Arte e património unem-se num apelo urgente pela recuperação de um edifício histórico do século XVII
A Igreja de São Pedro, em Leiria, acolheu no passado dia 7 de junho a inauguração da exposição “O clamor da ruína: que futuro para o antigo Seminário de Leiria?”, uma iniciativa que resulta da parceria entre o m|i|mo – museu da imagem em movimento do Município de Leiria e o Departamento do Património Cultural da Diocese de Leiria-Fátima. A mostra, que permanecerá patente até 30 de novembro de 2025, apresenta o trabalho do artista plástico Miguel Cardoso, desenvolvido durante uma residência artística, com curadoria de Marco Daniel Duarte.
Um laboratório de arte religiosa em acção
A exposição marca a primeira iniciativa pública do Laboratório de Arte Religiosa, um projecto inovador que nasce no contexto do plano estratégico cultural do município de Leiria. Como explicou Anabela Graça, vice-presidente da Câmara Municipal, este laboratório “pretende-se que se destaque não apenas pela sua abordagem teórica, científica, museográfica e programática, mas sobretudo pela forma como se constrói: com as pessoas e para as pessoas”.
O laboratório integra investigadores, artistas e membros da comunidade que representam um modelo de trabalho colaborativo que “rejeita a lógica unilateral da oferta institucional e promove, de forma activa, uma democracia cultural viva”.
“Mais do que um espaço de criação, trata-se de um espaço de encontro”, afirmou, destacando a articulação entre universidades, escolas, artistas e, sobretudo, a comunidade local. “O património religioso não pertence apenas aos espaços de culto ou aos museus. Vive nas comunidades, respira na fé, na história, nas memórias.”
O “elefante” na sala de Leiria
Marco Daniel Duarte, curador da exposição, foi directo na sua intervenção: “Se considerarmos Leiria como uma grande sala – um espaço comum, uma polis em que todos queremos viver –, há nela um elefante. Esse elefante é um edifício em ruína, do qual os leirienses guardam memórias”.
O antigo Seminário de Leiria, construído no século XVII por ordem do bispo D. José Alves Correia da Silva, no contexto da Reforma Tridentina, representa muito mais do que um simples edifício abandonado. Como sublinhou o curador, trata-se de um testemunho da “Leiria intelectual”, uma dimensão muitas vezes esquecida da identidade da cidade, que se dedicou à formação das elites eclesiásticas mas também de outros que não seguiram a via religiosa.
O trabalho fotográfico de Miguel Cardoso procura “escutar o silêncio do lugar” e interrogar o seu potencial de transformação. Durante as poucas horas que teve para fotografar o espaço, o artista descobriu uma “sacralidade que permanecia” e uma “perseverança da vida” manifestada através da natureza que foi tomando conta do edifício abandonado.
“Desde cadáveres de pombos a ninhos, até heras que saíam do edifício e o envolviam por fora, ou que entravam pelos menores buracos e vidros partidos… havia, naquele lugar, uma perseverança da vida”, partilhou Miguel Cardoso, explicando como procurou captar esta “tensão entre a beleza da custódia e a ruína do edifício”.
Um problema político e uma oportunidade cultural
D. José Ornelas, bispo da Diocese de Leiria-Fátima, foi claro ao classificar o estado do antigo seminário como “uma ferida aberta no meio da cidade”, mas também como “um desafio” que exige uma resposta da comunidade. Para o prelado, o edifício “não está limitado a ser novamente apenas um local de eventos religiosos” mas “está aberto à interpretação e à partilha de tudo o que diz respeito à condição humana”.
Gonçalo Lopes, Presidente da Câmara Municipal de Leiria, abordou directamente a questão da propriedade do edifício, que ainda pertence ao Ministério da Defesa. “Esta discussão é importante não só entre nós, que estamos de acordo, mas também para que chegue a quem tem poder de decisão e influência”, afirmou, defendendo que “se o património é da Igreja, então que regresse à Igreja”.
O autarca recordou os sucessos na recuperação de outros edifícios históricos da cidade – a igreja de São Pedro onde decorreu a inauguração, a igreja dentro do castelo, a igreja da Misericórdia e o antigo convento da Santa Casa – todos eles transferidos para a câmara sem custos de aquisição e recuperados com fundos comunitários.
Uma exposição com dimensão política
“Esta exposição tem um carácter político evidente”, assumiu Gonçalo Lopes, explicando que se trata de “um esforço de pressão saudável e construtiva” para resolver a situação do edifício. A estratégia passa não apenas pela recuperação arquitectónica, mas também pela criação de um pólo de atracção turística que complemente a oferta de Fátima, aproveitando o potencial da região.
A instalação artística de Miguel Cardoso reflecte simbolicamente esta tensão entre passado e futuro. As imagens penduradas remetem para as colchas das procissões, “uma forma de nós próprios tentarmos trazer de volta o Sagrado para dentro daquele espaço”. As fotografias de peças de arte sacra do Museu de Leiria foram dispostas como se fossem “elas a olhar para o interior do edifício – um olhar do Sagrado sobre nós e sobre o que estamos a fazer”.
A exposição “O clamor da ruína” apresenta-se assim como mais do que uma mostra artística – é um manifesto visual que questiona a responsabilidade colectiva perante o património e lança as bases para uma reflexão sobre o futuro cultural de Leiria. Como concluiu Miguel Cardoso, “espero que esta exposição possa ser o início de uma história maior, que ainda está por escrever”.
A entrada na exposição é gratuita, estando disponível informação adicional através do contacto mimo@cm-leiria.pt ou pelo telefone 244 839 675. A mostra permanecerá patente na Igreja de São Pedro até 30 de novembro de 2025, servindo simultaneamente como espaço expositivo e local para eventos culturais, mantendo assim viva a tradição de diálogo entre arte, património e comunidade.