Nos dias que percorreram a quadra natalícia as redes sociais tornaram viral um gesto mostrado numa reportagem televisiva num dos canais generalistas. Se a peça jornalística tinha tudo a ver com tempo que se vivia — a celebração da Missa do Galo na Sé de Lisboa —, já a imagem que circulava deixava muito a desejar no que diz respeito ao espírito que supostamente devia celebrar. Alguém, estando na fila a aguardar a sua vez de entrar no templo por causa das limitações impostas pela pandemia, à passagem da câmara de televisão teve a infeliz lembrança de mostrar ostensivamente o dedo médio da sua mão direita.
Certo e sabido é que tanta gente fez questão de não deixar passar em branco o meneio da senhora, a que se juntou a indiferença do transeunte que parece que a acompanhava, e deu asas à sua indignação onde hoje é mais costume fazê-lo: na internet. Desta maneira, um dedo apontado, que não se sabe por quê nem para quê, deu lugar a uma turba de dedos apontados: uns, ao gesto, outros, mais, à senhora, e outros, em bem maior número, à própria Igreja.
Sobre a surreal cena, há respostas que não são dadas. Sobretudo, desconhecem-se as razões e as motivações que levaram a proprietária do dedo a fazer tal gesto. Mas nem isso fez baixar o tom e a quantidade das acusações que se levantaram. Indiscriminadamente, fazem-se juízos de valor a propósito e a despropósito. No meio destes, são poucos os que levantam o dedo para pedir a palavra e chamar a atenção para o risco da avaliação errada. Entre eles, alguém sugeria a possibilidade de haver ali uma manifestação da sintomatologia de um síndrome de tourette que, como sabemos, se manifesta em palavras e tiques que fogem a qualquer normativo de aceitável convivência social. Embora a hipótese seja remota, fazia sentido para a chamada da atenção para a assinalável ignorância em que se situa a opinião pública em relação a todo este assunto.
Como cristãos, somos convidados a agir como o próprio Jesus Cristo nos ensina no Evangelho: acolher o pecador, rejeitar o pecado. Sim, a atitude é feia, censurável e repreensível. Quantos são os episódios no Evangelho em que o Mestre se depara com vidas de gestos feios e repreensíveis? Muitos. Todavia, em nenhum deles, daqueles que O quiseram conhecer apesar das suas próprias faltas, Jesus levantou qualquer dedo que fosse em direção ao faltoso, rejeitando a sua aproximação. Apontou, isso sim, a falta, e anotou a necessidade e a urgência de conversão.
A Igreja de que fazemos parte é de gente assim: que levanta os dedos errados e que aponta os alvos errados, como bem traduzem as palavras do evangelho “por que vês o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que tens no teu?” (Mt 7, 1-5).
Um dos pormenores da cena é a pose do companheiro de fila. Mesmo em segundo plano, não passa despercebida a sua atitude impávida e serena. Talvez o pensar na sua própria trave, não o levasse a recriminar a senhora. Talvez momentos mais tarde, de forma recatada, a chamasse a atenção para a sua falha, à boa maneira da correção fraterna cristã. Não sabemos, mas temos a certeza de que a Igreja é rica em bons exemplos que são dados nas sombras do respeito que cada um merece.
A nós, cabe-nos fazer o exame de consciência sobre como usamos os dedos das nossas mãos: a apontar caminhos de mudança ou a acusar quem, como nós faz parte da Igreja que se afirma pecadora. No final de contas, a cena que nos traz aqui, mais do que revelar a sua protagonista, revelará ainda mais a Igreja que somos, a Igreja que cada um é, na forma e no conteúdo da reação de cada um. Como modelo, temos o Cristo que acolhe e diz “não tornes a pecar”, que conta a história do filho pródigo que o Pai abraça de felicidade pelo seu regresso, que diz ao criminoso crucificado ao lado d’Ele “ainda hoje estarás comigo no paraíso”.
A este propósito, há perguntas a que os Evangelhos não dão resposta: o que aconteceu àqueles a quem Jesus disse “vai e não tornes a pecar”? Provavelmente, reincidiram; faz parte da natureza humana. O próprio Pedro fê-lo por três vezes. Mas, nem por isso, deixou de ter virado para si o olhar misericordioso e compassivo de Deus.