[Nota do editor] Comunicação proferida na Assembleia Diocesana de Leiria-Fátima, realizada no Seminário Diocesano de Leiria no dia 28 de setembro de 2024.
O grande desafio desta pequena comunicação está exatamente no facto de ser pequena. Por isso, o que procurarei fazer é partilhar apenas alguns pontos que são resultado da minha reflexão, na escuta daquela que tem sido a reflexão da Igreja e da teologia nos últimos tempos, e que espero serem um estímulo e uma ajuda a lançarmo-nos neste dom e tarefa que é a transformação pastoral da Igreja que peregrina em Leiria-Fátima.
Esta comunicação estrutura-se em três momentos:
- Num primeiro momento estabelecerei aqueles que são os pressupostos que conduzem esta comunicação.
- Num segundo momento convidar-vos-ei a fazer uma viagem ao longo dos 2000 anos de História da Igreja. Será uma viagem veloz porque o tempo urge. É um momento que nos ajudará a situar, no espaço e no tempo, a urgência da conversão pastoral na história da Igreja e da nossa Diocese, precavendo-nos de dar passos que signifiquem um retrocesso negligente ou um avanço insolente no seu peregrinar.
- Por fim, num terceiro e último momento, procurarei elencar alguns pontos que nos poderão ajudar a pensar a transformação pastoral da nossa Diocese partindo do enquadramento teológico e espiritual da redescoberta da centralidade do batismo.
1. Três pressupostos
Este segundo ano pastoral que estamos a começar do triénio «Pelo Batismo somos Igreja viva e peregrina» tem como tema “Enriquecer a Igreja com o compromisso batismal”. É também este o tema desta comunicação.
Há três pressupostos que a conduzem e que considero fundamentais. Por isso começo por os elencar.
1.1 Do Batismo à Iniciação Cristã
O primeiro pressuposto é que, apesar do tema do nosso triénio e dos subtemas de cada um dos seus anos se centrarem no batismo, não podemos jamais separar o batismo dos demais sacramentos da iniciação cristã: o crisma (ou confirmação) e a eucaristia. Este ponto é fundamental para compreender o nosso compromisso na Igreja e para pensar os próprios critérios de identificação e eleição dos candidatos aos ministérios laicais. Batismo, crisma e eucaristia são os três sacramentos que, profundamente unidos uns aos outros, nos incorporam plenamente na Igreja e fazem de nós seus membros com plenos direitos e deveres.
1.2. De um De membris a um De Ecclesiae
O segundo pressuposto é que, quando nesta comunicação falarmos de fiéis ou de batizados, estamos a falar de todos os membros da Igreja. Todos, todos, todos. Não estamos a falar dos leigos, em oposição ao clero e aos religiosos. De facto, uma das grandes novidades que o Concílio Vaticano II nos trouxe é que na Igreja, antes de qualquer diversidade funcional está uma igualdade fundamental: somos filhos de Deus, membros ativos com plenos direitos e deveres na vida da Igreja. Por isso, quando pensamos na urgência de transformar pastoralmente a Diocese a partir da revalorização da iniciação cristã, estamos a referir-nos a todos os seus membros, independentemente da sua vocação específica.
1.3 Transformação pastoral não tem que significar reorganização territorial
O terceiro pressuposto nasce daquilo que tem sido o caminhar da nossa Diocese no último ano pastoral. Bem sabemos que este foi muito marcado pela sua reorganização pastoral e geográfica. Duas unidades pastorais já foram oficialmente criadas (a Unidade Pastoral de Marrazes e a de Ourém) e o mapa das demais Unidades Pastorais está definido. Este foi um passo fundamental no contexto da transformação pastoral da nossa Diocese. Mas corremos o risco de pensar que esta se resume a uma reorganização do território. É neste contexto que surge o meu terceiro pressuposto: a reorganização geográfica da diocese e a sua transformação pastoral são dois acontecimentos distintos; aconteceram simultaneamente e iluminam-se reciprocamente, mas são distintos. Poderia, se a situação territorial da nossa diocese o permitisse, haver uma transformação pastoral sem uma reorganização territorial. Este terceiro pressuposto ajuda-nos a salvaguardar a seguinte regra de ouro: a valorização da iniciação cristã e, consequentemente, da missão da cada cristão na Igreja, não está relacionada com a falta de clero, que por sua vez implicou uma reorganização de território, ou com a criação de unidades pastorais que impliquem a criação de alguns serviços e ministérios para que possa funcionar, mas vem da tomada de consciência de que cada fiel é um sujeito ativo na vida da Igreja, chamado a enriquecê-la com o seu compromisso batismal. Transformar pastoralmente a Diocese é muito mais do que transformar o território: é transformar as relações dos seus membros com Deus, entre si e com o mundo.
