Tentações de hoje: desconfiança, omnipotência e desespero

A liturgia da Palavra deste primeiro domingo da Quaresma, sobretudo a primeira leitura (Gn 2, 7-9; 3,1-7) e o evangelho (Mt 4, 1-11), constitui quase um pequeno tratado sobre a tentação.
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Hoje banaliza-se a tentação, qualifica-se na publicidade como “doce” ou “pura” e há quem pense que, se nos sabe bem, deixar-se levar por ela uma vez não faz mal. Jesus, porém, advertiu os seus discípulos: «Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é débil.» (Mt 26, 41). Preveniu-os assim para as fragilidades humanas que, através da tentação, podem levar ao mal para si e para outros. E mais ainda: ensinou-os no Pai Nosso a suplicar “não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal” (Mt 6,13).

A liturgia da Palavra deste primeiro domingo da Quaresma, sobretudo a primeira leitura (Gn 2, 7-9; 3,1-7) e o evangelho (Mt 4, 1-11), constitui quase um pequeno tratado sobre a tentação.

A narração da tentação e do pecado do livro do Génesis “é uma obra-prima de psicologia, uma sequência de sensações perfeitamente estudadas (v.6); porém o êxito do pecado consiste em comprovar a própria nudez – quer dizer, a nossa fragilidade, o estar inermes, derrotados –, que leva a sentir vergonha de si mesmo e a não poder suportar o olhar de Deus” (Lectio Divina para cada dia do ano, vol. 3, 46-47).

Respondo a algumas perguntas, tendo em conta o que me inspira a palavra de Deus referida.

O que é a tentação? É uma provocação do desejo para algo que nos parece um bem mas depois descobrimos ter sido iludidos caindo num engano, com consequências negativas na nossa vida. Pode acontecer em variados domínios: na orientação que assumimos, nos comportamentos pessoais, na apreciação sobre o valor das coisas e das pessoas, nas atitudes em relação aos outros e também na confiança e obediência a Deus e às suas palavras.

Como intervém em nós? À maneira de um vigarista: simpática, com falinhas mansas, fala-nos ao nosso jeito, aparenta conhecer coisas de nós e pessoas da nossa família, faz-nos propostas que nos cativam e seduzem. Capta a nossa confiança e depois induz-nos a fazer o que quer. E assim nos engana e prejudica. É deste modo age o demónio na tentação, a fim de nos levar à certa.
Que acontece se cedemos à tentação? Sentimo-nos enganados, humilhados, prejudicados e envergonhados. Descobrimos que estamos nus, como Eva e Adão, perdemos a paz e fugimos de Deus, pois a sua presença ou mesmo só o seu nome já nos incomoda. Pelo contrário, quem resiste à tentação como Jesus, que “era servido pelos anjos”, experimenta alegria, fica mais forte e experimenta a bênção de Deus sobre a sua vida, tornando-se mais capaz de viver uma relação fraterna com os outros e de grande confiança em Deus.

Quem é o tentador? Na Bíblia é apresentado com vários nomes: a serpente, satanás, o diabo, o demónio, o tentador, o inimigo, o homicida desde o princípio, o acusador ou o caluniador, o mentiroso, o divisor. Esta variedade significa que estamos perante a complexa esfera do mal de que Satanás é o responsável. “Os caminhos do mal representam todas aquelas atitudes que tendem a menosprezar o ser humano, a deprimi-lo, a degradá-lo, a desalentá-lo, traduzindo-se depois em teorias de ceticismo, de niilismo, de indiferentismo que chegam, inclusive, a desfrutar com o mal alheio. Os destintos nomes com que a Escritura denuncia a presença do adversário, concretizam-se em delitos, suicídios, em formas de vícios graves e de mútua supressão e oposição entre as pessoas” (C. M. Martini, Encontrarnos a nosostros mismos, p. 159). 

O tentador tanto pode estar dentro como fora de nós. Dentro temos pensamentos, imaginações, ambições, medos, frustrações, ressentimentos, ódio… que motivam, condicionam e determinam as nossas más atitudes e ações. Fora estão pessoas que nos dizem certas coisas, nos seduzem ou influenciam para comportamentos em que abdicamos da nossa liberdade e nos entregamos a vícios e caminhos errados. Fora estão também realidades ou bens que nos atraem e nos arrastam para o mal.

