A Quaresma é um caminho. Não apenas uma sequência de dias, mas um itinerário interior, um tempo de travessia e de perguntas. Deus sussurra: “Onde estás?” (Gn 3,9). Não pergunta por um lugar, mas por um estado. Onde repousa o nosso coração? Que silêncio o habita? Que fronteiras ainda o detêm?
Há os que temem o caminho, enredados nas seguranças que ergueram. Construíram muralhas em torno de si, esquecendo que tudo o que se fecha acaba por sufocar. Outros confundem resistência com fidelidade, seguram com força o que já devia ter sido entregue, sem perceber que o que não se abre à vida, estagna. Mas o Evangelho recorda: “Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á” (Mt 16,25). Perder é, muitas vezes, o início de um reencontro.
Outros, como Judas, vivem a fidelidade como um jogo de equilíbrios. Permanecem, mas já não pertencem. Dizem-se comprometidos, mas mantêm um olhar de cálculo. “Porquê este desperdício?” (Mt 26,8), perguntam, sem compreender que amar é sempre, e necessariamente, um dom gratuito.
Há os que escolhem a força. Como Barrabás, confundem autoridade com domínio, liderança com imposição. Alimentam-se do clamor da multidão, convencidos de que o poder se mede pelo volume das vozes que os aclamam. Mas Jesus mostra um outro caminho. Diante da fúria, silencia-se. Diante da violência, entrega-se. A cruz, que parece fracasso, é o lugar onde o amor se torna invencível.
E há os que vivem fechados em si mesmos, prisioneiros do próprio reflexo. O egoísmo é um deserto estéril, onde nada floresce. “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos” (Mc 9,35). A Quaresma convida-nos a descentralizar-se, a reconhecer no outro o lugar onde Deus se manifesta.
A Quaresma interpela-nos: onde estamos? O que resiste pode aprender a confiar. O que impõe pode descobrir que Deus não se revela na tempestade, mas na brisa suave (1Rs 19,12). O que se fecha pode finalmente abrir os olhos e aprender a ver para além de si mesmo.
Ainda há tempo para mudar. Ainda há tempo para compreender que a lealdade vale mais do que qualquer vantagem momentânea. A conversão é sempre possível, mas exige coragem: coragem para soltar, para pedir perdão, para recomeçar.
Porém, este caminho não se faz sozinho. A conversão é pessoal, mas também comunitária. Há comunidades que se desgastam porque ninguém cede, porque todos se protegem nas suas certezas. Outras tornam-se rígidas, confundindo fidelidade com estagnação. Mas existem comunidades que renascem, onde a escuta e a humildade fazem florescer a esperança. “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estou no meio deles” (Mt 18,20).
Quaresma: O Tempo de Recomeçar
A Quaresma é um tempo de desaprender para reaprender, um deserto onde somos chamados a despirmo-nos das ilusões que nos prendem. Deus não pede mudanças superficiais, mas transformação autêntica. Converter-se não é acumular gestos piedosos, mas regressar ao essencial.
Jesus atravessou o deserto e, no silêncio, enfrentou as tentações do poder, da glória e do domínio (Mt 4,1-11). Também nós nos deparamos com tentações semelhantes: queremos controlar, ser reconhecidos, possuir. Mas Deus pede-nos outra coisa: desapego. Libertarmo-nos do medo que paralisa, do rancor que endurece, da vaidade que obscurece. Deixar para trás aquilo que já não dá vida.
Muitas vezes resistimos porque temos medo de perder. Mas o Evangelho é claro: “Quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á” (Lc 9,24). Perder, no olhar de Deus, não é ruína, mas abertura ao novo.
A Quaresma é tempo de reconhecer o que nos aprisiona e ter coragem de abrir as mãos. Muitos seguram o que já deveria ter sido entregue. Outros impõem-se pela força, acreditando que a rigidez os protegerá. Outros, consumidos pelo próprio ego, esquecem-se do outro. Mas a verdadeira conversão não está no controlo, na fuga ou na imposição. Está na liberdade de confiar e permitir que Deus conduza.
Nenhum deserto é atravessado sozinho. Há comunidades que se fragmentam pelo silêncio e pela divisão. Mas há aquelas que renascem, porque alguém teve coragem de dar o primeiro passo, de escutar, de reconciliar. “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles” (Mt 18,20). Deus manifesta-se no encontro e na partilha.
A Quaresma exige gestos concretos. Talvez seja tempo de pedir perdão. De libertar-se de ressentimentos. De arriscar um amor que não mede, não barganha, não calcula.
Porque o caminho não termina na renúncia. Termina na Páscoa. E só chega à ressurreição quem teve coragem de abrir as mãos para recomeçar.