A chuva não deu tréguas, mas a noite de 5 de março ficou marcada por passos firmes e corações dispostos a iniciar um novo caminho. No sopé do monte onde se ergue o Santuário de Nossa Senhora da Encarnação, em Leiria, o tempo adverso não foi suficiente para desencorajar os fiéis que, com velas a tremeluzir timidamente ao sabor do vento e da chuva, se dispuseram a percorrer, em reflexão e oracão, a subida que os separava do templo no alto. Começava assim a celebração da Quarta-Feira de Cinzas, o primeiro marco do tempo quaresmal.
Este ano, a peregrinação fez-se sem a presença habitual do bispo diocesano de Leiria-Fátima que preferiu não arriscar a saúde, mas nem por isso perdeu o sentido de unidade e propósito. Cada pedaço de caminho vencido parecia um reflexo das palavras que, mais tarde, iriam ecoar na homilia de D. José Ornelas: “A conversão é um caminho”. E foi assim, passo a passo, que os fiéis chegaram ao cimo, onde a luz quente do Santuário acolhia os peregrinos talvez molhados, mas perseverantes.
O chamamento à autenticidade
Já dentro do templo, cheio, respirava-se um ambiente solene, intensificado pela presença numerosa de jovens, cujo silêncio atento denunciava algo mais do que mera presença: uma sede de escuta, de sentido, de verdade. Era para eles e para todos que o bispo D. José Ornelas dirigia as suas palavras, centrando a sua homilia na essência da Quaresma: um caminho de conversão, mas não de tristeza.
“Seriedade não significa tristeza”, sublinhou. “Jesus vem mostrar-nos que há algo de sério e importante, sim, mas que conduz à alegria, à energia, ao futuro.” Num tempo em que a renúncia e a penitência podem parecer conceitos antiquados, o bispo esclarecia o verdadeiro significado desse compromisso. “O caminho que Deus traça é precisamente um caminho de verdadeira vida, de verdadeira felicidade.”
Falando com a proximidade que o caracteriza, D. José usou imagens próximas da realidade dos jovens. Comparou a renúncia aos excessos à luta contra os vícios que destroem a liberdade. “Pode parecer aliciante, mas, quanto mais se desenvolve esse interesse, mais se aproxima da negação de tudo, até da própria vida.”
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A conversão, explicou, é um ato autêntico, uma transformação do coração e não um teatro de penitência exterior. “Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes.” É fácil parecer bom, mas ser bom requer um esforço mais profundo. “Jesus fala da importância do segredo”, frisou, recordando a necessidade de orar com autenticidade, sem espectáculos.
E a partir dessa reflexão, veio o desafio: como criar relações verdadeiras num mundo cada vez mais digitalizado? “Hoje, muitos vivem isolados no seu computador ou telemóvel. Mas a verdadeira caminhada faz-se juntos.” O bispo abordou a sinodalidade – caminhar juntos – não como um conceito abstrato, mas como um compromisso a assumir em comunidade, seja na paróquia, na família ou entre amigos.

Cinzas e esperança
O ponto marcante da celebração chegou com o rito da imposição das cinzas: cada pessoa avançava para receber aquele pó que, paradoxalmente, lembrava a fragilidade da vida e a força do amor de Deus.
“Lembra-te que és pó e ao pó há de voltar.” Palavras que poderiam parecer sombrias, mas que, no contexto da homilia, ganhavam um novo brilho. “Ao recebermos hoje as cinzas, reconhecemos que, sem Deus, somos apenas pó. Mas é também a consciência de que, para Ele, esse ‘pó’ é precioso.” O bispo destacou que o objetivo da Quaresma não é o sofrimento pelo sofrimento, mas sim um caminho de dignificação e compromisso com um mundo melhor.
E como não poderia deixar de ser, D. José Ornelas ligou esta reflexão ao contexto global. Num mundo marcado por guerras e desigualdades, a conversão significa não apenas um compromisso pessoal, mas também um gesto de esperança coletiva.
A celebração terminou com um envio carregado de significado. Ao saírem do templo, os fiéis levavam nos rostos e nos corações a marca das cinzas, mas também o desafio de uma caminhada que apenas agora começava. O caminho da Quaresma, como frisou o bispo, é um caminho de verdade, de autenticidade, de amor. E, sobretudo, um caminho de esperança.