O sol ainda espreitava timidamente por entre os edifícios históricos de Leiria quando as primeiras manchas de amarelo, verde, azul e vermelho começaram a pintar a Praça Papa Paulo VI. Como formigas organizadas, chegavam de todos os cantos da região — crianças, adolescentes e adultos carregando mochilas, sorrisos e a energia contagiante que só o espírito escutista consegue emanar. A cidade acordava para um fim de semana diferente: o Dia de B.P., uma celebração que, este ano, carregava um simbolismo duplo ao marcar também o centenário do escutismo na região de Leiria-Fátima.

Uma tenda, dois mil corações
No centro da praça, uma enorme tenda branca dominava a paisagem urbana. Por fora, uma estrutura simples; por dentro, o coração pulsante de uma celebração que reuniria dois mil escuteiros e centenas de pais durante dois dias intensos. Nas palavras do chefe regional Pedro Nogueira, aquele espaço transformara-se temporariamente na “nossa sede, o nosso campo de atividades”.
“Há 168 anos nascia B.P., que acabou por transformar o mundo e a vida de cada um de nós”, proclamou Nogueira na cerimónia de abertura, perante um mar de lenços coloridos e olhares atentos. “Ele acendeu uma fogueira que se alastrou pelo mundo e hoje cada um de nós é uma chama dessa fogueira que não devemos deixar apagar.”
A cidade transformada em campo de Jogos
Com a cerimónia de abertura concluída, Leiria assistiu a uma metamorfose. As ruas que normalmente serviam de passagem para rotinas quotidianas tornaram-se palco de jogos, risos e aprendizagens. Em cada esquina, uma nova aventura; em cada praça, um desafio diferente. Escuteiros de todas as idades — lobitos, exploradores, pioneiros e caminheiros — espalharam-se pelos quatro cantos da cidade, enquanto os habitantes locais observavam com curiosidade aquela invasão pacífica e colorida.
Maria, uma lobita de 9 anos, sorria enquanto tentava orientar-se com um mapa simplificado. “É a primeira vez que venho a Leiria, e estou a adorar! Já fizemos cinco jogos e conheci amigos de outros agrupamentos”, partilhava ela, ajustando o lenço amarelo ao pescoço antes de correr para o próximo ponto de atividade.
Um marco para a eternidade
Um dos momentos mais solenes do primeiro dia foi a inauguração de um monumento na rotunda da Cruz da Areia, próxima da sede da Junta Regional do CNE. Concebido pelo arquiteto marinhense Humberto Dias, o marco não é apenas uma estrutura física, mas um símbolo da jornada centenária do escutismo na região.
“Desde ontem que o escutismo fica finalmente assinalado na nossa cidade”, explicaria mais tarde Pedro Nogueira. “Esperemos que fique mais de 100 anos, 200, 300, aqueles que ficarem, como memento a comemorar este dia do B.P. do Centenário.”
Enquanto as autoridades descerram a placa comemorativa, João, um pioneiro de 15 anos, observava com atenção. “É fixe pensar que daqui a muitos anos, outros escuteiros vão passar por aqui e ver este monumento”, refletiu. “Talvez os meus filhos, um dia.”
A noite que iluminou Leiria
À medida que o sol se punha, a atividade não diminuía. Após o jantar, os escuteiros reuniram-se para um tradicional Fogo de Conselho. Não havia chamas reais, mas era evidente o calor da amizade e da partilha.
Canções escutistas ecoavam pela noite leiriense, enquanto encenações humorísticos arrancavam gargalhadas que podiam ser ouvidas à distância. O fogo do alegria dançava nos rostos jovens, criando um momento de magia coletiva que parecia suspender o tempo.
Pais e filhos: uma ponte de gerações
No domingo, a manhã começou cedo. Após o pequeno-almoço nos locais de pernoita, os escuteiros voltaram a inundar as ruas para jogos dedicados ao Centenário da Região. Este dia trazia os participantes tradicionais: a presença ativa dos pais, que participaram em fóruns e jogos especialmente concebidos para eles.
“O trabalho que o escutismo faz convosco, crianças, é muito importante para aquilo que é a grande tenda, que é a nossa região e o nosso país”, destacaria mais tarde Gonçalo Lopes, presidente da Câmara Municipal de Leiria, agradecendo aos “pais que confiam no movimento do escutismo”.
Este envolvimento familiar revelou-se especialmente significativo nos dois fóruns realizados: “Ameaças atrás do ecrã”, conduzido pelo inspetor Nobre Francisco da Polícia Judiciária, e “Escutismo que transforma”, pela psicóloga e antiga dirigente do CNE, Olga Cunha. Ambos sublinharam a importância do escutismo como força protetora e transformadora numa sociedade digital cada vez mais complexa.
A Eucaristia: o coração da celebração
Depois do almoço, a tarde de domingo culminou com a Eucaristia celebrada por D. José Ornelas, bispo da diocese de Leiria-Fátima. Na sua homilia, teceu um paralelo entre os valores escutistas e a mensagem cristã de reconciliação e construção da paz.
