meio das palavras salvadoras. Creio que a contemporaneidade de qualquer música – em especial a litúrgica – só o é, se resulta de mergulhamos no aqui e agora da nossa vida pessoal e de todos os homens… para depois emitir à superfície o som irredutível da esperança.
No processo de composição, subordina a música ao poema ou é este que surge da ideia musical?
Creio que é o som primeiro. Para mim, que oiço mal, o som é coisa primordial. As palavras até podem surgir primeiro, mas é o som que lhes dá a “espessura”.
Até que ponto o sentido do divino influencia esse “som” primordial?
É o SOM por detrás do som…!
Que música ou compositor mais o ajudam a sentir Deus?
Talvez Handel no seu “Messias”, talvez Beethoven em qualquer das sinfonias, ou talvez Bach nas cantatas. Talvez até algum “espiritual negro”, ou mesmo algum cantar da Beira Baixa…
E neste encontro, sentiu que se “tocou o indizível”?
Exatamente! E, para isso, foi decisivo o contributo dos dois poetas Fernando Echevarria e Luís Barbosa – em especial a viagem guiada por este, através de tantos homens e mulheres que, ao longo da História, quiseram gritar esse indizível e tantas vezes só lhes saiu um inaudível (mas sempre grandioso) sopro…
Foi importante também o entusiasmo dos presentes e o cuidado da organização. Tudo junto… e o indizível tornou-se, de algum modo, “audível”!