1.4 Em síntese
São três os pressupostos que devemos manter até ao fim desta comunicação:
- Não se pode pensar o batismo fora da sua relação com os demais sacramentos da iniciação cristã: confirmação e eucaristia;
- Quando estabelecermos os princípios para a transformação pastoral da nossa Diocese teremos de ter em conta que estes implicam todos os membros da Igreja, independentemente da sua vocação específica;
- A reorganização geográfica da Diocese e a sua transformação pastoral são dois acontecimentos distintos que, todavia, tendo ocorrido contemporaneamente, se iluminam reciprocamente.
2. Uma viagem na história
Uma vez definidos os pressupostos que guiam esta comunicação, convido-vos a fazer uma viagem na história, em alta velocidade. É esta viagem que nos ajudará a compreender como chegámos ao dia de hoje, no qual consideramos o compromisso batismal de cada batizado como uma fonte de riqueza para a vida da Igreja [1].
2.1 A Igreja peregrina na história
A Igreja, como uma realidade simultaneamente divina e humana (cf. LG 8), peregrina na história. Sermos conhecedores desta peregrinação impede-nos de dar passos no processo de transformação pastoral da Diocese que signifiquem um retrocesso negligente na história, voltando a formas e modelos de Igreja que já não dizem plenamente aquilo que a Igreja é, ou que correspondam a um avanço insolente e desgarrado no peregrinar da Igreja na história, criando uma espécie de descontinuidade com o presente.
2.2 As comunidades primitivas
Nesta viagem, quanto mais andamos para trás no tempo, mais difícil é dizer claramente como é que a Igreja se compreendia e se estruturava, sobretudo porque as fontes históricas primitivas não são assim tão abundantes e requerem métodos de interpretação muito específicos. Mas, ainda assim, não deixemos de nos aventurar na visita aos testemunhos da vida da Igreja nos primeiros séculos, que encontramos sobretudo nos escritos do Novo Testamento e dos Padres da Igreja.
Ao lermos os Atos dos Apóstolos e as várias Cartas neotestamentárias, sobretudo as paulinas, tomamos consciência que a Igreja se compreendeu, desde a sua primeira hora, como uma comunidade de irmãos unidos pela fé em Cristo, na qual todos são chamados a colocar os seus dons e carismas ao serviço da comunidade, em ordem à edificação do corpo eclesial. Falamos daquilo que parece ser uma realidade básica da existência cristã, e por isso da existência eclesial: todos estão ao serviço de todos, cada um segundo o seu carisma [2], pois o Senhor Jesus, que havia chamado os primeiros discípulos para serem parte da sua missão de anúncio do Reino dos Céus, continua a suscitar no seio das comunidades cristãs carismas e ministérios que, em colaboração com o ministério apostólico (aquele a que hoje chamamos ministério ordenado, sobretudo o ministério episcopal), contribuem para a comum edificação de todo o corpo eclesial [3].
Estes carismas e ministérios, presentes primitivamente de forma diversificada e difusa, vão encontrar um processo de maior estruturação e uniformização à medida que as comunidades cristãs se tornam mais estruturadas [4]. A Traditio Apostolica [5], um escrito que é situado pelos seus estudiosos no século III, testemunha-nos, por exemplo, a presença de uma múltipla ministerialidade na Igreja primitiva, com referência à existência de bispos, presbíteros, diáconos, subdiáconos, confessores, viúvas e leitores. Já numa das cartas de Cornélio, Bispo de Roma entre 251 e 253, podemos ler: «Deve existir um só bispo numa Igreja católica [referia-se àquilo a que hoje chamamos Diocese], na qual existem [referia-se à Diocese de Roma] quarenta e seis presbíteros, sete diáconos, sete sub-diáconos, quarenta e dois acólitos, cinquenta e dois entre exorcistas, leitores e hostiários e mais de mil e quinhentas viúvas e pessoas necessitadas todos nutridos da graça e da bondade do soberano Deus» [6].
