A 17 de janeiro de 1918, em Roma, o papa Bento XV promulgava, com as fórmulas próprias de um ato solene maior da chancelaria apostólica, a bula da restauração da diocese de Leiria. O original deste documento encontra-se no Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa. Na sequência de diligências levadas a cabo em ordem à publicação próxima (pela editora leiriense Textiverso) do respetivo fac-simile, foi possível localizar e reproduzir esta bula tão importante para a história da diocese de Leiria-Fátima.
Uma bula é um documento pontifício selado com uma «bulla» (bola), geralmente de chumbo nos atos pontifícios maiores ou, ainda, de prata ou de ouro em situações muito especiais, que servia à validação oficial das litterae ou cartas e decretos adequados à publicação dos atos apostólicos legislativos vinculativos. A designação de bula, na tradição diplomática e paleográfica, aplica-se à generalidade dos documentos papais mais importantes, muito embora haja várias categorias e tipologias documentais subjacentes. No fim da Idade Média surgiram os breves (litterae breves) e, ainda, os motu proprios, geralmente selados com o selo de cera chamado “anel do pescador”, forma de autenticação mais privativa de cada sumo pontífice.
Trata-se de documentos com forma extrínseca ou material de aparato, geralmente em pergaminho, abrindo com letras belamente ornamentadas e fechando com a aposição da rota, nas bulas mais antigas, das assinaturas autógrafas do papa e dos cardeais e demais oficiais da chancelaria apostólica e, finalmente, pela aposição do selo pendente com as efígies de S. Pedro e de S. Paulo, e a inscrição, na face oposta, do nome do sumo pontífice.
São especialmente importantes, para a história de Portugal, por exemplo, as bulas “Manifestis probatum”, promulgada em 1179, pelo papa Alexandre III, reconhecendo Portugal como reino cristão, e “Romanus pontifex”, de 1455, do papa Nicolau V, reconhecendo aos portugueses os direitos de conquista e vassalagem de todas as populações a sul do Cabo Bojador. Para o caso de Leiria, mais especificamente, há que reconhecer como documentos magnos dos seus anais os decretos pontifícios “Pro excellenti apostolicae sedis”, de 1545, pelo qual o Papa Paulo III criou a diocese leiriense, o da restauração da diocese por Bento XV, “Quo vehementius”, de 17 de janeiro de 1918, e o decreto da nova denominação da Diocese de Leiria-Fátima, promulgado a 13 de maio de 1984, pelo Santo Padre Papa João Paulo II.
Observando todas as formalidades próprias da chancelaria apostólica, a bula ou letra apostólica “Quo vehementius“, de restauração da diocese de Leiria, foi escrita em latim, em pergaminho, revestindo a forma de caderno, com o selo de chumbo do Papa Bento XV pendente por fita de seda branca. O seu fólio de abertura, página belamente iluminada, desenhada e pintada pelo calígrafo e escriba apostólico Odoardo Palma, anuncia, em letras iluminadas a azul e vermelho, a intitulação pontifícia: “BENEDICTUS Episcopus Servus Servorum Dei“, para afirmar, de imediato, que é documento “Ad Perpetuam Rei Memoriam”. Segue-se, de imediato, em caligrafia moderna, a exposição do contexto do ato apostólico: “Quo vehementius Apostolica Sedes doluit, cum rerum circunstantiae die trigesima Septembris anni Domini millesimi octingentesimi octogesimi primi, Eam ad supprimendam induxerunt Leiriensem dioecesim, in Lusitania, quam Paulus Papa tertius die vigesima secunda Maii anni Domini millesimi quinquagesimi quadragesimi quinti erexerat; eo vel maius nunc gaudet, quod temporum adiuncta antiquam illam Cathedralem Ecclesiam in pristinum restituere sinant. Suffragantibus igitur antique illius dioeceseos fidelibus, Nos, Praedecessorum Nostrorum vestigiis inhaerentes, attentaque meditatione cogitantes quantum hoc fidei incremento ac evangelicae veritati proficeret, lacto animo vota ipsorum accepimus. Spiritualibus enim populorum necessitatibus, ex re et tempore, uberius consulere, semper Romanorum Pontificum fuit, divino illis collato munere suadente. Auditis itaque Reverendisismis Lusitaniae ordinariis (…)quorum hoc propius interest, ex eo quod antiqua Leiriensis dioecesis ipsorum ecclesias a felicie recordationis Leone Papa Decimo tertio, Praedecessore Nostro, multis ex causis, divisa fuerit; suppleto insuper, quatenus opus sit aliorum quorum interest (…)memoratam antiquam Leiriensem sedem iterum constituimus. (…) Urbem insuper principem Leiria in sedem episcopalem iterum erigimus, cum omnibus iuribus ac privilegiis (…).”
Restituía-se, assim, a diocese de Leiria, com as suas antigas 50 paróquias, a sua catedral debaixo do título de Nossa Senhora da Assunção, com cabido constituído por seis cónegos, dos quais duas dignidades, deão e chantre, observando-se o cânone 423 do Direito Canónico. Bento XV determinava, ainda, a imediata criação de um seminário diocesano, adscrevendo à mesa episcopal a quantia de 5000 libras, resultante de coleta levantada pelos párocos da antiga diocese. Leiria ficaria diocese sufragânea do Patriarcado de Lisboa. O Santo Padre cometeu, nesta mesma bula, a D. António Mendes Belo, cardeal de Lisboa, a tarefa da execução deste seu decreto pontifício, concluindo-se o mesmo com as cláusulas e fórmulas próprias da chancelaria.
A 4 de maio de 1918, em Lisboa, D. António Mendes Belo, efetivamente, dava início formal ao processo de restauração, para regozijo dos diocesanos leirienses, vindo a ser nomeado para primeiro bispo da Diocese, em 1920, o Senhor D. José Alves Correia da Silva. Completava-se, assim, o processo canónico de restituição a Leiria do seu antigo título e da sua secular dignidade de cidade e sede episcopal.
Saul António Gomes
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