Para preparar a celebração o Dicastério para a Evangelização elaborou um subsídio litúrgico-pastoral que se encontra online e que pode ser descarregado gratuitamente. O documento, do qual foi extraído o presente texto, está disponível em italiano, inglês, espanhol, francês, português e polaco, e foi pensado para apoiar as comunidades paroquiais e as dioceses. A sua versão original e integral encontra-se aqui: http://l-f.pt/kihZ
Apresentação (Por Rino Fisichella)
Para viver a VI edição do Domingo da Palavra de Deus, que será celebrado em toda a Igreja no próximo dia 26 de janeiro de 2025, o Papa Francisco escolheu como lema as palavras do Salmista: “Espero na tua Palavra” (Sl 119,74). Trata-se de um grito de esperança: o homem, no momento da angústia, da tribulação, da falta de sentido, clama a Deus e põe nele toda a sua esperança.
É uma experiência profundamente humana, como é habitual encontrarmos no Saltério. Todos esperam, todos temos diversas esperanças, mas o que nos é comunicado neste Jubileu é a “Esperança”, no singular. Não se trata de uma ideia abstrata ou de um otimismo ingénuo, mas de uma pessoa, viva e presente na vida de cada um: Cristo crucificado e ressuscitado, o único que nunca nos abandona. A teologia paulina é muito clara neste ponto: “Cristo Jesus, nossa esperança” (1Tm 1,1).
Esta é uma certeza que é posta no nosso caminho. Nela devemos crescer sem nunca desviar o olhar da fidelidade de Deus: “Conservemos firmemente a profissão da nossa esperança, pois aquele que fez a promessa é fiel” (Heb 10,23). O facto de Deus ser fiel às suas promessas repete-se como um refrão do Antigo ao Novo Testamento e por isso podemos encher-nos de alegria e confiança. Sendo a certeza do cumprimento da promessa, a esperança cristã “não desilude”, porque nos é dada pela presença eficaz do Espírito Santo (cf. Rm 5,5). Eis a razão por que podemos esperar na sua Palavra. Bem o entendeu o apóstolo Pedro, quando afirmou: “Pela tua palavra, lançarei as redes” (Lc 5,5), o que significa: “Confio em ti”. A esperança que brota desta Palavra nasce da segurança da fé e confia-nos ao amor de Deus, que nunca se contradiz nem contradiz a promessa feita.
Um jubileu que, a cada 25 anos, bate à porta e nos provoca a levar a vida a sério oferece a oportunidade de manter o olhar fixo na esperança que traz consigo o realismo evangélico. O Domingo da Palavra de Deus permite aos cristãos reforçar, uma vez mais, o convite tenaz de Jesus a escutar e a guardar a sua Palavra, para oferecer ao mundo um testemunho de esperança que permita superar as dificuldades do momento presente. A Palavra de Deus não está confinada num livro, mas permanece viva e torna-se um sinal concreto e tangível. De facto, este Domingo provoca cada comunidade não só a anunciar a fé de sempre, mas sobretudo a comunicá-la com a convicção de que ela traz esperança a todos os que a escutam e a acolhem com um coração simples.
Cada realidade local poderá encontrar as formas mais adequadas e eficazes para viver este Domingo da melhor forma, fazendo “crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as sagradas Escrituras” (Aperuit illis, 15). Propomos este Subsídio pastoral como uma ajuda que queremos oferecer às comunidades paroquiais e àqueles que se reúnem para a celebração da Eucaristia dominical, para que este Domingo seja vivido intensamente, como parte integrante do Jubileu de 2025, cujo lema é Peregrinos de Esperança.
A PALAVRA DE DEUS: FONTE DE ESPERANÇA (por Mauro-Giuseppe Lepori OCist)
Talvez o homem que melhor compreendeu a relação entre a palavra de Deus e a esperança tenha sido um pagão, o centurião romano que, depois de ter suplicado a Jesus que curasse o seu servo doente, diante da disponibilidade imediata do Senhor, se declarou não digno que ele fosse a sua casa e lhe disse: “Diz uma só palavra e o meu servo será curado!” (Mt 8,8). Bastava-lhe uma palavra de Cristo para ter esperança certa na salvação que Ele operou.
