Entrevista a Rui Ruivo. Um actor para a companhia de teatro de Deus

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O diácono que vai ser ordenado sacerdote no próximo dia 19, na Sé de Leiria, nasceu há 40 anos no Juncal. É aí que estão as suas memórias de infância mais nítidas, onde se destaca uma cena tão peculiar quanto habitual: a dormir ao colo da mãe, durante as celebrações eucarísticas. Rui Ruivo diz que “a vocação sempre esteve presente na minha vida” e, para isso, contribuiu em grande parte o facto de ter nascido no seio de uma família católica e ter feito o percurso normal de um cristão que passa pela catequese e missa dominical. “Isso de adormecer na Missa ao colo da mãe, ainda hoje faz sentido para mim, com tudo o que isso tem de espiritual” explica-nos, não sem antes deixar bem claro que “o meu percurso na escola também foi normal, um bocadito malandreco, é certo”.

O actual diácono é o mais novo de três filhos, dois rapazes e uma rapariga. Quem é, “depende muito do meio onde vivo: fui sempre estimulado a viver a fé de uma forma comunitária e isso ajudou-me a tomar a decisão de entrar para o seminário e seguir a vocação sacerdotal”. E foi aí, onde viveu, que aprendeu o gosto pelas artes performativas, como o teatro e a dança. Foi por isso que, mais tarde, quando ingressou no ensino superior para fazer o curso de gestão na capital, frequentou um curso de formação em teatro durante três meses. Aí teve a oportunidade de representar duas peças de teatro, sendo uma delas uma adaptação do clássico “Voando Sobre Um Ninho de Cucos”, em que “eu era um maluco qualquer que andava por lá”. Também teve aulas de dança no ginásio onde andava e, posteriormente, numa academia. Após a licenciatura, trabalhou numa empresa durante 10 anos como Técnico Oficial de Contas (hoje, Contabilista Certificado).

Este é o Rui Ruivo, com quem, nas vésperas da sua ordenação sacerdotal, quisemos trocar umas palavras para nos contar um pouco de si e da sua decisão de vida.

Recordo com carinho as festas que íamos fazendo e nas quais eu também participava e me empenhava.

Como era a tua integração na paróquia?

Enquanto criança, essa integração começou na catequese. Recordo com carinho as festas que íamos fazendo e nas quais eu também participava e me empenhava. Quando terminei esse percurso, também passei a ser catequista e nunca deixei essa responsabilidade e participação a não ser quando ingressei no ensino superior, onde fiz a minha licenciatura em gestão de empresas.

Porquê gestão de empresas?

Eu queria estudar teatro, e os meus pais, mesmo não querendo tirar-me essa vontade, alertaram-me para a possibilidade de ser um trabalho que podia não trazer as garantias de futuro que se esperam numa actividade profissional. Há vinte anos, o Juncal era uma vila pacata, rural e relativamente pequena, pelo que as perspectivas de sucesso na área da representação eram praticamente nulas. No entanto, esse gosto pela arte dramática esteve sempre presente.

Donde vinha esse gosto pelo teatro?

No Juncal houve sempre a tradição de fazer teatro. E esse gosto reforçou-se, sobretudo, nas festas da catequese. Isso fascinava-me e tenho bem presente na memória as sessões de teatro que íamos ver no salão paroquial, aqueles dramas de fazer chorar as pedras da calçada e comédias hilariantes. Isso fazia-me pensar que um dia também queria ser assim.

Porquê esse fascínio?

Percebi que, através do teatro, podia entrar na construção de personagens e, ao mesmo tempo, compreender como pensam as pessoas e que isso ajudaria a ver o lado humano da vida. No teatro vivemos aquilo que não conseguimos fazer na vida normal.

Então temos uma contabilista certificado que gosta de representar e dançar…

Apesar de continuar a pagar as minhas quotas na Ordem, não exerço no meu dia-a-dia a actividade de contabilista, embora, por força da responsabilidade que o D. António me confiou de gerir os destinos da Gráfica de Leiria, acabe por ajudar no meu desempenho. Também nas paróquias acho que ajuda bastante um padre ter conhecimentos de contabilidade, mesmo que básicos. Aliás, algumas paróquias têm centros sociais que são autênticas dores de cabeça nessa área.

E que influência tem essa formação tão transversal na maneira de ser de um padre? Será importante?

Sim, sem dúvida. É uma das formas — sobretudo o teatro e a dança — de chegar às pessoas, nomeadamente aos jovens. Eu próprio tenho testemunhado alguns exemplos disso, de alguns musicais que ajudam os jovens a perceber o que é ser Igreja. Essa razão tem-me motivado a não descurar esse lado mais artístico e a comprovar a sua importância na evangelização. Tenho tido a sorte de continuar a poder fazer algumas coisas nessa área.

Reconheço hoje que foi importante ter cumpridos os preceitos normais de um cristão desde pequeno.

E a decisão de ser padre, como surgiu?

