Ali, nos arrabaldes da Batalha, no vale ao lado do que o rio Lena escolheu para se espraiar, nasceu, na segunda-feira de 5 de agosto, uma nova localidade. Como quem não quer a coisa, enquanto o diabo esfregou um olho, 1500 povoadores criaram as quatro aldeias que fazem parte da Vila Nova: a de Cá, a de Lá, a de Cima e a de Baixo. As designações simples, mas tão tradicionais, foram as que a Junta Regional de Leiria-Fátima do Corpo Nacional de Escutas escolheu para servir de orgânica a um imaginário que pretende voltar 100 anos atrás no tempo. Cada uma dessas quatro aldeias é formada pelos agrupamentos. Ou seja, todos os agrupamentos acampam juntos.
Está apresentada a edição 22 do acampamento dos escuteiros da Região de Leiria-Fátima, mais conhecida por Acareg. Esta atividade regional de grande envergadura, que mobiliza muitos meios e logística, teve a sua última edição há seis anos, em 2018. Normalmente seriam quatro anos, em alternância com o Acanac (Acampamento Nacional), não tivesse havido ali no meio uma pandemia de covid-19.
O local escolhido para o evento, que marca o início das comemorações do centenário da região escutista, foi a Quinta do Escuteiro. É aí que podemos ver instalados durante uma semana — até ao próximo domingo, dia 11 de agosto —, 33 agrupamentos ativos na região. O pleno só não é feito devido à ausência de um agrupamento, que está a atravessar um período menos bom.
Fazer escutismo é o jogo da vida
Mas — como diz a canção — falemos de coisas bem melhores… O Agrupamento 737, dos Marrazes, é um daqueles que está em todas. E o facto de fazerem este ano 50 anos de existência, ajuda a festa. Que o digam as exploradoras Leonor, Matilde e Lia que, sem pestanejar, quiseram falar connosco para dizer que está a ser uma experiência boa, fixe e gira. Lugares-comuns que se confirmam pela boa disposição estampada nos olhares e nos sorrisos. Aquele trio já é repetente nestas andanças, pois estiveram na edição anterior, há seis anos, quando ainda usavam o característico lenço amarelo dos lobitos.
Insistimos para desenvolverem a ideia… “Conviver com as pessoas da região, sei lá… fazer escutismo”, foi o que conseguimos desta vez. Mas, com alguma paciência, vamos lá… faltava explicar o que era fazer escutismo. “Amarrações, acampar…”, retorquiram.
A conversa continuou e ficámos a perceber que o gosto por ser escuteiro tem a ver, essencialmente, com as amizades que se constroem no movimento. E que os acampamentos, enquanto espaço de convívio, são o lugar ideal para aprofundar os laços de união que se criam. Dizem que o que levam no final é o coração cheio. Em contrapartida, a mochila vai um pouco mais vazia. O que faz sentido, já que uma delas já tinha perdido uma jarreteira e a outra já lhe faltava o garfo que compunha a marmita. “Então como é que comes?”, arriscámos. “Com o outro garfo!”. Toma!
Por falar em comida, é importante dizer que são os próprios agrupamentos que confecionam as suas refeições durante o acampamento. Mas há mais: é preciso “ganhar” moedas de troca para adquirirem os ingredientes. Tentemos explicar melhor: durante o dia, as diversas equipas de escuteiros vão fazendo as atividades que estão previstas no programa. Cada uma dessas atividades dá direito a uma determinada quantidade de “centavos”, que é a moeda do campo. Antes da preparação das refeições, vai ser necessário ir à “Junta de Freguesia” de Vila Nova para que carreguem cada centavo ganho no cartão que lhes foi entregue. Finalmente, com esse cartão, vão à “mercearia” do acampamento onde se abastecem com os alimentos pretendidos.