A fé permitiu ao centurião compreender que o que suscita esperança na palavra de Deus é o facto de ser, precisamente, uma palavra de Deus, isto é, a palavra que Aquele que faz todas as coisas dirige pessoalmente à nossa necessidade de salvação e de vida eterna. Também Pedro o compreendeu num momento que poderia ter sido de desespero, porque todos tinham abandonado o Senhor e apenas alguns discípulos desajeitados e inseguros tinham ficado com Ele: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68). As palavras de Jesus permaneciam para Pedro e os seus companheiros como o último fio de esperança numa plenitude de vida que podiam esperar apenas de Deus.
Mas porquê e como a esperança de Pedro, como a do centurião, podia agarrar-se à palavra de Cristo? O que é que dá à palavra do Senhor esta potência, esta solidez que permite abandonar-se a ela com todo o peso da vida, com todo o peso da nossa vida que corre o risco de cair no desespero, na morte, no nada? O que é que permite a quem escuta esta palavra reconhecer que a Ele que a pronuncia se pode abandonar com toda a confiança?
Isto é possível se a palavra do Senhor chega ao coração não como promessa de algo, mas como promessa de alguém, e de alguém que ama a nossa vida com um amor omnipotente, que pode tudo por aqueles que ama e se confiam a Ele.
Muitos abandonaram Jesus, após o discurso sobre o pão da vida na sinagoga de Cafarnaum, dizendo: “Esta palavra é dura! Quem a pode escutar?” (Jo 6,60). Como é que a palavra de Jesus era para eles um motivo para se irem embora, quando para Pedro e os outros discípulos era a única razão para ficarem com ele?
O facto é que os primeiros tinham escutado a sua palavra, separando-a da sua fonte, o próprio Cristo. Pedro e os discípulos, pelo contrário, não podiam abstrair nenhuma palavra de Jesus da sua presença, isto é, da sua relação com Ele, da sua amizade.
A palavra de Deus pode ser fonte de esperança se para nós Deus permanece a fonte da própria palavra. Só se escutamos a palavra da voz do Verbo presente, que nos olha com amor, é que ela pode alimentar em nós uma esperança inabalável, porque fundada numa presença que nunca falha. A palavra de Deus é uma promessa na qual não só aquele que promete é fiel, mas permanece incluído na própria promessa, porque Cristo nos promete Ele mesmo. “E eis que estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo!” (Mt 28,20). A última palavra de Jesus, a última promessa antes de ascender ao céu, é a promessa de si mesmo à nossa vida, não só no fim dos tempos, mas cada dia, cada momento da vida.
Esta ligação indelével da palavra de Deus com a sua presença, tão radical desde que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14) até morrer na cruz por nós, é a consciência e a promessa de todo o Antigo Testamento. Como quando o Salmo 27 grita ao Senhor: “Se tu não me falas, sou como os que descem à sepultura!” (Sl 27,1). O homem tem dentro de si a consciência profunda, ontológica, de que, se Deus não lhe fala, se Deus não o cria a cada momento com a sua palavra, para ele é inevitável a morte, a dissolução da vida, porque Deus cria dizendo tudo no Verbo por meio do qual existem todas as coisas (cf. Jo 1,3).
Pode-se viver sem escutar a Palavra que nos faz com amor, mas assim faz-se experiência, como tantos hoje, de uma vida inconsistente, de uma vida dissipada, que escapa das nossas mãos incapazes de a segurar. Em vez disso, é-nos dada a graça de viver escutando, de viver no desejo de escutar o Senhor que está constantemente à porta da nossa liberdade, batendo e pedindo para entrar. É-nos dado viver escutando a sua voz que nos chama à comunhão com Ele (cf. Ap 3,20), a uma amizade infinita, permitindo assim que o Espírito gere em nós e entre nós uma vida nova, transbordante de esperança, não em alguma coisa, mas em Deus que cumpre a promessa da sua presença no mesmo instante em que a sua palavra a exprime.
