Quem viveu os tempos – não me refiro apenas aos anos, que também já perfazem uma bonita conta – quem viveu os tempos que eu já vivi, se quisesse enumerar as maravilhas que a bondade de Deus o ajudou a descobrir, nunca mais acabaria.
Desde a mais tenra infância – quando eram sobretudo as lágrimas dos adultos que me comoviam – até à idade adulta, quando o sofrimento alheio acabava sempre por me parecer maior que o meu: tantos momentos em que pressentia que o que Deus me pedia era mais coração que discursos, que nunca me pareciam adequados diante da dor alheia.
E todos sabem que ninguém como o padre, mesmo se com reduzida actividade pastoral, passa a vida em contacto com o sofrimento humano.
Chegado a esta altura, quando pouco falta para se concluírem as oito décadas e meia, não cometeria nenhum exagero se dissesse que a bondade divina, mais curva menos curva, com algumas sombras pelo meio, e um ou outro trasvio, sempre me ajudou na descoberta das belezas que Ele lançou na Criação: as coisas belas, mas sobretudo os gestos por onde descobrimos encantos inesperados.
É certo que muitos desses encantos, sobretudo se vindos dos que me ajudaram a percorrer os caminhos da vida, pais, irmãos, educadores e mestres, só depois de terem passado, os levei na devida conta; mas fica deles o fascínio que nasce da saudade, às vezes com um certo remorso, porque não fui tão agradecido como devia. E vou pensando que também isto tem uma beleza que só Deus nos pode ajudar a ver com tanta luminosidade; só Ele pode trazer-nos essa ajuda, para nos não deixarmos perder nas trevas que tantos fogachos de cemitério – aqueles fogos fátuos que horrorizavam a minha infância – teimam em lançar sobre nós.
Tem-me feito um bem imenso, desde que, vai para dois anos, comecei a viver com outro estatuto, tem me feito um bem imenso olhar com a gratidão de quem recebe sem merecer, os gestos, mesmo quando materialmente profissionais, com que as pessoas me ajudam a envelhecer, sem ficar velho, como gostava de repetir aos familiares e amigos que me visitavam.
Depois veio a pandemia: acabaram-se as visitas, mas o espaço de revelação das belezas do coração humano, alargou-se, tomou as dimensões do mundo, e se deixei de seguir os telejornais, não foi para esconder a cabeça na areia, como a avestruz: foi porque não se falava do que era urgente falar e se mostrava um mundo que parecia abandonado por Deus, quando os sinais da Sua presença se tornavam tão evidentes.
Pessoa amiga trouxe-me há dias – mais um gesto de pura amizade que me faz ver como Deus é bom – o último livro editado em português, de José Tolentino Mendonça. Não dou o título porque, embora se explique muito bem pelo conteúdo, principalmente tendo em conta a linguagem habitual do autor, poderia induzir em erro quem não esteja familiarizado com essa linguagem. Direi apenas que considero este livrinho (ele tem pouco mais de cento e vinte páginas), uma jóia preciosíssima, que agradeço a Deus, juntamente com a amizade que a fez vir até mim.
Apeteceu-me copiar para aqui o último capítulo, que, tendo como fundo o Evangelho de São Mateus (6, 28), se intitula, “OLHAR OS LÍRIOS DO CAMPO: A BELEZA DE QUE SOMOS PROTAGONISTAS”.
Como ocuparia demasiado espaço, ainda que menos do que merece, limito-me a copiar, com a devida vénia, o último parágrafo:
“Uma última palavra para dizer que este também é o tempo para descobrir a beleza de que cada um de nós pode ser protagonista: a beleza do cuidado e da compaixão. Este é o tempo em que o coração humano precisa de ser consolado – há tantos corações que precisam de ser consolados! Não pensemos só no nosso coração.”
(este texto foi retirado da página do autor)