O contributo de São Bernardo para a sistematização da teologia do Coração de Jesus situa-se, destaca o Papa, no apelo à intimidade com o Coração de Cristo como alavanca para «propor uma mudança e vida fundada no amor» (DN 177), pois só este especial modo de ser humano tem capacidade de libertar verdadeiramente das escravidões do mundanismo, já que «supera-se o mal com o bem, vence-se o mal com o crescimento do amor» (DN 177). Caminhar com o coração disposto a dialogar é, «numa resposta à doçura do amor de Cristo» (DN 177), descobrir uma via para desenvolver, no nosso íntimo – num exercício quase laboratorial de um discipulado prático – habilidades congénitas ao Coração de Jesus e encarná-las na vida quotidiana.
A mesma importância de cuidar com carinho do coração da humanidade no quotidiano parece ser o desafio que o Papa Francisco vai buscar aos escritos espirituais de São Francisco de Sales, nomeadamente a proposta para aprender como a roubar o Coração de Jesus por meio da beleza da santificação do quotidiano e das coisas singelas da vida (cf. DN 178).
Esta atitude de se habituar a santificar a vida pelo ato genuíno de amar o próximo, configura-se para mim como o mais belo e profético ato de condescendência, que opera o milagre de converter a ainda distante proximidade geográfica numa biológica consanguinidade narrada por relações de amor autênticas e fraternais.
Estou profundamente convicto de que para o Coração de Jesus é impossível olhar o seu semelhante sem o adotar torná-lo família – «o meu Pai também é vosso Pai» (cf. Jo 20, 17) – para o resgatar a uma indigência que muitas vezes roça a indefinição e indiferença de uma não identidade.
Impulsionado por um amor que a todos trata por tu, com o natural respeito que implica entrar na sua intimidade e deixá-lo entrar na nossa vemos a narração de um poderoso e profético amor esponsal que realça uma mesma dignidade, uma proximidade familiar que em Francisco de Sales toma como definição «é um amor firme, constante, imutável, que, não se detendo em ninharias, nem nas qualidades ou condições das pessoas, não está sujeito a mudanças ou animosidades» (DN 178) e que o Papa Francisco faz questão de sublinhar para nos auxiliar no estudo das suas dimensões, parâmetros e especificidades.
A consciência de que o Coração de Jesus se apresenta como modelo sólido para coração do batizado, realidade que tenho sublinhado com tanta insistência, vai ao encontro do contributo que o Papa vai colher a São Charles de Foucauld, e que se manifesta por meio de um sério compromisso de desejo mimético das ações, sentimentos e palavras que escorrem, qual água e sangue, do Coração de Jesus.
Neste caminho de configuração profunda com o Coração do ressuscitado, experimentado na carne deste mártir do qual o Papa confessa que «para realizar plenamente este objetivo, necessitava conformar-se aos sentimentos do Coração de Cristo» (DN 179).
Encontro ainda neste número da Encíclica um tríplice percurso proposto por Charles de Foucauld, e que o Papa faz questão de partilhar connosco citando os escritos deste mártir:
a) o desejo de sofrimento como meio de retribuição do amor por amor;
b) o desejo de o imitar e «oferecer-se com ele» – na consciência de uma pequenez que roça os limites do completo nada – «como, vítima, para a santificação dos homens» (DN 179);
c) o desejo de anunciar o amor dando a conhecer a pessoa de Jesus e a originalidade do seu modo de ser e proceder – numa dinâmica de ação missionária como resposta direta ao amor experimentado no próprio coração (cf. DN179).
Neste cenário de estou convicto de que contactar com o ardor do Coração de Jesus nunca pode ser um «aquecer-se em banho-maria, lentamente, de fora para dentro». É antes um deixar-se aquecer de dentro para fora, é ter vontade de colocar o coração sobre as brasas para servir os/aos irmãos, qual peixe que aguarda pacientemente como dom para o encontro de partilha– no quadro das aparições do Coração de Jesus ressuscitado –, servido por mãos gloriosamente trespassadas no banquete do reconhecimento à beira do lago.
Deste encontro de amor emana a importância de um coração e espírito atentos como quem oferece os ouvidos aos ensinamentos de Jesus, atitude muito valorizada por São Vicente de Paulo defende que se deve «tomar do Coração do Senhor algumas palavras de consolação» (DN 180). Assim o Papa Francisco, sublinhando a importância de tornar real esta dinâmica e de não sucumbir à facilidade da virtualização das experiências, reforça o papel de uma «metamorfose interior» que «pressupõe-se que o próprio coração tenha sido transformado pelo amor e mansidão do Coração de Cristo» (DN 180).