“ESPERO NA TUA PALAVRA” (SAL 119,74) – LECTIO DIVINA (por Rosalba Manes)
ESPERAR NA PALAVRA QUE NÃO DESILUDE (SAL 119,74)
O Sl 119 (segundo a tradição hebraica) ou 118 (segundo a tradição greco-latina) é único: um acróstico alfabético de 176 versículos, construído segundo o alfabeto hebraico, composto por 22 letras. Cada estrofe corresponde a uma letra desse alfabeto e com essa letra começa a primeira palavra dos 8 versículos da estrofe.
O tema central deste Salmo é a Torah do Senhor, entendida como “ensinamento”, “ordem”, “promessa”, como “sinalética” para uma vida bem-sucedida e realizada. A Torahé revelação, é a Palavra de Deus que bate ao coração do homem e deseja uma resposta, que invoca uma escuta que se torna obediência confiante e criativa, amor dinâmico e generoso. O Sl 119 celebra, portanto, a vivacidade, a beleza, a força consoladora e a potência salvífica da Palavra de Deus, que é o segredo de uma existência feliz e a porta de acesso para a autêntica bem-aventurança.
O salmista considera a Palavra de Deus a “alegria do coração” (v. 111) e a sua “herança” (vv. 57.111). É por isso que ele espera nesta Palavra (v. 74). Esta Palavra, que é verdade e ordem, representa também uma promessa, a promessa da eterna presença ao nosso lado do Eterno Eu-contigo divino. Por isso, a Palavra do Senhor acredita-se (v. 42), ama-se (v. 97) e pede esperança (v. 74), aquela esperança que “não desilude” (Rm 5,5), porque toda a palavra do Senhor está destinada a cumprir-se com certeza. Por isso, o ano jubilar pode ser um momento propício para redescobrir a potência terapêutica e libertadora dos Salmos e do Saltério na celebração da Liturgia das Horas.
EM COLÓQUIO COM DEUS
Os Salmos são o testemunho do desejo humano de falar intercetando um Tu fortemente disponível para acolher desabafos, lágrimas, desilusões, descarrilamentos existenciais: o Deus Criador, Libertador, Providência, em poucas palavras, o Eterno Eu- contigo. O conjunto dos Salmos (Sefertehillim para os irmãos hebreus e Saltério para nós cristãos) testemunha a sede de eterno que habita o coração humano e que o leva a narrar e a confiar a Deus tudo o que vive. O homem dirige-se a Deus não porque é obrigado por um dever, mas porque o deseja livremente e fortemente. Este anélito nasce da sua liberdade e da sua vontade de se relacionar com Deus, certo do seu desejo de se deixar encontrar.
Os Salmos, que se incluem entre os Livros sapienciais do Antigo Testamento, documentam a especial confidência entre o homem e o Deus que “tem ouvidos e ouve, tem boca e fala”, ao contrário dos ídolos das nações (cf. Sl 115,5-6; 135,16-17). Protagonista desta coleção é a oração, experiência de profunda intimidade com Deus. A coleção dos Salmos atesta como a palavra humana, transfigurada pelo contacto com o ouvido de Deus que a acolhe, se torna verdadeira palavra de Deus.
DIVERSAS OCASIÕES PARA FALAR COM DEUS
O ser humano dirige-se a Deus em cada situação da vida para
- invocá-lo e censurá-lo por não estar presente na sua vida como ele esperava;
- fazê-lo participar das suas descobertas, dos seus sucessos e de tudo o que lhe acontece, seja um acontecimento feliz ou uma experiência dolorosa;
- pedir-lhe ajuda, depois de ter experimentado que mais ninguém pode vir em seu socorro;
- exprimir o seu reconhecimento pelo selo da beleza que descobre na criação;
- contemplar a intervenção gratuita e incisiva de Deus na sua história pessoal e a sua capacidade de transformar tudo em bem, mesmo o mal.
