“Para que, de uma forma gráfica, esta verdade ficasse bem gravada na vossa mente, preguei milhares de vezes que nós não temos um coração para amar a Deus e outro para amar as criaturas. Este nosso pobre coração feito de carne, ama com um carinho humano, que, se está unido ao amor de Cristo, também é amor sobrenatural. Essa, e não outra, é a caridade que temos de cultivar na alma, a qual nos levará a descobrir nos outros a imagem de Nosso Senhor” (S. Josemaria Escrivá: “Amigos de Deus”, 229)
“Coração”, é uma palavra que, se sairmos dos gabinetes médicos ou das cirurgias dos hospitais, pode designar um número infindável de coisas: tanta, que até chega a inverter antíteses como o ser bom e o ser mau. Assim, pode dizer-se que X é pessoa de bom coração, para definir um carácter excessivamente tímido, desinteressado, ou então, em sentido irónico, que é realmente mau.
Muita coisa, porque não somos capazes de falar do íntimo, daquilo que define o ser pessoal de cada um, sem usarmos a palavra “coração”.
Por isso, quando alguém, com a lucidez de Pascal, que foi talvez tão profundamente místico, como eminente matemático, diz que “o coração tem razões que a razão desconhece”, apesar do jogo que se permite com a palavra “razão”, não está a fazer humorismo barato, como certos comentários às vezes nos fariam crer: esta afirmação do grande pensador francês só será nova na clareza e manipulações a que tem sido submetida, depois de formulada: que o “coração tem razões que a razão não entende”, explica a maioria, se não a totalidade, daquilo que, ao longo da história são gestos e frutos de uma atitude verdadeiramente humana perante o mundo e a vida, sobretudo no pensamento e na arte.
É por isso que eu não entendo o preconceito cultural que reduz as lágrimas, de tristeza ou de alegria, a uma fraqueza feminina e leva muitas pessoas a esconder atrás de uns óculos escuros os seus olhos, quando teimam em chorar: não, não é, quanto a mim, uma fraqueza feminina, mas um momento em que a razão se torna mais tolerante com as razões do coração.
Vieram-me estes pensamentos, enquanto lia e meditava os textos da missa desta quarta-feira, cuja liturgia está, como a do resto da semana, recheada de referências ao Espírito Santo; estes pensamentos e uma certa inquietação, porque, em meu entender, sobretudo nas últimas décadas, tem-se guardado demasiado silêncio sobre o valor teológico e a necessidade do sentimento, bem enquadrado na ascese e piedade cristãs.
Em primeiro lugar, fixei-me naquela cena de Paulo–o grande Paulo, de que se tem dado uma imagem tão parcial, que muita gente hoje o calunia, chamando-lhe misógino, quando os textos do Novo Testamento que maior lugar dão a referências ao serviço da mulher na comunidade cristã, têm a sua responsabilidade -, este Paulo, despedindo-se da Igreja de Éfeso:
“Naqueles dias, disse Paulo aos responsáveis da Igreja de Éfeso: «Tende cuidado convosco e com todo o rebanho, do qual o Espírito Santo vos constituiu vigilantes para apascentardes a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com o sangue do seu próprio
(…) Sede vigilantes e lembrai-vos que, durante três anos, noite e dia, não cessei de exortar com lágrimas cada um de vós. Agora entrego- vos a Deus e à palavra da sua graça, que tem o poder de construir o edifício e conceder a herança a todos os santificados. (…) Dito isto, Paulo pôs-se de joelhos e orou com eles. Todos romperam em pranto e, lançando-se ao pescoço de Paulo, começaram a abraçá-lo, consternados sobretudo por ele lhes ter dito que não mais tornariam a ver o seu rosto. Em seguida, acompanharam-no até ao barco”.
Quem diria?
Paulo, o grande Paulo das extensas cartas aos Romanos e aos Coríntios, das palavras severas contra as desordens que começavam a instalar-se no seio das comunidades por ele fundadas e da coragem com que repreende Cefas do seu mau exemplo. Este Paulo, de joelhos, em plena praia de embarque – estava-se ainda muito longe dos cais modernos -, rezando com os pastores que ia deixar naquela Igreja e depois abraçando-os a todos, porque todos tinham rompido em abundante pranto!
Quem se atreveria a pensar que aqui, por uma narrativa inspirada, ainda por cima redigida, segundo cremos, por um dos companheiros mais fiéis do Apóstolo, temos uma espécie de pausa na evangelização?
Claro. Nem pausa, nem clímax. Apenas um momento em que se torna claro que o Evangelho é o caminho, o único caminho da verdadeira humanização: chorar de joelhos na praia, abraçar-se chorando na despedida, á natural, dirão alguns. De acordo, mas com o fogo sobrenatural que a todos anima, que penetra aqueles mesmo gestos, não é natural, nem comum.
“Este nosso pobre coração feito de carne, ama com um carinho humano, que, se está unido ao amor de Cristo, também é amor sobrenatural”.
Talvez possamos encontrar as raízes profundas desta análise, se houver tempo e espaço para falar da presença do coração, na parte final do quarto Evangelho.