O ESVAZIAMENTO DOS SÍMBOLOS

Minha mãe, quem é aquele

Pregado naquela cruz?

– Aquele, filho, é Jesus…

É a santa imagem dele!

E quem é Jesus? – É Deus!

E quem é Deus? – Quem nos cria,

Quem nos manda a luz do dia

E fez a terra e os céus;

E veio ensinar à gente

Que todos somos irmãos,

E devemos dar as mãos

Uns aos outros irmãmente:

Todo amor, todo bondade!

E morreu? – Para mostrar

Que a gente pela Verdade

Se deve deixar matar.

(João de Deus)

Sou do tempo em que, na minha aldeia, não havia uma única casa em que se não encontrasse uma imagem de Cristo morto na cruz: morto, porque a moda de O representar noutras condições – incluindo a de ressuscitado e glorioso-, ainda que respeitando a teologia, chegou muito mais tarde e, segundo me parece, não terá sido bem acolhida pelo povo cristão, sempre mais perto do instinto da fé do que as mentes demasiado distraídas com meandros conceptuais.

O crucifixo das casas da minha aldeia!

No decorrer normal dos dias, apesar de ocupar o centro das estampas – os “santinhos”, na linguagem do povo – passava talvez demasiado despercebido; mas era diante dele que se fazia a oração de toda a família.

Cristo morto na cruz: representações muitas vezes toscas, sem arte nem gosto, mas que inspiravam piedade e nunca faltavam sobre a parede do quarto onde se agonizava e morria.

Depois mudava-se para a sala onde se velava o cadáver; sala que que era quase sempre um espaço da própria casa, mais ou menos acanhado, consoante as posses do casal; ali, as pessoas entravam e saíam num silêncio recolhido, que só a oração comum quebrava de vez em quando.

Era pequenina a minha aldeia! Hoje, mais pobre e pequena ainda, porque quase não tem senão paredes caídas, agonizando, pela falta da única riqueza que embeleza o mundo: os velhos, os jovens e as crianças.

Porque era pequenina, e saí de lá muito cedo, poucas vezes fiz a experiência das idas e vindas a essas salas, com um caixão aberto no centro, janelas fechadas, quatro velas que ardiam como uma promessa de vida, e o tal crucifixo … no qual se reflectia a luz viva de uma lamparina improvisada, consumindo o azeite das oliveiras do quintal.

Não. Que me conste, não guardei qualquer trauma de tais visitas, onde o mais palpável, para mim, era uma espécie de neblina, para além da qual pressentia uma madrugada misteriosa, mas iluminada por um sol radiante.

A educação fez o resto. O estudo, a oração, os bons mestres, e a vida, com todo o tipo de altos e baixos da existência humana, cristã e sacerdotal; fui crescendo na percepção das profundas raízes que alimentavam a constante presença desses crucifixos nas casas da minha ladeia.

Pode parecer estanho, mas foi a sua imagem que me ajudou a perceber as cruzes e cruzeiros que fui encontrando por essa Europa fora, sobretudo na medida em que, pela sua simplicidade ou inesperada aparição, falavam com mais eloquência de uma fé que era também a minha.

“Minha mãe, quem é aquele / Pregado naquela cruz?

– Aquele, filho, é Jesus… /É a santa imagem dele!

E quem é Jesus? – É Deus!”

Creio que assim, ninguém achará estranho que este poema me tenha encantado desde o momento que tive a sorte de o ler, ainda nos bancos da escola.

E talvez também ninguém estranhe que experimente uma particular dor, quando, depois de olhar a imagem do meu Deus, assim, de olhos serrados, mas serenos, convidando-me a não me atormentar senão com o que é essencial, que eu sinta uma particular dor, pelo que se fez e continua a fazer deste e de tantos outros sinais de uma fé que, sem ferir ninguém, é um permanente apelo a morrer pela verdade.

Fala-se de inclusão; quando o que se está a fazer é a exclusão da maioria, num processo que acabará sempre por povoar os povos de criminosas exclusões.

Estamos a ser esmagados por uma multidão de ideologias que procuram esconder a crueldade da assimilação, escondendo-a sob a máscara da integração.

Quem não quiser ler o Evangelho, leia ao menos o belíssimo poema de João de Deus.

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