Destas palavras do Papa Francisco intuo um benefício na aplicação prática da mansidão como virtude pastoral, ela que torna arável a terra do coração dos Santos, que como São Vicente de Paulo cultivam em si esta característica do Coração de Jesus que considero totalmente diferenciadora, e diante da qual se emocionam até os corações mais constrangidos, impelidos, pela beleza do ardor amoroso experimentado, a associar-se numa compulsão esclarecida à obra do pleno amor do Coração do Senhor.
Entender a reparação como atitude de construir sobre ruínas, é a imagem que o Papa desenvolve para introduzir uma temática presente tanto na esfera pública da devoção ao Coração de Jesus, como na sua experiência íntima e privada.
Neste sentido, nunca como nos nossos tempos se contemplou, com tal urgência, a necessidade da materialidade do ato de reparar sobre as ruínas da ação humana – escombros que podemos entender como provenientes da propagação das estruturas sociais do pecado – com o objetivo de, na impossibilidade de dissolver na totalidade as artimanhas do pecado social, ao menos atenuar as suas consequências e progressão.
Creio que diante deste cenário de carência existencial da encarnação da ação performativa do amor no coração doente do mundo, verifica-se a necessidade de compreender melhor o contexto que o reclama, bem como as implicações estéticas e teológicas de o exercer por meio da aplicação da reparação com as feições com que o Papa a redesenha nesta encíclica.
Concordamos certamente com o dado de que para haver ruínas são necessárias verificar duas premissas: haver sido edificado um património fruto dos esforços de tantos rostos anónimos e conhecidos; existir a ação destruidora desses bens por manifesta e deliberada ação de destruir ou pela atitude desleixada no domínio da sua conservação, que pela força da erosão do tempo e a calcificação da «desafeição» pelo edifício o deitam naturalmente por terra.
Assim e analisando os sinais dos tempos que vivemos, assistimos a um cumprimento lamentável da segunda premissa num quadro dramático seja a nível físico – onde países molestados pela guerra vêm as suas vilas e cidades arruinadas pela guerra; a nível demográfico onde o impacto das mortes de soldados e civis estropiam a estruturas populacionais; e ainda a nível moral onde se assiste à ruína continuada das estruturas sociais – estado social, casamento, família, relações sociais, valores morais, vida e condição humana – como lugares onde se assiste a um retrocesso civilizacional quando comparados com os padrões alcançados com a colaboração do humanismo cristão.
Ora diariamente sentimos os olhos e ouvidos bombardeados por imagens e sons de destruição – as guerras que desfiguram as paisagens da Ucrânia, de Gaza, do Cabo Delgado, da Síria e de tantos outros locais onde a cada dia cresce ainda mais o cenário desolador da ruína – que, de um modo transversal, afetam quer os edifícios sociais mutilados pela perda de valores que considerávamos como adquiridos como são os direitos à autodeterminação dos povos, à integridade do território, direito à vida, à existência social ou até mesmo à religião, são ignorados e espezinhados com cada vez mais facilidade.
Acredito que este conjunto de prerrogativas, ao tornarem-se líquidas, escorrem para uma terra armadilhada por tantas ideologias que promovem a indiferença, a indiferenciação e a inatividade com o único objetivo de «dividir para melhor controlar».
É neste clima de permanente contenda que a pertinência das palavras e pensamento do Papa Francisco sobre a oportunidade magnífica de redenção oferecida pela reparação, acolhida como instrumento de misericórdia que Deus coloca quotidianamente nas nossas mãos podem promover uma sobressalto de consciência e uma mudança de mentalidade.
É importante compreender ainda que no entender do Papa o sentido fundamental da reparação deve ser tecido com as linhas disponibilizadas pela Palavra de Deus, e que a correspondência a essa oferta do Coração de Cristo é a manifestação daquilo que o Senhor espera realmente de nós (cf. DN 181).
O Papa Francisco destaca ainda que o desenvolvimento da teologia da reparação tem encontrado eco nas batimentos mais recentes no coração do magistério, nomeadamente no pontificado de São João Paulo II, a quem atribui um papel crucial na medida em que «ofereceu uma resposta clara aos cristãos de hoje, a fim de nos guiar para um espírito de reparação mais em sintonia com o Evangelho» (DN 181).
Nesta linha destaca-se o entendimento que o santo polonês tem da reparação ao Coração de Jesus como utensílio com aplicação social ao defender «sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, poderá ser construída a civilização do amor tão desejada, o Reino do Coração de Cristo» ou Civilização do Amor muito menos anacrónico e coerente com a suavidade do jugo do Coração de Jesus.