Entre todos estes ministérios, aqueles ministérios que hoje chamamos ministérios ordenados foram sempre uma constante: bispos, presbíteros e diáconos faziam parte da estrutura das comunidades cristãs primitivas. E se a estes ministérios ia correspondendo uma sempre maior missão de guia e presidência das mesmas, isto não impedia a diversidade e reciprocidade de carismas e ministérios. Por isso, podemos afirmar que a Igreja é, na sua origem, uma «Igreja toda ela ministerial» [7].
2.3 A reforma Gregoriana
Quando a religião cristã se torna a religião oficial do Império Romano, algo que atinge o seu clímax em 380, com o Édito de Tessalónica, era imperador Teodósio, assistimos ao início de uma progressiva mudança de paradigma que atingirá o seu cume no início do segundo milénio.
De facto, tornando-se o cristianismo religião oficial do Império, a Igreja acabava por assumir, pouco a pouco, a fisionomia organizacional do Império até à fusão dos dois sistemas. Com a queda do Império Romano do Ocidente em 476 e as sucessivas transformações geopolíticas da Europa, uma série de eventos, no contexto de uma sempre maior imiscuidade entre a Igreja e o poder temporal, fizeram com que a Igreja acabe por se tornar subserviente ao sistema político.
No século XI, perante o laxismo dos costumes em que vivia o clero e a dependência da Igreja em relação ao Estado, o Papa Gregório VII (1073-1085) iniciou uma reforma, conhecida como reforma gregoriana, marcada por um confronto entre as autoridades eclesiásticas e seculares e que terminou com a centralização de todo o poder nas mãos do Papa. A luta empreendida por Gregório VII para restaurar a liberdade da Igreja em relação ao poder temporal acabou por levar à afirmação de uma estrutura piramidal da Igreja que colocava o papa e a demais hierarquia eclesial no seu cume e o povo na sua base, o que levou a uma radicalização da separação entre clérigos e não clérigos.
Em todo este processo, alguns dos ministérios que existiam em abundância na Igreja primitiva acabam por desaparecer, ou por serem transferidos para o chamado cursus clericalis, uma série de degraus mediante os quais alguns cristãos ascendiam ao sacerdócio, o mais alto grau deste cursus. Hostiário, leitor, exorcista, acólito, sub-diácono, diácono passam a designar-se ordens menores, recebidas pelos candidatos ao sacerdócio, algo que se mantém até ao Concílio Vaticano II, depois do qual ainda se mantém um resquício deste cursus com a instituição no ministério de leitor e de acólito nos candidatos ao diaconado e presbiterado. Já o ministério de diácono, enquanto ministério permanente e não em ordem ao presbiterado, desaparecerá na Igreja Ocidental, sendo apenas um dos degraus para ascender ao sacerdócio. A ministerialidade na Igreja vai pouco a pouco reduzir-se ao ministério ordenado, o que agudiza cada vez mais uma conceção de Igreja construída a partir da relação assimétrica entre clero e leigos. O termo kleros, que no seu original grego designara todos os cristãos como separados (kleronómoi) para herdar a vida eterna, passa a identificar apenas aqueles que, no seio da comunidade, são separados para desempenhar um ofício.
2.4 A reforma protestante e a teologia controversista
Chegados ao século XVI, a resposta da Igreja à reforma protestante (séc. XVI) irá agudizar ainda mais esta distinção. Basta pensar que uma das marcas da Reforma Protestante (século XVI) foi a abolição de qualquer distinção entre os membros da Igreja e o esvaziamento do significado do ministério ordenado. Por meio dos cânones do Concílio de Trento, a Igreja católica reafirmará a sacramentalidade do sacerdócio ordenado, mas de uma tal forma que originará um clericalismo ainda maior no interior da vida eclesial. A teologia que se irá desenvolver depois deste período entenderá os leigos como totalmente subordinados à hierarquia, desenhando um modelo de Igreja como sociedade perfeita de desiguais.