Como vencê-la? O exemplo de Jesus é significativo. Ele vence as tentações com a palavra de Deus, nunca se afastando de Deus e respondendo sempre em referência à vontade divina e não aos desejos de satisfação pessoal, poder ou busca de aplausos. Jesus preveniu e recomendou aos discípulos vigilância e oração para não caírem em tentação. Nós vencemo-la, portanto, com a vigilância, a escuta da Palavra de Deus, a oração pessoal e comunitária, o exercício do autodomínio e da busca constante da liberdade interior e a relação de amor ao próximo, sobretudo aos mais necessitados ou em sofrimento, prestando-lhe atenção e partilhando com eles bens e serviços. É esta a pedagogia que nos é proposta na Quaresma.

Que tentações se podem destacar hoje? Desconfiança, omnipotência e desespero.

Desconfiança em relação a Deus, aos homens e mulheres e a tudo, motivada pela nossa soberba ou pelas nossas deceções, não conseguindo dar a volta por cima. A desconfiança pode ser também em nós próprios, devido a frustrações e desilusões no que vivemos no passado ou nos nossos desejos.

A omnipotência é a tentação de não admitir limites à própria vontade, aos desejos. Consiste em viver na ilusão de tudo poder, saber e dominar, muito difundido hoje no mundo. É a afirmação dos próprios direitos e liberdade como um absoluto, sem a correspondente consciência dos deveres e responsabilidades pessoais e a necessidade de respeitar igualmente a consciência, os direitos e os deveres dos outros. Em tal afirmação ignora-se Deus e a dependência dele como Criador, Senhor e Pai.

O desespero pode ser a tentação que resulta das outras, especialmente quando se perdem pessoas, bens, saúde, expectativas e sentido para a vida. Pensa-se já não ter saída para o próprio drama ou não haver remédio para o seu mal. A nível espiritual, já não se acredita na possibilidade de perdão e de redenção. Esta tentação pode levar aos estados depressivos, ao suicídio ou outras formas de autoagressão, ao homicídio e a diferentes ações de violência contra os outros.

Para que serve a tentação? “A tentação é necessária porque depois da primeira queda, todos devem submeter-se à prova. O nosso coração adoece de inconstância e necessita de robustecer-se mediante uma terapia intensiva e estimulante: a tentação liberta novas e prodigiosas energias espirituais. O amor, na prova, purifica-se e fortalece-se. O Senhor promete-nos a sua ajuda: não seremos tentados acima das nossas forças”, mas dá-nos força suficientes para a superar (cf 1 Cor 10,13)” (A.M.Canopi, in “Lectio Divina para cada dia do ano”, vol. 3, p. 53).) Ela constitui, portanto, uma provação, podendo servir para crescermos e nos tornarmos mais fortes, aumentando a nossas capacidades. Pode por isso estimular a criatividade, a inteligência, orientar e fortalecer a vontade. Mas também é sinal da nossa vulnerabilidade, pelo que, se não estamos prevenidos e não temos dentro de nós os remédios e meios para não cedermos aos seus convites, mas sermos capazes de orientar o nosso desejo e a vontade para o bem, então deixamo-nos ir por ela e caímos no mal. Por isso, como citei acima, Jesus recomendou aos seus discípulos para vigiarem e orarem, ou seja, para fortalecerem o seu espírito, a fim de não cederem às debilidades da carne, ou seja, não às forças do mal.

A vida humana e cristã é sempre um combate contra o mal e em favor do bem. Se fixamos a mente, o coração e todo o nosso ser no objetivo do bem, conseguiremos vencer as tentações. Quando, por fraqueza, isso não acontece, há sempre a possibilidade de se levantar e ser curado pelo remédio da misericórdia de Deus e continuar o caminho para o objetivo que nos fixámos e para o qual Deus nos orienta e ampara. É por este caminho que nos tornamos vencedores e atingimos a plenitude de vida a que aspiramos.

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Captura de ecrã 2024-04-17, às 12.19.04

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