OS SALMOS OU A HISTÓRIA DE ISRAEL EM POESIA E ORAÇÃO
Nos Salmos encontramos hinos de louvor e de ação de graças; lamentações ou súplicas que nascem da situação de sofrimento do orante individual ou de toda a comunidade de Israel; meditações sobre a história da salvação; reflexões sapienciais sobre o dom da Palavra e sobre a qualidade do agir humano; pedidos de perdão, de libertação, de cura; invocações de ajuda ou de vingança contra os inimigos. Recorrendo ao imaginário coletivo e aos símbolos que caracterizam a poesia de todos os tempos, pode afirmar-se que os Salmos são a expressão da alma religiosa de Israel traduzida em poesia e oração, foram a oração de Jesus e são a oração dos discípulos de todos os tempos, são o eixo fundamental da liturgiadashorasna Igreja Católica, inspiram as antífonas e muitos cânticos litúrgicos. Lêem em modo lìrico todas as etapas da história da aliança: a promessa, o êxodo, o dom da lei, a entrada na terra prometida, a liturgia no templo de Jerusalém, as celebrações das grandes festas e peregrinações, a entronização dos reis, a humilhação do exílio e a alegria do regresso. Existem também alguns Salmos, compostos para celebrar a figura do rei davídico, que depois se tornaram, para o povo de Israel, celebrações da esperança no Messias prometido e esperado.
UM LIVRO INFLUENTE COM UMA ORIGEM MUSICAL
Os Salmos são cento e cinquenta e são reconhecidos pela tradição religiosa de Israel como as orações por excelência, como indica o termo tehillim (“orações”) na Bíblia hebraica A antiga versão grega dos Setenta (LXX) chama a estas composições psalmoi e psalterion, de onde derivam os termos “salmos” e “saltério”. A palavra “salmo” está relacionada muito provavelmente com um instrumento de cordas utilizado para conduzir com a música as orações da assembleia. As melodias originais, utilizadas na liturgia do templo de Jerusalém, porém, perderam- se.
TU ESTÁS COMIGO!
A verdade celebrada nos Salmos é a certeza da fidelidade de Deus. No Sal 33,4, “fidelidade” é o nome do agir de Deus. Esta fidelidade está ligada ao facto de o amor de Deus estar sempre “à espreita” na vida do homem. Deus é uma presença amorosa que permanece tal mesmo quando o homem o sente distante. Isto vê-se claramente no Salmo 23, oSalmo doPastor: mesmo que o homem atravesse o vale da sombra da morte, sente surgir no coração esta profissão de fé: “Não temo nenhum mal, porque tu estás comigo” (Sal 23,4).
A ATMOSFERA DA CONFIANÇA
Muitos salmos estão impregnados de confiança, como expressão vital da experiência religiosa e dinâmica das relações interpessoais, e são chamados salmos de confiança porque contêm verbos como “refugiar-se”, “confiar”, “esperar”, “ter esperança”. Mas a confiança é a “atmosfera” de todos os Salmos, porque a base destas composições é a convicção de que a confiança em Deus empalidece todas as outras certezas e apoios. O orante que experimentou a desilusão dos caminhos de autossalvação e do apoiar-se em meios e seguranças humanas, ao “levantar os olhos para os montes” (cf. Sl 121,1) descobriu a âncora da confiança. Esta confiança não pertence apenas ao indivíduo, mas é expressa também pelo grupo, como no Sl 22,27, onde se fala dos “pobres ou pequeninos do Senhor” (‘ănāwîm), uma corrente nascida no século V a.C. em torno do ideal da fidelidade ao Senhor e à sua Torah (Lei) e que, em vez de entrar em conflito com as classes altas, preferiu a confiança no Senhor. Uma corrente que espera incluir-nos também, se estivermos dispostos a dizer com fé, esperança e amor: “Ao verem-me, hão de alegrar-se os que te temem, porque pus a minha esperança na tua palavra” (Sl 119,74).