De sublinhar que o Papa Francisco opta pela formulação «[uma nova] civilização do amor» (DN 182), conceito originalmente cunhado por São Paulo VI, e em boa hora retomado e desenvolvido por São João Paulo II, recuperando a categoria evangélica do «Reino de Deus/ Reino do Coração de Jesus» lendo-a à luz destes tempos em que a conotação com esta figura de governo no atual contexto possa ser contraproducente, incompreensível e até um pouco anacrónica.
Acredito que a grande novidade do sentido social do Coração de Jesus seja a atenção pelos mais pequenos que são os seus prediletos, os que mais desprotegidos vêm acrescido de dificuldade – imposta pela inaptidão ao amor das estruturas sociais vigentes – o próprio exercício da vida (cf. DN182).
O eco da questão provocatória da teologia joanina: Se amas a Deus que não vês e desprezas o irmão que partilha contigo o mesmo espaço de existência? (cf. 1Jo 4, 20). Deve assinalar ao coração do examinando que algo de inautêntico povoa essa sua aparência de amor.
Na verdade, o amor genuíno é aquele que trabalha para se aproximar da perfeição encontrada no Coração de Jesus, o mesmo que anima o coração do apóstolo Paulo a escrever a ode ao amor gravada nos versos de 1Cor 13, 1-13, certeza de que um tal projeto deve ser objeto de um ânimo transversal em ordem ao amor a Deus e no amor aos irmãos (nossos próximos).
Assim, diz-nos o Papa Francisco, que uma só coisa é necessária «junto a Cristo, sobre as ruínas que, com o nosso pecado, deixámos neste mundo, somos chamados a construir uma nova civilização do amor, isto é, reparar conforme o que o Coração de Cristo espera de nós pois «no meio do desastre deixado pelo mal, o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza» (DN 182).
Ora na construção desta «Civilização do amor», nascida da caridade do Coração de Jesus, Deus conta com o nosso empenho e colaboração e é, precisamente, neste campo de exercício fundamental da humanidade onde reside, no entender do Papa, o espaço de crescimento desta «sociedade da atenção e do cuidado» e, ao mesmo tempo, as dificuldades e as barreiras à sua própria concretização.
Nstas trincheiras que a humanidade se auto impõe insere-se a deriva existencial a que a sociedade iludida de autossuficiência se entrega para receber, como fruto da sua teimosia, uma derrocada das suas instituições que a soterra sob os escombros da sua própria desagregação e degradação promovida pela diluição da consciência de pecado e a normalização do egoísmo e da indiferença a que Francisco chama «alienação social».
É neste coração social mutilado, pelos golpes da desumanidade que os cristãos são chamados a exercer a reparação das estruturas desfiguradas da sociedade como «imposição e obrigação natural, que escorre da conversão do coração» (cf. DN 183).
Assim, o ideal dehoniano do coração do cristão como elo da engrenagem social da «civilização do amor», sonhada por Jesus no Evangelho, e assumida pelo magistério da Igreja, ou seja, reflete o dever do cristão, em assumir os seus compromissos pela presença e testemunho no seu quotidiano, nas suas relações, nos seus lugares de exercício da vida: «precisamente porque a reparação evangélica tem este forte significado social, os nossos atos de amor, de serviço e de reconciliação, para serem reparações eficazes, requerem que Cristo os impulsione, os motive e os torne possíveis» (DN 184).
Certo de que um tal compromisso não pode ser resultado de uma ação meramente cosmética e superficial e que, por isso, não se limita a disfarçar imperfeições – até porque semelhante procedimento não seria, de todo, coerente com a exigência e profundidade do Coração de Jesus narrado pelo Evangelho – concebo que Coração de Jesus, entendido como remédio, aponta sempre para dentro, isto é, reclama sempre obras de profunda reparação impulsionando o crente, contagiando-o nos seus cativantes batimentos, a ir reparar se preciso for até aos alicerces (cf. DN 184).
O Papa não fecha este número sem nos deixar um conjunto gradativo de características fundamentais, passíveis de uma utilização como ferramentas de encarnação do Coração de Jesus, na integridade e integralidade da reparação – reflexo de obras exteriores não absolutizadas, porque remetem sempre para a harmonia da sua expressão interior –, na realidade concreta do mundo: «a reparação cristã não pode ser entendida apenas como um conjunto de obras exteriores, que são indispensáveis e por vezes admiráveis. Exige uma espiritualidade, uma alma, um sentido que lhe dê força, impulso e criatividade incansável. Precisa da vida, do fogo e da luz que vêm do Coração de Cristo» (DN 184).