Quando olhamos para trás, conseguimos ver a história que Deus quis fazer connosco de uma forma mais clara e mais evidente. Reconheço hoje que foi importante ter cumpridos os preceitos normais de um cristão desde pequeno. Por volta dos doze anos, esta questão começou a surgir mais recorrentemente. Nessa altura, fiz um fim-de-semana vocacional no seminário, em que fiquei com essa certeza de que Deus me chamava. O chamamento parecia-me claro. Para quê, não sabia ainda.

Ainda uma criança, portanto…

Sim. Tanto que me questionava acerca daquilo que as pessoas iriam pensar e dizer e, além disso, tinha consciência de que ainda era muito cedo para fazer uma decisão tão radical. Daí que fui fazendo a minha vida normal e, com o passar dos anos, era frequente equacionar essa possibilidade. Recordo-me que a morte do Papa João Paulo II, que estava a ver na televisão, mexeu muito comigo. Também lembro-me dos padres que se foram cruzando na minha vida e que davam exemplo dessa alegria de ser padre.

Mas a grande decisão, aquele momento em que decido “isto tem de mudar”, foi numa peregrinação de catequistas a Israel, em 2011.

Mas a grande decisão, aquele momento em que decido “isto tem de mudar”, foi numa peregrinação de catequistas a Israel, em 2011. Quando recebi a informação da realização dessa viagem, achei que não teria tempo, já que os contabilistas têm datas marcadas para os procedimentos da sua atividade. Ignorei a informação, mas durante pouco tempo, pois comecei a ver as possibilidades de participar nessa peregrinação. Vi melhor as datas, falei com os meus patrões, deixei o trabalho todo orientado e acabei por ir. Durante a estadia em Israel eu fazia 32 anos e um dos padres que nos acompanhavam disse que eu já tinha idade para ter juízo, embora não fizesse a mínima ideia que andava com estas inquietações vocacionais. Nesse dia celebrámos a Missa no Monte da Bem-Aventuranças e, durante a homilia, surgiu uma questão que, para mim, naquele momento, fazia todo o sentido: que Deus, quando chegássemos ao céu, nos iria perguntar se tínhamos sido felizes.

Não eras feliz, portanto.

Não se tratava disso — porque eu estava bem, quer profissional, quer pessoalmente —, mas de perceber que faltava ainda mais pôr mais Jesus no meio, na vida.

Dez anos como TOC: como se vive tanto tempo com essas dúvidas?

Fácil: vão-se colocando coisas na nossa vida para enchê-la. Reconheço que, a determinada altura fazia muito desporto e tinha muitas aulas de dança, saía com os meus amigos para ir ver peças de teatro e ir ao cinema. A par disso, continuava com a minha participação na comunidade paroquial, o que me fazia crer que a minha resposta a Deus já estava a ser dada. Quando estava em casa era sempre de passagem e até a minha mãe se queixava: “este rapaz nunca pára em casa!”.

Depois de vir de Israel, foram uns meses muito conturbados e agradeço a uma colega minha que, insistentemente, me dizia para falar com um padre. Mas eu tinha medo: achava que se falasse com algum padre, nunca mais me largariam…

Uma escolha feita aos 32 anos é mais amadurecida do que aos 22?

A verdade é que eu ainda tinha muitas dúvidas acerca do que queria e o primeiro ano no seminário foi o grande embate, porque era muita coisa que mudava de um momento para outro. Tu tens a tua independência financeira e, de repente, quem tu ajudavas era que te voltava a ajudar. Isso chocou-me um bocadinho. O caminho da vocação não estava feito e, de facto, vai sendo feito durante toda a vida.

Passados um par de meses já ponderava ir embora, que aquilo não era para mim.

Ou seja, começaste a pensar: por que é que me meti nisto?…

Ao fim de uma semana no seminário, refletia que estava a ser muito bom e que me podia ir embora que já tinha ganho imenso. Passado um par de meses já ponderava ir embora, que aquilo não era para mim. Foi preciso desconstruir algumas ideias que fomos construindo de forma errada. E tudo o que é preciso construir de novo, dá trabalho. Daí que sete anos no seminário não é tempo a mais, pois é preciso construir à maneira de Jesus, e vamos aprender a serenar e a escutar Deus nos passos que vamos dando com a Igreja a acompanhar-nos.

Sabendo que antes tinhas a tua independência financeira, durante esses sete anos, como é que deste resposta às despesas?

Posso dizer que foi a Igreja. Os meus pais, porque também são Igreja, o Seminário e a Diocese de Leiria-Fátima. E também tinha as minhas poupanças, como é óbvio. Mas há um estilo de vida que dá uma volta enorme, porque te vês novamente, aos 32 anos, a aceitar aquilo que te dão, o que é uma grande lição de humildade. Tive a oportunidade de perceber a generosidade das pessoas. Havia quem chegasse ao pé de mim e me dava um envelope. Muitas vezes não temos essa noção, mas as pessoas reconhecem muito aqueles que dão do seu tempo para perceber o que Deus espera deles. São muito generosas e eu sinto-me muito amado pela paróquia do Juncal que tem essa forma de também demonstrar esse amor. Houve quem me tivesse dado dinheiro e dissesse que era para o combustível ou para ir beber um copo com os amigos. Quem dá amor, recebe amor.