2.5 A construção de uma sociedade liberal
O curso da história continuará a fluir e a construção de uma sociedade europeia liberal levará a uma sempre maior quebra de relações entre a Igreja e os Estados. A Europa, vista como um conjunto de Estados submissos ao Papa, deixará de existir e com isso surge a possibilidade dos leigos se emanciparem da sua submissão ao clero. A pertença a um Estado democrático libertava os leigos da submissão à hierarquia eclesial, fazendo-os sujeitos ativos da vida da sociedade. Ao mesmo tempo surge um progressivo alheamento da Igreja hierárquica (considerada a Igreja tout court) do mundo e da cultura moderna, o que induziu o laicado que ainda se mantinha firme no desejo de seguir o Evangelho na vida quotidiana a assumir a representatividade da Igreja e dos valores evangélicos precisamente em setores dos quais a hierarquia se tinha afastado. Com este objetivo nasceram várias formas associadas de compromisso cristão.
A ação católica, como participação no apostolado hierárquico da Igreja, é um marco neste processo. De um ponto de vista puramente jurídico-institucional, era a hierarquia, e só ela, que detinha os poderes relacionados com o apostolado, mas podia delegá-los nos leigos quando não o podia fazer ela mesma. Perante um mundo cada vez mais secularizado e hostil à Igreja-instituição, e perante uma Igreja que cada vez mais detinha menos poder temporal, a hierarquia compreendeu, ainda que com dificuldade, que a única forma de estar na sociedade era necessariamente através dos leigos. Mas o leigo era visto simplesmente um colaborador-súbdito da hierarquia. O espaço reservado ao laicado dependia das medidas e condições estabelecidas pela hierarquia, na lógica de uma colaboração subordinada ao ministério desta. Estamos num modelo de delegação e não de participação na vida e na missão da Igreja, fundada como direito originário no batismo.
2.6 O Concílio Vaticano II [8]
É este o contexto da Igreja e do Mundo quando chegamos ao Concílio Vaticano II, convocado em 1961, e que decorreu entre 1962 e 1965. Mas a ele chegava também a consciência de que um modelo de Igreja baseado na assimetria entre hierarquia e laicado já não funcionava e já não correspondia à nova consciência eclesial. Por isso, no decorrer dos longos debates conciliares sobre o documento acerca da Igreja, e muito a partir do enorme trabalho que se fazia nos bastidores do Concílio, surge uma sempre maior consciência de que, na Igreja, antes de qualquer diversidade que advém dos vários estados de vida e das missões confiadas, está uma igualdade fundamental que advém da igual dignidade batismal de todos os membros da Igreja. Por isso, na Aula Conciliar, começou a prevalecer uma conceção de Igreja já não construída sobre a relação assimétrica entre hierarquia e fiéis, Igreja docente e Igreja discente, mas sobre a igualdade radical de todos os membros da Igreja em virtude da mesma regeneração em Cristo.
Através da imagem ‘Povo de Deus’, o Concílio designa toda a Igreja [9], mas também os seus membros, todos eles. Por isso o Concílio afirma, no capítulo dedicado aos leigos: «todas as coisas que se disseram a respeito do Povo de Deus dirigem-se igualmente aos leigos, aos religiosos e aos clérigos» (LG 30) [10]. A Igreja passa a ser descrita como a totalidade dos batizados, colocados num plano de radical igualdade em virtude da comum regeneração em Cristo por meio do batismo, comum chamamento à santidade e participação na mesma missão [11].
Deste modo
o Povo de Deus vem antes da hierarquia, a vida teologal antes dos papéis e das funções, a comum igualdade antes de qualquer diferença no corpo eclesial. O ser vem antes do fazer, a graça antes das obras, dos projetos, dos programas pastorais. (…) Ser filho (…) é o título maior de pertença à Igreja e que habilita à mais alta das vocações, a vocação à santidade [12].
