Ao falar do «Amor que dá de beber», o Papa propõe um regresso às fontes da Revelação Divina, nomeadamente à Sagrada Escritura e à Tradição viva da Igreja, onde se verte «o que o próprio Senhor nos quis dizer para toda a história» (DN 92). Trata-se de redescobrir aquele sabor vivificante da Palavra feita água que transforma e que propõe um caminho espiritual de salvação para os filhos de Deus.
Na verdade, o Coração de Jesus, enquanto fontanário do vivente, recupera a simbólica da água como sinal da presença salvífica de Deus no mundo. Assim, ter sede do amor de Deus torna-se uma consequência natural naquele que se sente amado. A prefiguração dos sacramentos na figura típica da água tirada da fonte reveste-se de um cunho messiânico, salutar e real (cf. DN 93). Esses textos, articulados com o caráter providencial da água na história e na cultura do povo de Israel, narram uma progressiva consciência da água como veículo de salvação. Recordemos as águas abertas para permitir a passagem do povo a pé enxuto, as águas que permitiram a navegação da arca pelo mundo ou a água do Jordão feita matéria para o batismo que João pregou. Na Sagrada Escritura, a água reveste-se de um caráter solene, como na festa das Tendas (cf. DN 94), que, no ápice da redenção, testemunhará a solenidade da entrega de Jesus na cruz, fluindo do seu lado aberto pela lança, «fonte donde brota a vida nova» (DN 96).
O Papa reforça que Jesus se insere neste caráter solene ao intervir no dia mais solene da festa, dizendo ao povo que celebrava na grande procissão: «Se alguém tem sede, venha a mim e beba, e hão de correr do seu coração rios de água viva» (cf. Jo 7, 37-38), inaugurando assim o paradigma do coração-fonte, que, ao ser imitado no amor, reconfigura tudo e todos pela partilha da mesma água viva (cf. DN 97). Esta mesma consciência reaparece nas figuras do Trespassado como a fonte aberta que clama por uma aproximação para partilhar gratuitamente a água do amor, ensinando um modo de ser humano radicalmente diferente (cf. DN 98), porque «o lado trespassado é ao mesmo tempo, a sede do amor, um amor que Deus declarou ao seu povo com tantas palavras diferentes» (DN 99).
Os profetas, como Oseias, falam dinamicamente do coração como sede do amor, uma espécie de instituição que narra, com sentimentos, o afeto que faz estremecer as restantes entranhas (cf. DN 100). O Coração de Jesus é a fonte que sacia todas as sedes, pois ele é a fonte de todo o amor puro e cristalino, como a água que sai de um coração que escreve na carne de Jesus a consumação de todas as profecias bíblicas (cf. DN 101). Santo Agostinho, diz o Papa, abre caminho para o entendimento do Coração de Jesus como um «lugar de encontro pessoal com o Senhor» (DN 103), capaz de ser pisado, frequentado e habitado tal qual o foram as imediações do poço de Sicar, as margens do mar da Galileia ou as montanhas (do Tabor, do Sermão e do Calvário), que inscrevem no tempo a possibilidade de «um encontro amoroso» (DN 103). Este encontro precisa ser conhecido, encostando nele a cabeça, como um gesto de piedade e de amor carregado de um profundo itinerário espiritual, experiência eclesial e fazer teológico.
Neste lugar, onde se sentem as doces fragrâncias da harmonia e dos melhores atributos da hospitalidade, ecoa um insistente convite a entrar para habitar sobre a rocha. Ali, Guilherme de Saint-Thierry vê restaurada a especial exigência do amor preternatural como condição ontológica do próprio ato criador (cf. DN 105).
São Bernardo, por sua vez, contempla o lado trespassado como meio de revelação explícita, uma espécie de sinal carregado de sentido «acessível a cada um de nós, e é possível fazer nosso o grande mistério do amor e da misericórdia» (DN 104). Assim, a chaga é um poderoso significante que é naturalmente sinónimo de pórtico, portal, ponte, passagem e até mesmo Páscoa. São Boaventura, diz o Papa, «une duas linhas espirituais em torno do Coração de Cristo: ao mesmo tempo que o apresenta como fonte dos sacramentos e da graça, propõe que esta contemplação se torne uma relação de amigos, um encontro pessoal de amor» (DN 106). Neste encontro entrevemos uma mística do namoro que principia na admiração contemplativa da beleza do amor sem medida encarnado em Jesus e vai até ao limiar da cruz, como expressão máxima de uma paixão verdadeira. Desta paixão, testemunham a água e o sangue que narram o ápice da gestação da Igreja e dos sacramentos dados à luz do coração-ventre do Senhor (cf. DN 107), os quais são sempre produto de um fértil encontro com o Coração de Jesus (cf. DN 108).
Ao refletir sobre a «difusão da devoção ao Coração de Cristo», o Papa Francisco entra pela porta do lado trespassado como expressão de uma geografia da eternidade «onde reside o amor de Cristo» (DN 109), lido como berço da vida e da graça. Assistimos assim a um progressivo desenhar das feições do coração, diz o Papa, «sobretudo na vida monástica» (DN 109), onde se operou um fenómeno de concentração simbólica no órgão físico, que lhe tolheu o sentido corpóreo e coincidiu com um aprofundamento teológico e espiritual da via contemplativa. Contudo, devemos ter a consciência de que este traçar da geometria do «culto ao Coração de Cristo não se manifestou de modo igual» (DN 109).
Visto tratar-se de uma devoção e culto dinâmicos que vão buscar à raiz bíblica todo o seu núcleo, faz com que tudo o resto sejam matizes, isto é, traços mais ou menos pessoais de uma relação ao mistério e à pessoa de Jesus, que se mantém abertos e prontos para o diálogo entre si. Nesta linha, é minha convicção de que estejamos diante de uma devoção polissémica, que assenta num relato polifónico de um encontro que se quer próximo, pessoal e singular do crente com Jesus-Amor (cf. DN 109). Aqui chegados, parece ser necessário identificar qual o objetivo para os trabalhos de aprofundamento da fé, esperança e amor que esta devoção continua a inspirar. O Papa evidencia, no final do número 109, que o desafio para estes tempos é clarificar, indo às origens bíblicas e da Tradição, para melhor cultuar. Este será o objeto de estudo nos números seguintes.