Como foi contares aos teus pais essa decisão?

Foi num dia de aniversário do meu pai, tinha convidados em casa. Deixei que eles saíssem e ficassem só os meus pais. Disse-lhes que precisava de falar com eles e, a minha mãe, despachada como é, perguntou se ia sair de casa, se ia casar. Lá lhes disse que estava a pensar entrar no seminário. “A vida é tua”, foi a resposta dela. Já o meu pai, fez muitas questões: vais deixar de trabalhar e, agora, a segurança social, e como vai ser a reforma… Esta reação, depois, foi mudando e começaram a encarar a decisão mais descontraidamente. Já a minha mãe andou numa fase em que chorava facilmente, talvez por medo do “abandono” do filho. Neste ponto, é importante não descurar a família e esse foi um pensamento que o Seminário me tem incutido. E eu também sinto essa necessidade.

A pergunta da praxe: e namoradas?

Eu acho que não é mau a gente apaixonar-se e isso aconteceu também durante o seminário. A grande questão é saber o que fazer com esse sentimento. E, sim, também antes da entrada no seminário tive as minhas paixões, ao ponto de pensar em casar e ter filhos. Ainda hoje, quando vejo crianças, penso que se fosse pai iria ser um óptimo pai. Mas as decisões de um cristão têm sempre alguma coisa de difícil. Deus pede-me um bem maior e eu decidi por esse bem maior que é poder estar para uma comunidade e não apenas para um núcleo familiar.

As pessoas dão-te muitos conselhos?

O normal. E a gente tem de aprender a escutá-los, porque isso também é importante para nós. Tenho aprendido que a oração é um pilar que sustenta a vida de um sacerdote.

Quero que a alegria seja uma das minhas características. Quero ser um padre alegre e próximo das pessoas.

Que tipo de padre esperas ser?

Eu tenho um santo predilecto que é São Filipe Néri, que é o padroeiro dos comediantes. Quero que a alegria seja uma das minhas características. Quero ser um padre alegre e próximo das pessoas. Isso não é fácil para mim, porque reconheço que sou um bocadinho tímido, e o teatro e a brincadeira é uma forma de ultrapassar essa timidez.

A partir do dia 19 vais representar uma nova personagem para a qual andaste a estudar o papel durante sete, oito anos…

Confesso que me custa ver alguns padres muito fechados em si e que não são tão próximos das pessoas quanto deveriam ser. Mas isso também tem muito a ver com a forma de ser da cada um, e ainda bem que há uma grande diversidade. Uns são doutores, outros profetas… Eu, quero ser um palhaço de Deus, enquanto padre.

E onde achas que é o teu palco?

Uma das coisas que devem caracterizar também os padres é serem polivalentes, para se poderem adaptar às situações e aí darem a vida que a Igreja lhes pede. É necessário deixar-se surpreender pela novidade de Deus em cada missão a que somos chamados.

Como tem sido a experiência nas paróquias onde estás?

Consciencializei-me de que não consigo chegar a todo o lado. As solicitações são muitas e não consigo dar as respostas que gostaria, pelo que tenho de saber gerir muito bem o meu tempo. Tenho de saber aceitar que não sou a solução definitiva para o que quer que seja. O padre não é um super-homem e eu tinha aquela ideia de que um padre não pode falhar. Obviamente, penso de outra maneira. Um padre tem as suas limitações, precisa de descansar, precisa de rezar.

Temos padres a mais?

Não são padres a mais; são aqueles que Deus quer que sejam neste momento. Devemos continuar a apresentar a vocação sacerdotal como uma verdadeira opção de vida e apresentá-la de uma forma criativa, porque Deus é o criativo por excelência.

Jesus representa, representa-se a si próprio e ao Pai. E sacerdote também é chamado a representar dessa maneira, à maneira de Jesus.

A Eucaristia é um teatro?

Sim, é um teatro. Não é uma comédia, mas pode dizer-se que é um teatro: temos pessoas, muitas delas para assistir, mas que se pretende que sejam também actores e participantes com diferentes papéis. O padre é o… contra-regra, ou talvez o ponto, quem dá as deixas e deixa para o verdadeiro protagonista — Jesus — o papel principal. É um teatro peculiar que continua depois do fecho de mais um acto. Um teatro de rua… O próprio Jesus foi o actor por excelência. No sentido verdadeiro de ser actor e não naquele sentido de alguém que veste a pele que não é dele. Jesus representa, representa-se a si próprio e ao Pai. E o sacerdote também é chamado a representar dessa maneira, à maneira de Jesus.

Alta pressão

Livro? Um Olhar Luminoso, de Mariagrazia Magrini.
Filme ou série? Lost.
Lugar?  Juncal.
Prato? Alheira com batata frita.
Bebida? Cerveja.
Pessoa? Jesus Cristo.
Clube? Benfica.

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Captura de ecrã 2024-04-17, às 12.19.04

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