Produz-se assim um princípio de relação entre os vários membros da Igreja – a igualdade fundamental de todos os crentes por meio do comum batismo, e consequente chamamento à santidade –, que significará um abandono definitivo do modelo eclesial de Igreja societas perfecta, qualificada como inaequalis hierarchica, composta por duas ordens de cristãos desiguais entre si: «um só é o Povo de Deus (…), comum é a dignidade dos membros (…), comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição, uma só salvação, uma só esperança e uma caridade indivisa» (LG 32) [13].
Na Igreja Povo de Deus «todos os fiéis, sejam qual for a sua condição ou estado, são chamados pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um por seu caminho» (LG 10). Todavia, é claro que existe entre os seus membros uma diversidade, «quer segundo as funções (…), quer segundo a condição e estado de vida» (LG 13). Mas esta diversidade, que tem origem nas várias funções desempenhadas no seio do Povo de Deus, é sempre vista na lógica do serviço (cf. LG 18), do comum chamamento à santidade (cf. LG 41-42), e da comum participação na missão evangelizadora da Igreja (cf. AA 35).
Esta é a grande novidade que recebemos do concílio e que se nos apresenta como dom e tarefa: edificar uma Igreja enriquecida pelo compromisso batismal de todos, cada um segundo os seus dons, sempre postos à disposição de todos. Uma Igreja que é comunidade dos crentes em Cristo onde todos são chamados a contribuir para a sua edificação, cada um segundo o seu estado de vida particular, mas sempre na senda do chamamento universal à santidade. Uma Igreja que se considera Povo de Deus a caminho da pátria celeste, procurando ser neste mundo sinal e instrumento da união com Deus e da comunhão entre todos.
3. Pensar a transformação pastoral da diocese a partir do compromisso batismal
Chegados aqui, chegou o momento de elencar alguns pontos (elencarei três) que nos poderão servir de guia para pensar a transformação pastoral da nossa Diocese a partir do enriquecimento da mesma com o compromisso batismal de todos.
3.1 Todos os batizados são sujeitos ativos da missão da Igreja
Podemos dizer que a grande novidade que nos chega do Concílio é a construção de um modelo de Igreja que tem como sua trave-mestra a fé celebrada, testemunhada e vivida o que permite pensar a universalidade dos fiéis como o verdadeiro sujeito da ação da Igreja [14]. Por isso, de uma Igreja que a um determinado ponto esgotava toda a sua ação evangelizadora na missão da hierarquia, passamos a uma Igreja que, procurando ser no mundo «sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (LG 1), considera todos os seus membros sujeitos ativos da sua ação.
Os fiéis, diz-nos o Concílio (cf. LG 10), depois de terem sido incorporados em Cristo pelo batismo e constituídos como Povo de Deus e tornados participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, cumprem, na Igreja e no mundo, a missão própria de todo o povo cristão. Participam no sacerdócio de Cristo, exercendo este sacerdócio (chamado de sacerdócio comum dos fiéis) na oferta a Deus de sacrifícios espirituais que se cumprem na celebração da Eucaristia, oferta para a qual tudo converge, para a qual tudo tende. Participam na missão profética de Cristo glorificando a Deus e fazendo Cristo presente no mundo através do seu testemunho de fé. Participam no serviço real de Cristo, conduzindo todas as coisas do mundo ao Reino de Deus.
Por isso, o primeiro ponto a ter em consideração é o da missão de cada batizado de enriquecer a Igreja com o seu compromisso batismal a partir do modo como habita o mundo, procurando ser nele um sinal do amor de Deus pela humanidade de modo que a Igreja seja, por meio do nosso testemunho cristão, um claro sinal e instrumento da íntima união com Deus e do género humano.
Mas o compromisso cristão que nasce do batismo não é só um compromisso no mundo. É também um compromisso dentro da própria Igreja. Do batismo nasce toda e qualquer forma de compromisso intraeclesial. Pelo Batismo todos os cristãos estão habilitados a contribuir para o normal funcionamento das comunidades cristãs, enriquecendo a Igreja com o seu compromisso batismal, algo que devem fazer sempre, e não apenas diante de cenários de escassez de clero. Uma Igreja é Igreja viva se nela todos contribuem para a sua missão.
