“Este é um dia grande, consagrado a Deus; não vos entristeçais, porque a alegria do SENHOR é que é a vossa força” (Neemias 8, 10).
“Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo o digo: alegrai-vos!” (Fil 4, 4)
Foi um dia em que acordei sob uma tentação que teimava esconder de todo o lusco-fusco da madrugada, ainda alta madrugada, que costuma ser testemunha do meu despertar para uma vida que agradeço a Deus, mas que dá cada vez mais sinais de como dependemos uns dos outros: e quando reparo no carinho com que as pessoas acorrem, assim, tão cedo, às minhas cada vez maiores deficiências físicas, vem-me normalmente uma grande alegria, não pelas dependências, mas por ver como Deus é fiel às suas promessas.
Hoje, porém, essa alegria esteve durante largos minutos sob a ameaça de uma tristeza que me assaltava de todos os lados, como algo irresistível, fatal, sem alternativa.
Veio depois a Eucaristia: a oração oblativa, a entrega e a morte do meu Deus feito homem… misteriosa actualização, pelas mãos de um pecador que, tão pobre, apenas podia repetir as palavras do ladrão arrependido: “Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino.» E tentar ouvir a resposta de Jesus: «Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc 23, 42-43).
Hoje, a eternidade absorvendo o tempo, pela morte do meu Deus, que se fez criatura para que as criaturas recuperassem a sua alegria!
É isso que explica o grito do Apóstolo, a partir da masmorra onde sofre pelo Evangelho, como que repetindo o que noutro contexto dissera o reconstrutor da Cidade Santa:
“Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo o digo: alegrai-vos!” (Fil 4, 4).
Não, meu caro padre João, não deixei de sentir dor e saudade pela tua partida!
Apenas reencontrei a verdadeira alegria, aquela que estava a esvair-se por entre as fendas provocadas por uma tristeza que não tinha em conta, como devia, o significado teológico daquelas palavras de Jesus: “A minha alma está numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai” (Mc 14, 34).
Claro, não era mortal a minha tristeza; mas ela estava lá, como todas as nossa dores e tristezas, donde a recomendação do Senhor: vigiar, estar atento, de coração voltado para Ele, porque só vigiando e orando descobrimos o verdadeiro significado das coisas, sobretudo as que mais nos surpreendem, por contrariarem o comodismo das nossas rotinas.
Posso até dizer que foi crescendo a saudade, à medida que reintegrava nas palavras do Mestre o que, durante tanto tempo, alguns anos da minha juventude, lutamos juntos, com alegrias e tristezas, pressões internas e externas, sempre ultrapassadas por uma amizade que alimentávamos com a fé e o desejo de sermos fiéis ao que a Igreja nos pedia.
E foi ainda para sermos fiéis à Igreja que nos separámos durante alguns anos.
Reencontrámo-nos pouco depois, procurando ajudar-nos mutuamente a reunir pedaços de sonhos que acabaram por não passar de sonhos, Deus seja louvado!
Pena, que tenhas chegado a esta Casa, que foi também um dos sonhos do teu espírito apostólico, fraterno e sacerdotal, pena que tenhas chegado cá tão tarde, quando não podias já gozar do bem que ela tem sido para tanta gente, e com dificuldades que te impediam de nos dar algo do muito que, vindo mais cedo, terias podido dar aos que já cá estavam.
Consola-me saber que os últimos teus últimos dias, passados num quarto vizinho do meu, foram acompanhados de um cuidado profissional e carinho humano que não terias noutro lado e certamente correspondia aos votos com que tu e os que te acompanharam na erecção desta obra, serviram de força para não desistirem nunca.
Pela fé com que sempre me edificaste, não duvido de que tenhas já ouvido, em tradução adequada, como só Deus sabe fazer, o convite recolhido por São Mateus no seu Evangelho:
“O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo” (Mt 25, 34).
Aí, onde te encontras, pela infinita misericórdia divina e tua fidelidade, não te esqueças de nós: os que ficamos nesta à espera de ouvir o mesmo convite do Senhor e todos os outros, sobretudo os sacerdotes desta diocese, que serviste com tanto esmero.
Que nenhum de nós, seja qual for a sua condição ou dever ministerial, se esqueça de que não se chega ao Reino senão pela porta estreita, que ó se encontra e se abre pela oração, sem a qual, mesmo a alegria que porventura acompanhe certos êxitos pode ser enganosa.
E que não tenham medo de, na altura devida, continuar o seu ministério nesta Casa, criada para eles e onde se pode envelhecer sem ficar velho.
Querido padre João, até breve!