Manhã cedo, muito cedo mesmo! No horizonte espreita já, carregado de promessas, o sol brando do Outono, que caminha também para o fim; mas podíamos ainda contemplar o céu azul coberto de estrelas, como que a garantir o pleno cumprimento das promessas do sol nascente.
Retido nos meus aposentos, prisioneiro de tantas circunstâncias adversas, recolho-me um pouco mais, a aprofundar o conforto da palavra de Deus, que há muito não sei ler senão como uma visita, d’Ele, da Sua misericórdia infinita. E o encanto daquela imagem do pastor, misturando-se com outras imagens, vindas de longe, mas todas denunciando algo que vai muito para além delas, cria em mim uma sensação de .liberdade, estranha, sobretudo pela força com que parece quebrar todas as cadeias que, momentos antes, me faziam sentir prisioneiro, privado de uma liberdade que só agora percebo para que serve:
Acicata-me a grandiosidade do cenário criado pelo evangelista para nos falar do Juízo Universal, que, segundo os comentadores, serve de enquadramento à doutrina do domínio universal de Cristo sobre a Criação.
“Vinde, benditos de meu Pai; recebei como herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo. (…) Em verdade vos digo: Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes”.
E fico a pensar, não na lista do Evangelho, porque essa já tem o seu quê de artificial e redutor^, pelo menos no modo como se lê e repete por aí, em todos os tons: o que me assalta a memória é muito mais extenso e profundo; todas as dores humanas; tudo aquilo que desfigura o mundo, que Deus criou bom e quis que fosse embelezado pelo homem, como seu donatário e administrador fiel.
Juízo Universal, Juízo Final… para quem vive da fé, não há juízo universal ou final que não possa e deva converter-se em particular e actual; meu e do momento que estou a viver.
Juízo particular e actual, sem perder tempo a pensar na encenação narrativa do evangelista, nem no que não posso fazer, do conteúdo do libelo de acusação que o texto apresenta.
Passa-me pela mente outra cena do Evangelho:
Naquela hora, quis a Providência que as circunstâncias pusessem em confronto o poder que serve as paixões humanas e o poder que serve a Verdade, até à morte: Pilatos, o detentor do poder que se deixa manipular contra a Verdade, Jesus, o inocente que morre pela Verdade.
A Pilatos dissera que a Sua realeza não era deste mundo; e a Igreja diz, na liturgia desta solenidade, que ao morrer assim, Ele estabelece “m reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”.
No texto de São Mateus, o Juiz torna-se Pastor, ainda que mantendo as funções judiciais. Mas o que Ele quer é salvar o rebanho, e é por isso que exclui os que até ao fim, teimosamente, se afastaram do carinho que busca a ovelha perdida e a traz aos ombros para a segurança do redil. Que extraordinário conforto, ver-se como ovelha desse rebanho! Não a ovelha privilegiada, mas aquela que Ele trata como a que tem mais necessidade do Seu carinhoso cuidado.
E palpar nesse cuidado uma misteriosa súplica de solidariedade com Ele, no cúmulo das dores humanas que afligem o Seu divino Coração!
“A minha realeza não é deste mundo!”
É a palavra decisiva de Jesus, para que os detentores do poder não só não tenham medo d’Ele, mas também desistam de querer manipulá-Lo ao serviço das suas ambições.
E fico a pensar que é também a palavra que me compromete a fazer por esse “reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”, o que posso fazer agora, não o que poderia fazer se… Tantos condicionais a que recorremos, para ficarmos parados, inactivos.
Agora, nas minhas condições físicas e morais, com a idade que tenho e os problemas que me traz: dando-Lhe tudo, a começar pelo esforço alegre de facilitar o trabalho de quem cuida de mim. Porque tenho de abrir os olhos e ver como também no coração dessas pessoas, apesar de todos os pesares, lateja o coração do divino Mestre, cheio de amor e esmagado de dor por quem sofre, neste mundo, do qual não é o Seu Reino, mas no qual ele está.