3.2 Da missão de todos ao ministério de alguns
É o batismo que habilita o cristão a ser um sujeito ativo na vida da Igreja. Por isso, os vários ministérios, que preferiria chamar batismais em vez de laicais, pois nascem do batismo e não da condição laical do povo de Deus, devem ser pensados a partir do batismo, que nos agrega a Cristo e nos torna participantes da sua missão no mundo, que é a missão da Igreja.
Em sentido estrito, tudo aquilo que faz alguém que recebeu um ministério laical pode fazê-lo todo e qualquer batizado. Aparentemente todo este discurso parece reduzir a importância destes ministérios e esvaziar todo o seu significado. Mas não; muito pelo contrário. Para além de sublinhar a missão de cada batizado na Igreja, enfatiza o papel específico daquele que recebe um ministério, não como quem se situa acima do cristão regular, mas como aquele que recebeu da Igreja a missão de ser, de forma muito particular, sinal da ministerialidade da Igreja para com toda a humanidade.
Por isso, importa ter em conta que os ministérios batismais devem corresponder à institucionalização de um carisma já existente no seio da comunidade cristã e que, como tal, é reconhecido publicamente (e por isso liturgicamente, numa celebração presidida pelo Bispo diocesano) como útil à vida da Igreja: um verdadeiro ministério e não apenas um serviço. Todos os cristãos estão habilitados a contribuir para o normal funcionamento das comunidades cristãs e a enriquecer a igreja com o compromisso batismal, mas alguns possuem um particular carisma e fazem-no de um modo que o seu contributo para a edificação da comunidade cristã é de tal forma reconhecido pela mesma, que é inevitável que se torne um ministério estável e publicamente reconhecido. Não se trata da promoção de alguém, ou de um prémio de bom comportamento. Mas do reconhecimento por parte da Igreja que um determinado batizado, que possui um determinado carisma, vive de tal modo o seu compromisso batismal numa determinada área da missão da Igreja, que a sua ação é um claro sinal da Igreja que se encontra ao serviço de Deus, da sua Palavra, e dos seus Filhos. Por isso recebe da Igreja um ministério, isto é, o seu carisma tomou uma tal forma visível e palpável de serviço à comunidade cristã que chegou o momento de ser reconhecido como uma diaconia indispensável para a comunidade [15].
Penso, por isso, que a instituição de ministérios laicais não pode ser prévia à identificação de carismas no interior das nossas comunidades. No decorrer do tempo (necessariamente longo), identificando naqueles que desempenham determinadas missões nas nossas comunidades um carisma específico, e querendo reconhecê-lo publicamente (não confundir reconhecimento com prémio, mas simplesmente não encontro uma palavra melhor para dizer o caráter público dos ministérios), então dê-se a esse leigo o ministério que corresponde ao seu carisma e ao serviço que já desenvolve no seio da comunidade cristã.
Vejo com preocupação o risco de cairmos num funcionalismo ministerial ou numa dificuldade de ver no batismo a fonte de qualquer habilitação ao exercício ativo de qualquer missão no seio de uma comunidade cristã. O risco de uma pan-ministerialização está mais do que identificado na atual reflexão eclesiológica. De facto, assistiu-se no pós-concílio à passagem do binómio assimétrico clero-leigo a uma outra assimetria, que reconhece como verdadeiro sujeito eclesial apenas aquele que é titular de um ministério reconhecido institucionalmente, o que levou a uma certa clericalização de alguns batizados. Devemos fugir a todo o custo deste perigo. A participação ativa de um batizado na vida eclesial nasce do batismo, não de algo que a ele se acrescenta. Por isso, um ministério laical deverá ser o reconhecimento público (e por isso litúrgico) de um carisma já exercido estavelmente no seio de uma comunidade, por um cristão concreto, e que vai ao encontro de uma necessidade concreta [16].
3.3 Os ministérios batismais não substituem os ministérios ordenados [17]
Se a Igreja no seu conjunto é um povo sacerdotal, no qual todos são sujeitos ativos da sua missão no mundo, qual é o papel dos seus ministros ordenados?
