Não é a primeira vez que escrevo aqui sobre as lágrimas.
Não é a primeira vez, nem será talvez a última.
Não. não é isso, que estão talvez a pensar alguns dos amigos que me conhecem há mis tempo: cedência à velha tendência para realçar os aspectos negativos da vida, em vez de contemplar as belezas que comporta.
Não discuto se essa imagem que têm de mim é justa ou não; até porque se trata de conceitos abstractos que, como tais, nunca correspondem a uma verdade total. E as coisas correm ainda maior risco de erro, quando se trata de classificar pessoas, seguindo padrões que sempre têm muito de estereótipo.
Aliás, nunca mais acabaríamos se nos puséssemos a analisar em pormenor a teia de significados que, na nossa cultura, envolve o choro e as lágrimas; incluindo os preconceitos relacionados com uma certa visão machista da condição natural dos sexos. Por isso, quer se queira quer não, ainda hoje se toma o chorar como uma fraqueza.
Depois, tanto se pode chorar de tristeza como de alegria, e, segundo penso, não foi só para nos mostrar como Jesus comunga connosco nas dores humanas que o Evangelho registou algumas das suas mais visíveis comoções.
Mas não é disso que tenciono falar hoje, e também não queria enganar ninguém com o título das minhas reflexões: de facto, neste momento, respeitando o melhor que posso as lágrimas de qualquer mulher, a partir da sua condição de mãe, sem menosprezo pelo choro sincero de todas as outras, é o episódio contado por São Lucas e geralmente referido como “da ressurreição do filho da viúva de Naim”.
Sugerido pelo Directório Litúrgico como leitura alternativa para a memória de Santa Mónica, a cujas lágrimas e orações o próprio filho, Santo Agostinho, atribui o dom divino da sua conversão, veio-me à ideia que entre a liturgia, a tradição hagiográfica e as catequeses um pouco apressadas, alguns pormenores carregados de significado vão ficando de parte, até se esquecerem totalmente.
Diz assim o texto sagrado:
“Em multidão. seguida, dirigiu-se a uma cidade chamada Naim, com os seus discípulos e uma grande Quando estavam perto da porta da cidade, viram que levavam um defunto a sepultar, filho único de sua mãe, que era viúva; e, a acompanhá-la, vinha muita gente da cidade. Vendo-a, o Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: «Não chores.» Aproximando-se, tocou no caixão, e os que o transportavam pararam.
Disse então: «Jovem, Eu te ordeno: Levanta-te!» O morto sentou-se e começou a falar. E Jesus entregou-o à mãe.
O temor apoderou-se de todos, e davam glória a Deus, dizendo: «Surgiu entre nós um grande profeta e Deus visitou o seu povo!»
E a fama deste milagre espalhou-se pela Judeia e por toda a região” (Lc 7, 11-17).
Seguindo o conselho dos autores espirituais – ver, por exemplo, São Josemaria Escrivá de Balaguer, que recomenda a entrega a uma leitura diária do Evangelho, metendo-se em cada cena, como um personagem mais (Cfr “Sulco”, 672) – contemplo a cena, não para engrossar o grupo dos que tomam parte no funeral, mas para aprender com os gesto de Jesus, que, como pode deduzir-se do contexto narrativo, não ia lá para isso; mas Ele e os discípulos, “quando estavam perto da porta da cidade, viram que levavam um defunto a sepultar, filho único de sua mãe, que era viúva”.
Não. Não é um mero acaso, mas o permanente cruzar-se de Deus com as alegrias e as dores dos homens, nas curvas e encruzilhadas da história.
Para mim toda a cena, como cena evangélica, é um sinal; apetece-me dizer: uma metáfora da existência humana, que, desde a primeira tentativa da criatura para se apoderar do que não poderá nunca ter senão como dom, se desenrola inexoravelmente no meio das vicissitudes da luta entre a vida e a morte, luta só perceptível em toda a sua dimensão, com a luz da fé, que abrange, pelo menos implicitamente, a aceitação da ordem primitiva.
Nas lágrimas da viúva de Naim eu vejo a dor de todas as mães, viúvas ou não, que, por isto ou por aquilo, num golpe a que nunca faltará o mistério, fazem a experiência de um abandono que, afinal, se agrava com o ruído e a multidão anónima.
Mas vejo sobretudo as lágrimas das mães – e são tantas, Deus meu! – que assistem impotentes ao assassinato lento e progressivo de tudo quanto sonharam ao acolher com amor e entrega a nova vida de cuja presença se aperceberam dentro de si.
Jesus, “aproximando-se, tocou no caixão, e os que o transportavam pararam”.
Era estranho aquele gesto, que contrariava os costumes ancestrais. Foi pena que, dominados pelo espectáculo da “ressurreição” do jovem, tão poucos se tenham dado conta da ternura divina daquele “não chores!”, que, pronunciado ou não, será necessário para que quem sofre veja que só a comunhão com a sua dor nos move.