No dia em que se completam 186 anos sobre a morte de um missionário francês, martirizado no Celeste Império (China), aos 36, começo por recordar algumas das considerações que ele fez no seu atroz cativeiro, que durou oito meses:
“Não podemos salvar-nos senão conformando-nos com Jesus Cristo. Depois da morte não se nos perguntará se ocupámos lugares importantes, se alcançámos a estima das pessoas; mas perguntar-nos-ão se procurámos conhecer e imitar Jesus Cristo.
Se Deus não encontrar em nós algum traço do Modelo divino, seremos inevitavelmente rejeitados; mas se nos conformarmos com este Modelo, seremos glorificados: os santos no céu não são mais do que imagens de Cristo glorificado, como na terra o foram de Cristo sofredor e entregue à realização da sua missão” (S. João Gabriel P.).
Passo por São Paulo, a caminho de São Lucas, ao qual junto São Mateus:
“O que tenho a dizer-vos, irmãos, é que o tempo é breve. Doravante, os que têm esposas procedam como se as não tivessem; os que choram, como se não chorassem” (1 Cor 7, 25.29-30)
“Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir.
Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis!” (Lucas, passim).
“Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados” (Mt 5, 4).
Finalmente, para não me alongar demasiado, da imensa floresta de textos bíblicos, patrísticos, teológicos e do Magistério que, de uma maneira ou de outra, abordam este tema, um trecho de São Bernardo:
“Ora o primeiro grau da contemplação, irmãos caríssimos, consiste em considerar atentamente qual é a vontade do Senhor, o que Lhe agrada, o que é bom a seus olhos. Mas todos cometemos muitas faltas e o nosso esforço ofende muitas vezes a sua santíssima vontade, em vez de se conformar fielmente com o que o Senhor deseja. Humilhemo-nos, portanto, sob a poderosa mão do Deus altíssimo e procuremos reconhecer e apresentar sinceramente a nossa miséria ante os olhos da sua misericórdia, dizendo: Curai-me, Senhor, e ficarei curado; salvai me e serei salvo; e também: Senhor, tende piedade de mim; curai me porque pequei contra Vós” (Sermo 5 de diversis, 4-5).
Assim que deste grande teólogo, místico e lutador do século XII, retiro o que, no meio da floresta interminável e manipulada dos contextos aplicáveis às citações feitas, escolho o que, em meu entender dá sentido a todos eles, integrando-os no que à hora da sua morte, confortava o mártir São João Gabriel e todos os que, como ele, se esforçaram por “ser imagem de Cristo sofredor e entregue à realização da sua missão”.
São Paulo, que escreveu aos Filipenses: “De resto, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que possa ser virtude e mereça louvor, tende isso em mente. E o que aprendestes e recebestes, ouvistes de mim e vistes em mim, ponde isso em prática. Então, o Deus da paz estará convosco” (4, 8-9); São Paulo que escreveu isto, é o autor do trecho da Carta aos Coríntios, em parte, citado acima:
“O que tenho a dizer-vos, irmãos, é que o tempo é breve. De agora em diante, os que têm mulher, vivam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se não o usufruíssem plenamente. Porque este mundo de aparências está a terminar.”
Qualquer dos textos tem sido e certamente continuará a ser objecto de inúmeros e variados comentários, incluindo a interpretação autorizada de documentos oficiais da Igreja; mas o que sempre vem ao de cima, com grave prejuízo das consciências, cuja serenidade o mesmo Paulo defende com veemência noutros passos da mesma carta, o que vem ao de cima muitas vezes, são leituras de partes desgarradas, com manipulações que vão ao ponto de acusar o autor sagrado de extremismos opostos por ele próprio condenados.
O que geralmente se descuida, em tais comentários – para falarmos apenas dos descuidos – é a coerência da fé, à luz da qual temos de saber integrar – não ignorar, nem exagerar – os diferentes contextos, que variam tanto, quanto variam os homens, ou, para sermos mais exactos, as circunstâncias do seu existir histórico.
Existir que foi assumido por Deus no mistério da Encarnação, que, como nos diz ainda São Paulo, é um mistério de obediência do Filho, “que é de condição divina, (mas) não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo.
Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, TORNANDO-SE OBEDIENTE ATÉ À MORTE E MORTE DE CRUZ” (Fil 2, 6-8).
Termino repetindo o já citado conselho de São Bernardo:
“Ora, o primeiro grau da contemplação, irmãos caríssimos, consiste em considerar atentamente qual é a vontade do Senhor, o que Lhe agrada, o que é bom a seus olhos”.