Através da regeneração e da unção do Espírito Santo, os batizados são enxertados em Cristo para formarem um templo espiritual e um sacerdócio santo, para oferecerem a sua vida a Deus em sacrifício espiritual e para darem testemunho das suas obras em toda a parte (cf. LG 10). O Concílio Vaticano II chama a esta condição batismal de todo o povo de Deus sacerdócio comum (cf. LG 10), um sacerdócio verdadeiro e próprio que tem a sua única fonte no sacerdócio de Cristo, única condição da sua possibilidade, e cujo sujeito é a totalidade do povo de Deus, que constituído em assembleia santa exerce o sacerdócio comum, em função da totalidade dos batizados, ainda que cada cristão dele participe pessoalmente pelo batismo. Ao serviço deste sacerdócio comum, que exprime a dignidade originária da regeneração em Cristo pelo batismo de todo o Povo de Deus, existe na Igreja um outro modo de participar no sacerdócio de Cristo, o sacerdócio ministerial, um ministério de serviço ao Povo de Deus, confiado pessoalmente a alguns por meio do sacramento da ordem, mas que se exerce colegialmente e que tem como caraterística distintiva o facto de quem o exerce agir in persona Christi, representando Cristo cabeça da Igreja, seu Corpo e tornando visível a sua mediação salvífica.
Trata-se, portanto, de formas de participação no sacerdócio de Cristo, cuja diferença é de essência e não de grau (licet essentia et non gradu tantum differant – LG 10), na medida em que existe uma diversidade radical entre as duas formas de participação no sacerdócio de Cristo, mas que, no entanto, estão em função uma da outra: enquanto o sacerdócio ministerial está ao serviço do sacerdócio comum de todo o Povo de Deus, razão única da sua existência, do seu objeto e campo de ação, o Povo de Deus precisa dele para o pleno exercício do seu sacerdócio comum, através do qual louva a Deus e é sinal e instrumento de salvação para o mundo. Por isso, o sacerdócio ministerial está ao serviço do sacerdócio comum de todo o Povo de Deus, sem o qual não existiria, assim como o sacerdócio comum está ao serviço do mundo, consagrando-o a Deus pelo testemunho da fé e pela condução de todas as coisas a Cristo.
Porque o exercício da função sacerdotal do Povo de Deus não é possível sem a mediação de Cristo, e porque o sacerdócio ministerial manifesta a presença de Cristo mediador, graças a ele os cristãos podem acolher explicitamente esta mediação e unir-se a Cristo na sua oferta ao Pai (realidade evidente na celebração da Eucaristia). Por outras palavras, o sacerdócio ministerial existe em função do sacerdócio comum, tornando possível o seu pleno exercício. Por isso, não pode haver Igreja sem ministério ordenado, porque dele depende a continuidade apostólica da Igreja e a celebração dos sacramentos. É, por isso, um ministério de guia e de presidência, que não deve ser descurado. Daqui a importância de suplicar ao Senhor, e de trabalhar com todas as nossas forças, para a promoção vocacional na nossa Diocese, que sempre continuará a precisar de ministros ordenados para ser Igreja.
[1] Para traçar este percurso histórico é de grande utilidade a leitura dos primeiros capítulos da obra que orientou a redação deste segundo ponto desta comunicação: Scorrano, F., La dimensione regale del Popolo di Dio nella Costituzione Lumen Gentium, Cittadella, Assisi 2022, 37-280.
[2] Cf. Sesboüé, B., «Ministères et structure de l’Église. Réflexion théologique à partir du Nouveau Testament», in Delorme, J., ed., Le ministère et les ministères selon le Nouveau Testament. Dossier exégétique et réflexion théologique, Seuil, Paris 1974, 403-404.
[3] Cf. Congar, Y., Ministères et communion ecclésiale, Cerf, Paris 1971, 31-32; 41-42.