Cansaço positivo
Mário Sousa é chefe no agrupamento dos Marrazes. Como parece ser comum por estas bandas, isto do escutismo é febre que se espalha por toda a família. É por isso que, com o Mário, vieram também a esposa, a filha e o filho, na proporção de três chefes para um caminheiro. Os 11 anos que já leva de escutismo trouxeram-lhe dos melhores momentos que já experimentou. Nomeadamente, “o relacionamento com as pessoas, os trabalhos em grupo, a amizade que encontramos em toda a gente”, o que confirma o que o primeiro trio de correligionárias afirmou. Depois, “o que levo daqui é o que eu quero proporcionar a todos estes jovens: uma experiência que não conseguem em mais lado nenhum”. Se isto é cansativo? Sim, “mas é um cansaço positivo”.
Um dos cenários mais interessantes do Acareg é o “mar” de tendas que quase se perde de vista. Algumas delas destacam-se pelo engenho dos executantes, já que são aquilo a que chamam de “tendas elevadas”. Falamos de construções em madeira que criam plataformas apoiadas em estacas, onde se montam tendas. Este sistema traz duas vantagens: por um lado, podem pernoitar sem estar em contacto com o chão — o que é uma mais-valia em terrenos irregulares ou muito húmidos —, por outro lado, tem um espaço coberto debaixo das tendas que pode ser usado para diversas finalidades, como, por exemplo, sala de estar ou arrumos.
União que gera felicidade
Ivan e o Francisco são dois caminheiros que integram o contingente de quatro dezenas de escuteiros que veio de Monte Redondo. Embora admitindo algum cansaço devido às construções do primeiro dia, descrevem o ambiente como descontraído. Dizem que pertencem ao “melhor agrupamento da região”. O tom de brincadeira da afirmação sustenta-se por aquilo que eles chamam de união de grupo. “Às vezes, nós estamos em momentos de oração, todos em roda, e eu olho para trás e para a frente, e vejo que somos, assim, unidos”, partilha um deles.
Os dois já têm vários anos de escutismo e não descartam a possibilidade de continuar como dirigentes. A razão da sua permanência é simples e revela um pouco da essência do escutismo: gostam de ajudar os outros. “Acho que o principal papel do escuteiro é ajudar os outros, ajudar o próximo, e é por isso que estou aqui”, diz o Francisco. O Ivan complementa a ideia: “eu diria que somos escuteiros porque também somos pessoas que querem o melhor para a nossa comunidade”.
Entretanto, junta-se à conversa um dos chefes do agrupamento de Monte Redondo, o Ivo Viegas. Natural de Faro, onde já era escuteiro, casou com uma, na altura, escuteira, agora chefe, de Monte Redondo, com quem tem quatro filhos. Estão os seis no campo. O rosto transparece o orgulho de ser dirigente do Agrupamento 1054. “Vir com eles é cansativo, mas já temos uma certa disciplina, uma certa forma de trabalhar que faz com que seja relativamente fácil a nossa vida aqui no campo”, explica, acrescentando que “nós conseguimos adaptar-nos muito bem, vamos colaborando uns com os outros, não é malta que nos dificulta a vida”.
Para o Ivo, o CNE tem “uma utilidade imensa para a sociedade, sentimo-nos pessoas especiais, pessoas diferentes, pessoas que neste espaço encontram alguma realização de vida, por contribuirmos para que estes miúdos, estes jovens, possam um dia mais tarde ter um papel ativo na sociedade e que consigam ser mais felizes, consigam ter as escolhas certas para contribuírem, nos espaços onde se inserem, para a felicidade dos outros”. Conclui que “isto faz parte de uma ideia de construção de sociedade que temos e é para isso que trabalhamos e é isso que nos realiza”.
Até ao próximo domingo, a Quinta do Escuteiro, na Batalha, terá a vida que o binómio jovem escuteiro implica. Durante estes dias, quando passarem na estrada nacional ao lado do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, no sentido Porto-Lisboa, lembrem-se de olhar para o vale que se encontra à vossa esquerda: lá ao fundo verão o colorido das tendas que povoam Vila Nova. E lembrem-se que ali também está a ser feito o mundo novo.