“Isso é aquilo que constitui o ideal do Escutismo”, proclamou D. José Ornelas. “Vocês, desde os mais pequenos, os lobitos, até os mais crescidos, aprendem a trabalhar juntos. São sempre da mesma opinião? Não. Mas a gente é capaz de sentar e dizer: ‘Tu vais fazer isto, tu vais fazer aquilo, tu vais fazer aquilo e nós construímos a nossa tenda. Nós realizamos as nossas atividades. Nós criamos um mundo melhor para todos’.”
Foi quando D. José Ornelas começou a falar de perdão e reconciliação que sua homilia ganhou uma dimensão especialmente cativante para os mais jovens. Para isso, o bispo recorreu a uma imagem simples, mas poderosa:
“Tem uma história que é muito bonita de entender. Vocês, que são escuteiros, andam por aí fora e sabem que gostam de fazer coisas na natureza. Já experimentaram lançar uma pedrinha para o meio de um lago que está todo quietinho?”
Neste momento, dezenas de cabeças acenaram afirmativamente. A experiência era familiar para quase todos ali presentes.
“Lançam uma pedra para o meio da água e ela começa a fazer um círculo, e mais um círculo, e mais um círculo. E daqui a bocadinho está o lago todo a mexer de uma pedrinha que se lançou. Experimentem fazer, experimentem. Isto é o bem ou o mal que a gente faz.”
A analogia era perfeita em sua simplicidade. Nos rostos dos lobitos — os escuteiros mais novos, entre 6 e 10 anos — via-se o brilho do entendimento. Mesmo os conceitos mais complexos tornavam-se acessíveis através daquelas imagens concretas, tiradas de experiências que qualquer escuteiro podia reconhecer.
https://youtu.be/fmx-xYnf5Yk
A bomba atómica do bem
Mas foi a metáfora seguinte que causou ainda mais impacto. Citando Raul Follereau, o “apóstolo dos leprosos”, D. José Ornelas apresentou um paradoxo fascinante: a bomba atómica como metáfora para o bem.
“Vejam, o bem que a gente faz, o ir ao encontro dos outros, é como a bomba atómica.” A comparação inusitada arrancou expressões de surpresa. “Sabem qual é o princípio da bomba atómica? Tem um átomo que explode e faz explodir os outros à volta. Estes fazem explodir os outros, os outros, os outros, e dá-se uma grande explosão que destrói tudo.”
“A bomba atómica, diz ele, é a imagem daquilo que é o bem e o mal na humanidade. Quando alguém faz o bem, esse bem multiplica-se e cria a bomba atómica do bem. Quando alguém faz o mal, vai dar outras reações de mal.”
A metáfora, poderosa em sua contradição aparente, transformava um símbolo de destruição em uma imagem de esperança e mudança positiva. De repente, cada pequena boa ação ganhava uma dimensão muito maior — uma reação em cadeia capaz de transformar comunidades inteiras.
D. José Ornelas também não se esqueceu de trazer para sua homilia um dos temas mais dolorosos da atualidade: o conflito na Faixa de Gaza.
“O que é que está acontecendo agora? Vocês lembram-se do que está acontecendo agora na Faixa de Gaza? Uma guerra que já matou 40 mil pessoas e muitas mulheres e crianças, como nós.”
A referência a um conflito contemporâneo trouxe uma dimensão concreta às reflexões sobre paz e reconciliação. Não se tratava apenas de ideais abstratos, mas de realidades urgentes que pediam respostas também dos escuteiros.
“A palavra de Jesus de dizer que é preciso contrapor ao mal o bem. À bomba atómica do mal responder com a bomba atómica do bem, do perdão, da reconciliação, de sentar-se à mesa e de encontrar capacidade de construir um mundo melhor.”
Um encerramento cheio de promessas
Com o fim da celebração, aproximava-se o momento de encerrar oficialmente a atividade. No seu discurso final, Pedro Nogueira agradeceu a todos os envolvidos: desde as entidades oficiais como a Câmara Municipal de Leiria e os serviços municipais, até cada escuteiro presente.
“Obrigado por cada sorriso, por cada gesto de alegria e animação”, disse, lembrando que “sem vocês, este esforço não teria valido a pena.”
Mas as suas palavras finais não foram de despedida, e sim de continuidade: “As celebrações do Centenário não acabaram, vão continuar. Este dia de B.P. deu-nos motivação para continuar… Daqui a um mês, no dia 20 de março, a região festeja 100 anos. 100 anos de histórias, 100 anos de atividades, 100 anos de sorrisos, 100 anos de alegria e 100 anos de crescimento.”
Um legado em movimento
Enquanto os dois mil escuteiros recolhiam suas mochilas nos locais de pernoita e preparavam-se para retornar às suas localidades, Leiria gradualmente voltava à normalidade. Mas algo havia mudado. Durante dois dias, a cidade fora testemunha de um movimento que, 168 anos após o nascimento do seu fundador e 100 anos após chegar à região, continua vivo e vibrante.
As palavras do chefe regional ressoavam no ar como uma promessa coletiva: “São 100 anos de uma fogueira que não queremos que se apague.”
E à medida que os últimos escuteiros deixavam a Praça Papa Paulo VI, era evidente que aquela chama, longe de se extinguir, continuava a arder intensamente no coração de cada um deles — pronta para iluminar os próximos 100 anos de escutismo na região de Leiria-Fátima.
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