[4] Cf. Dianich, S., «Ministero», in Barbaglio, G. – Dianich, S., ed., Nuovo dizionario di teologia, Paoline, Roma 19823, 916. O processo de estruturação e uniformização dos ministérios na Igreja é uma realidade muito complexa que não podemos abordar numa comunicação como esta. Todavia, existe ampla bibliografia a ela dedicada. Como obra de referência para o estudo deste processo nos primeiros séculos, com extensas fontes e bibliografia complementar, serve a obra Cattaneo, E., I ministeri nella Chiesa antica. Testi patristici dei primi tre secoli, Paoline, Milano 1997. Pode ainda ser interessante a leitura de Ferguson, E. – Scholer, D. – Finney, P., ed., Studies in Early Christianity, vol. 13 Church, Ministry and Organization in the Early Church Era, Garland, New York – London 1993.
[5] Hippolytus Romanus, Traditio Apostolica, ed. et tr. Botte, B., Sources Chrétiennes 11 bis, Cerf, Paris 1968.
[6] «Dunque questo difensore della purezza del vangelo non sapeva forse che ci deve essere un solo vescovo in una Chiesa cattolica, nella quale esistono – e non poteva ignorarlo – quarantasei presbiteri, sette diaconi, sette suddiaconi, quarantadue accoliti, cinquantadue tra esorcisti, lettori e ostiari, e più di millecinquecento vedove e persone bisognose , tutte nutrite dalla grazia e dalla bontà del Sovrano [Dio]?» in Cattaneo, I ministeri nella Chiesa antica, 587.
[7] Expressão muito difundida na discussão contemporânea sobre os ministérios na vida da Igreja que foi cunhada pelo episcopado francês na sua Assembleia Plenária de 1973 (Assemblée Plénière de l’Épiscopat Français, Tous responsables dans l’Eglise? Le ministère presbytéral dans l’Eglise tout entière “ministérielle”, Le Centurion, Paris 1973).
[8] Para uma história da redação da Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium do Concílio Vaticano II pode consultar-se Noceti, S. – Repole, R., ed., Commentario ai Documenti del Vaticano II. Vol. 2 Lumen gentium, EDB, Bologna 2018 e Vitali, D., Lumen gentium. Storia/Commento/Recezione, Studium, Roma 2012.
[9] Cf. Vitali, D., Popolo di Dio, Cittadella, Assisi 2013, 107.
[10] Cf. Philips, G., L’Église et son mystère au IIe Concile du Vatican. Histoire, texte et commentaire de la Constitution Lumen Gentium, vol. 1., Desclée, Paris 1967, 129.
[11] Cf. Vitali, D., Popolo di Dio, 130.
[12] Vitali, D., Popolo di Dio, 130-131.
[13] Cf. Madrigal, S., Vaticano II. Remembranza y actualización, CPrT 120, Sal Terrae, Santander 2002, 256; Tangorra, G., La Chiesa secondo il concilio, NST 73, EDB, Bologna 2007, 89. De facto, se tivermos em conta que a Constituição sobre a Igreja dedica um capítulo ao povo de Deus antes de referir a especificidade dos vários membros da Igreja e que o material que serviu de base à sua redação foi destacado do capítulo que tratava dos leigos, este novo modelo desenhado a partir da imagem bíblica povo de Deus meterá fim ao anterior modelo piramidal típico da eclesiologia sociojurídica, que descrevia a Igreja a partir da divisão do corpo eclesial em duas partes: a hierarquia e os restantes.
[14] Cf. Vitali, «Sacerdozio comune e sacerdozio ministeriale o gerarchico. Rilettura di una questione controversa», in RdT 52 (2011) 48-49.
[15] Cf. Papa Francisco, Antiquum ministerium, 2.
[16] Cf. Scorrano, F., La dimensione regale del Popolo di Dio, 507.
[17] Cf. Colson, J., Prêtres et Peuple Sacerdotal, Beauchesne, Paris 1969; Vanhoye, A., «Sacerdoce commun et sacerdoce ministériel. Distinction et rapports», in NRT 977 (1975) 193-207; Vitali, D., «Sacerdozio comune e sacerdozio ministeriale o gerarchico. Rilettura di una questione controversa», in RdT 52 (2011) 39-60; Id., «Il sacerdozio comune», in Rivista Liturgica 107/1 (2020), 101-125; Id., «Ministeri e ordine», in Aime, O. – al., ed., Nuovo dizionario teologico interdisciplinare, EDB, Bologna 2020, 524-532.