O coração: da sede da interioridade ao exercício bem-aventurado da humanidade  

A latência da questão de Jesus a Pedro sobre a autenticidade do amor que lhe nutria, pode bem descrever a saudável inquietação diante das linhas de pensamento propostas pelo Papa Francisco na encíclica «Amou-nos». Nesta linha, não podemos esquecer que o coração é sempre sinal de profundidade lavrada nos sulcos da anatomia humana e, por isso, escolhido recorrentemente «para exprimir o amor de Jesus Cristo» (Dilexit Nos 2 – DN). Recordar essa profundidade de entrega e amor é remédio «quando nos assalta a tentação da superficialidade» (DN 2).

O coração é ainda o lugar da sinceridade, pois é ele que nos faz corar nos momentos de insegurança e mentira e, por isso, se torna o lugar «onde não se pode enganar ou dissimular» (DN 4). Diz o pontífice que devemos regressar ao coração, voltar a falar dele como atributo comum a todos os seres humanos, dotado da necessária diferença que torna cada pessoa uma criatura única e irrepetível (cf. DN 9).

O coração é o palco onde levamos à cena a nossa história, feita de encontros e desencontros, como expressão poética da própria vida (cf. DN 11) e que constitui a dimensão pública do coração. Mas é igualmente o espaço da interioridade e da espiritualidade (cf. DN 12). O coração testemunha, na visão de Francisco, um lugar de ambivalência, onde a plasticidade estética da sua natureza arquetípica se molda harmonicamente às circunstâncias do exercício do viver humano.

Da sua capacidade em unificar os fragmentos, o Papa extrai a solução para o individualismo, pois um coração partido não pode ser considerado, uma vez que já não serve à sua missão de fazer «possível qualquer vínculo autêntico» (DN 17). Carregado de um mistério simbólico, o coração consegue sintetizar de modo paradoxal um cunho individual de «valorização do próprio ser e a abertura aos outros, entre o encontro muito pessoal consigo mesmo e o dom de si aos outros» (DN 18).

Na leitura deste texto do magistério, aprendemos que é a vida que dá sentido às coisas, e senti-las faz-se com o coração; sentir-se vivo faz-se com o coração e com a memória dos afetos que nele se guardam (cf. DN 20). Perdeu-se a empatia ao «ver as avós chorar sem que isso se torne intolerável, é sinal de um mundo sem coração» (DN 22).

A imagem do fogo, lida em ordem ao campo semântico do Sagrado Coração de Jesus, é a porta pela qual o Papa aborda a dimensão dos afetos como via e «origem de um novo “ordenamento da vida” a partir do coração» (DN 24), isto numa perspetiva inaciana. Não se trata de racionalizar os afetos, antes exortar à sua experiência e vivência como meio de sermos melhores pessoas e melhores cristãos.

O afeto é uma questão bidirecional, uma espécie de discurso direto com o amor que brota do coração de Deus «de um tu para um eu e de um eu para um tu», um «diálogo orante, de coração a coração, com Cristo vivo e presente» (DN 26). O primeiro capítulo termina com um conjunto de números sobre a dimensão social do Coração de Jesus, ao qual somos chamados a unir o nosso próprio coração como meio de operar um «milagre social»: um mundo de relações fraternas sãs, alegres e únicas, que conseguirão «construir neste mundo o Reino de amor e de Justiça» (DN 28).

Este sonho, que não deixa de cumprir a visão dehoniana do Coração de Jesus como motor de um «amor social», está disponível e atento às questões fraturantes do abandono, da exploração e da «indigência laboral tão precária quanto opressora». Em meio a um constante apelo a «regressar ao coração», Francisco adverte para os perigos de uma absolutização da sua dimensão individual, desligada dos irmãos, de Deus e do mundo, que fomente uma «geografia asséptica nos modos de relação» como fruto de um coração idolátrico, egoísta e autossuficiente (cf. DN 29).

Colocar os pés bem assentes na terra, como propõe o paradigma do mistério da encarnação, pode ser um princípio de aplicação dos ensinamentos do Coração de Jesus, a que o Papa faz um apelo concreto. Ter consciência das nossas próprias limitações, da necessidade que temos de ajudar e ser ajudados, imprime à nossa ação a prudência necessária para que «tenhamos a consciência de que o nosso coração não é autossuficiente; é frágil e ferido» (DN 30) e a entender que as chagas são a fronteira última da fragilidade humana, e que para além delas se abre a possibilidade de crescimento humano e espiritual.

Em jeito de balanço, o pontífice lança um apelo concreto à imitação das virtudes do Coração de Jesus como meio de recurso para o coração que nele confia e de quem recebe como retribuição «a mais alta plenitude que a humanidade pode atingir» (DN 30), sem esquecer que dele devemos aprender «os tesouros da sua luz e do seu amor, para que o nosso mundo, que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração» (DN 31).

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