Continuamos a nossa leitura da encíclica do Papa Francisco, desta vez acompanhando o seu segundo capítulo que se centram naquilo que podemos chamar dimensões performativas do coração: «os gestos e as palavras de amor». A definição do Coração de Cristo que nos é oferecida neste texto do magistério dotam-no de uma dupla condição identitária, porque a declara como símbolo do «centro pessoal» de Jesus que engloba toda a sua comunicação com Deus e com o mundo reunida num modo inaudito de ser humano; e operacional porque se constitui a fonte «de onde brota o seu amor por nós» (DN 32) como lugar onde se afirma «o núcleo vivo do primeiro anúncio» (DN 32). Uma tal constatação do Santo Padre orienta-nos para uma abordagem central do coração de Jesus como fonte, e nascente do património da fé, donde brota a água viva «que mantém vivas as convicções cristãs» (DN 32). Ao decidir falar sobre o modo como os gestos de Jesus refletem o seu coração o pontífice exorta a uma consciência de humanidade novo, um jeito novo de se ser humano mais atento, mais disponível e mais corajoso diante dos desafios cada vez mais profundos surgidos da árdua economia do viver hodierno (cf. DN 33). Para o Coração de Deus nunca somos mercadorias que possam ser utilizadas de um modo instrumental, ele antes nos concebe como preciosidades tesouros dos quais cuida com amor (cf. DN 34). Uma tal densidade no cuidado contraria de um modo muito profundo a perspetiva competitiva do mundo de hoje onde cada um é treinado, desde muito cedo, para a competição, isto é, a sentir continuamente o irmão como o outro, o adversário e no contexto mais dramático e pós-pandémico uma espécie de lixo tóxico cujo contacto nos inabilita em ordem à «pureza legal» de uma aparente sanidade ritual (cf. DN 35).
Ainda neste número 35 o Papa exorta a encontrarmos no Coração de Jesus o modelo do coração de cada batizado que se diferencia da mole humana porque «está sempre à procura, sempre próximo, sempre aberto ao encontro» (DN 35).
O Coração de Jesus ensina que para curar é preciso exercer a proximidade indiscutível que caracteriza o sentido do tato, pois Deus não tem medo de se contaminar com as nossas moléstias, fraquezas ou enfermidades, antes lhe toca de modo profundo para operar o milagre da cura e tal qual «faz uma mãe, curo os doentes até com a própria saliva» (DN 36). Diante de um amor tão sublime não podemos deixar que Ele se torne para nós um estranho, daí que devamos cultivar o gosto que brota satisfação da necessidade de uma relação próxima, sentida e verdadeira que se fundamente no exercício do direito dominical que nos permite cultivar uma relação de amizade, amor e filiação que nos permite crescer na fé e no amor (cf. DN 36-37). Vemos ainda um profundo apelo ao resgatar da confiança que fora perdida na sequência de ações, gestos ou palavras ditas sem coração e que molestam a segurança e proteção inerente a uma relação de amor, amizade e respeito (cf. DN 37), sendo urgente resgatar a coerência inefável de uma vida bem gasta a amar (cf. DN 37-38). Como instrumentos para este exercício Francisco propõe-nos usar dos sentidos do corpo humano que, quando aplicados com amor, permitem ver mais longe, estar mais perto e amar mais profundamente. O olhar é um destes sentidos característicos do Coração de Jesus pois por meio dele se opera a eleição para uma nova vida, o discernimento sobre as verdadeiras intenções e até o amor misericordioso e compassivo de Deus: daí a proposta do olhar como instrumento ativo do amor do coração como nos é explicado nos números 39-42. Destes se destaca a importância do olhar como veículo de empatia gerada no ventre de uma persistente atenção aos irmãos, um remédio seguro para tempos em que «nos parece que somos ignorados por todos» (DN 40) tantas vezes nos esquecemos que Deus nos admira constantemente não de um modo vazio e infértil como se admiram as estrelas da cultura pop, mas no sentido de nos fazer sentir olhados com um amor profundo (cf. DN 41). Na perspetiva do Papa Francisco o olhar é ferramenta de salvação daí a importância de «prestar atenção» (DN 42) aos sinais camuflados do desalento existencial que se escondem tantas vez por baixo de uma couraça forjada de um «está tudo bem; vamos desandando, estou mais ou menos». Recordando que o Coração de Jesus é o lugar da promessa do descanso, do alívio e da consolação somos convidados a «recuperar a força e a paz» (DN 43) um convite sincero do Coração de Jesus para nos tomarmos capazes de gerir as nossas emoções uma vez «que a sua santidade não elimina os sentimentos» (DN 44) para ajudarmos a Igreja a lidar com as suas afeições como meio de aproximação aos corações que se deixaram desalentar diante dos aparentes fracassos da vida. Temos necessidade de experimentar o pranto sincero que nasce de um coração que não se envergonha de se sentir afetado com os dramas dos irmãos, e que o afirma solenemente na ostentação de uma ferida de amor que para além de água também chora sangue, isto é, a inteireza da nossa humanidade doada em benefício de todos (cf. DN 45) e que não se trata de um «mero romanticismo religioso» (DN 46) é sobretudo o real e verdadeiro significado do conceito de amor. A fechar este segundo capítulo o Papa apresenta-nos a síntese Paulina do amor como uma noção altruísta que se consumando numa abrangente alteridade também se declina no sentido restrito e pessoal da individualidade de cada ser humano: «Amou-me» de um modo pleno e sincero como maravilha gratuita do coração de Deus, que quer comigo partilhar a marca autêntica da relação trinitária entre as pessoas divinas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo.