Dilexit nos: um apelo a ungir os corações feridos com o óleo apaixonado do Coração de Jesus 

A paleta de cores com que o mundo pinta, nos corações da humanidade, as suas propostas de indefinição, dispersão e domínio reduz-se, atualmente, quase sempre à monotonia de um negro carvão. Com os seus traços carregados e rudes, esboça uma tendência galopante para a desumanização.

É precisamente nesse cenário de escuridão, bafio e bolor que as palavras do Papa Francisco rasgam um horizonte de esperança. O seu convite desafia-nos a pintar a vida, a nossa e a dos irmãos, com cores quentes, reconfortantes e plenas de amor, tal como o Coração de Jesus nos ensina a fazer, com exemplos concretos, no Evangelho.

Este desafio impõe ao coração do batizado uma exigência incrível, mas não impossível, tornando-o responsável pela guarda da criação e chamando-o a dar uma resposta firme e coerente, plena de cuidado, preocupação, amor e compaixão pelos irmãos e pelo mundo, que nos são dados como manifestação do amor de Deus Pai. Só assim, se evita a repetição, no nosso quotidiano, da dolorosa pergunta que Deus fez a Caim: «Onde está o teu irmão?» (cf. Gn 4,9).  

Sim, porque não tenhamos ilusões, sempre nos serão pedidas contas da administração dos dons que o Senhor nos confiou, uma certeza documentada em diversas passagem das Escrituras (cf. Pv 3,9-19; Lc 16, 10-16; Mt 25,14-30; 1Pd 4-10; 1Cor 4,2).

Na Sagrada Escritura, a resposta de Caim surge carregada de mentira, inveja e ódio fratricida, revelando as infidelidades quotidianas e os comportamentos mecânicos e instintivos da humanidade. Diante desta realidade, o Papa Francisco encoraja-nos a redescobrir que «a proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos» (DN 205).

Sejamos honestos: ficar preso às afeições e sensações que impedem o exercício saudável de um coração moldado pelo de Jesus é tão prejudicial quanto recusar-se a compreendê-las.

Neste contexto, a questão fundamental insere-se no campo do discernimento, ou seja, no exame humilde da autenticidade e utilidade dos nossos sentimentos, emoções e intenções, bem como da forma como interferem nas nossas relações fraternas e escolhas de vida. Tudo isso, sem perder de vista a necessidade de nos configurarmos com a luz que emana do modelo de amor ensinado pelo Coração de Jesus.

Assim, creio que a autenticidade pode ser entendida como um verdadeiro instrumento de salvação, pois predispõe-nos e aproxima-nos da vontade de Deus. Pelo caminho, rasga um oásis de esperança, fé e amor nas regiões mais áridas do coração humano.

Não podemos ignorar o forte caráter reativo e performativo das emoções. No entanto, é essencial recordar que, quando mal processadas, elas podem paralisar-nos e impedir-nos de agir. E isso não nos convém, enquanto cristãos comprometidos com os valores humanistas da nossa condição.

Repare-se no caso do medo, essa emoção gélida que bloqueia corpo e mente. Entre os mais modernos receios, destacam-se alguns que se tornaram tendência nesta fase da história da humanidade: o pavor de envelhecer, de perder a conexão à internet ou de ficar sem bateria no telemóvel. Medos que, embora curiosos e inusitados, são preocupantemente reais e cada vez mais dilacerantes nos corações mais frágeis.

São sintomas evidentes de uma cultura de alienação (cf. DN 183), que valoriza o que é provisório, descartável, imediato e de fácil consumo. Realidades que o Papa Francisco tem vindo a denunciar ao longo do seu pontificado.

Na maioria das vezes, esse estado de inquietação conduz à tentação de idolatrar o que é virtual – um mundo onde a aparência de perfeição é servida como um bálsamo hipnótico e enganador. Muitos não apenas procuram refúgio ali, mas acabam por transformar esse refúgio num exílio.

Mas qual é, afinal, o desejo do Coração de Jesus para o nosso frágil coração de carne (cf. Ez 36, 26)? Seguramente, que tenha vida – com qualidade e em abundância (cf. Jo 10, 10) – para que possa cumprir a missão de crescer em sabedoria e graça, à imagem do Senhor, e multiplicar sobre a terra (cf. Gn 1, 28) uma multidão de corações atentos e disponíveis como o d’Ele.

E o que significa viver no Coração de Cristo, senão deixar-se consumir, utilmente e na doação total de si, pelo passar do tempo? Afinal, enquanto sujeitos à cronologia, esta é a única forma de continuar a viver.

Nesta atenção ao irmão insere-se a corresponsabilidade social, que o Papa Francisco vê como parte essencial do culto ao Sagrado Coração de Jesus. Nesse contexto, mais do que uma exigência de quem busca imitar o Senhor, ela é sobretudo um meio de pôr o amor em movimento.

Ainda assim, há que ter cautela. O Papa adverte-nos contra a absolutização desta dimensão, sobretudo se for dissociada do seu sentido religioso. Como ele próprio afirma: «Por isso mesmo dizemos que não se trata sequer de uma promoção social desprovida de significado religioso, que no fundo seria querer para o ser humano menos do que aquilo que Deus lhe quer dar» (DN 205).

Para Francisco, a dimensão social, o sentido religioso e a prática do serviço e da caridade devem seguir por uma via comum: a do diálogo fraterno, centrado na humanidade que nos une e não nas diferenças que nos afastam de modo aparentemente irreconciliável.

Se recorrermos à Sagrada Escritura, veremos o perigo de ignorar essa verdade. Devemos evitar a todo o custo, por meio do diálogo, a repetição do fosso que separava Lázaro, imerso na glória de Deus, do homem rico, condenado às suas tribulações (cf. Lc 16, 26).

Afinal, a glória conquista-se antecipando em vida, através do amor e da conversão, a consolação futura. Pois, embora sedentos da água viva que brota do lado de Cristo, podemos ver-nos privados dela por um mau uso do nosso livre arbítrio. Tal como aquele homem rico (cf. Lc 16, 20-21), que terminou «roído pela traça».

Nesta linha, acredito que cultivar uma relação íntima com o Coração de Cristo deve tornar-se, em nós, uma alavanca para uma ação missionária mais consciente e madura, capaz de responder aos desafios dos tempos atuais, marcados pelo arrefecimento das relações fraternas.

Esse desleixo para connosco, para com Deus e para com os irmãos tem aprofundado o golpe da lança no Coração de Cristo – um Coração que, pela graça do Batismo, é também o nosso. Assim, as suas dores tornam-se também nossas, e tanto mais profundas quanto mais nos deixamos ser membros comprometidos no seu Corpo místico.

Dessa forma, a Igreja, enquanto prolongamento da presença real e sensível do Coração glorificado de Cristo, deve peregrinar no mundo para acompanhar todos ao longo do caminho (cf. Lc 24, 13-31). Vejo aqui uma certa nota de sinodalidade, pois nesse percurso se reflete um cuidado essencial da Igreja, aprendido da prática do próprio Coração de Jesus entre nós.

Esta condição pós-pascal manifesta a humilde disponibilidade do Coração de Jesus para escutar os nossos desalentos e contendas existenciais, especialmente diante do aparente fracasso de projetos de vida. É Ele que nos recorda o verdadeiro sentido das Escrituras e a sua aplicação prática, oferecendo-nos uma esperança totalmente resinificada à luz do amor infinito que arde no Coração de Deus.

Conscientes de que o amor é um dom gratuito, com a vocação suprema de ser partilhado, aprendemos com o Papa Francisco que não podemos comunicar esse calor reconfortante da caridade senão pela via missionária.

Perante um projeto tão audacioso quanto entusiasmante, o Papa aconselha-nos a buscar no magistério a argamassa para construir uma resposta sólida às inquietantes questões que este desafio coloca à sociedade e à Igreja.

Nesse sentido, Francisco convoca os contributos de São João Paulo II, especialmente ao recordar a relação umbilical que o santo polaco estabeleceu entre o rosto social da devoção ao Coração de Jesus e o exercício salutar da reparação, que ele inspiradamente chamou de «cooperação apostólica para a salvação do mundo» (São João Paulo II, DN 206).

Seguindo esse pensamento, o Papa Francisco destaca a importância da «Consagração do mundo ao Coração de Cristo» como expressão de um compromisso missionário, um caminho de entrega e dedicação ao serviço. Essa intenção, afirma ele, «deve ser aproximada à ação missionária da própria Igreja, porque responde ao desejo do Coração de Jesus de propagar no mundo, através dos membros do seu Corpo, a sua dedicação total ao Reino» (São João Paulo II, DN 206).

A lucidez com que o Papa Francisco compreende os efeitos do sentido social desta devoção no coração do batizado exige dele o mesmo dinamismo do Coração do Senhor. Como afirma São João Paulo II, «por conseguinte, através dos cristãos, o amor difundir-se-á no coração dos homens, para que se construa o Corpo de Cristo, que é a Igreja, e se edifique uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade» (São João Paulo II, DN 206).

Para alcançar esse objetivo, a Igreja, enquanto corpo, e o batizado, enquanto membro, precisam sentir em si o pulsar do Coração ressuscitado. Esse dom divino deve animar-lhes as veias, fortalecer-lhes as pernas e impulsionar-lhes os braços para a ação missionária – a única capaz de tornar o corpo eclesial um verdadeiro prolongamento das chamas de amor do Coração de Cristo. Como afirma o Papa Francisco, «isso ocorre também na obra missionária da Igreja, que leva o anúncio do amor de Deus manifestado em Cristo» (DN 207).

Por isso, devemos ter coragem e arriscar amar, gastando todos os nossos dons e recursos para esse fim. Afinal, como nos recorda o Papa, «à luz do Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor, e o maior risco desta missão é que se digam e façam muitas coisas, mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo que abraça e salva» (DN 208).

Para compreender melhor essa dinâmica de encontro, acolhimento e escuta, podemos olhar para a figura do Coração de Jesus, que, de braços abertos, espera por nós. Um exemplo visual marcante desse acolhimento encontra-se na estátua do Sagrado Coração de Jesus, situada no centro do recinto de oração da Cova da Iria. Se a visualizarmos, ainda que na imaginação, perceberemos como ela expressa simultaneamente uma tendência para o movimento e a serenidade de quem aguarda, pacientemente, o nosso tempo singular para iniciar o diálogo.

Mas o que está na origem desse gesto de acolhimento e disponibilidade que essa representação do Coração ressuscitado transmite?

Acredito que a resposta mais genuína para essa questão seja o amor de Jesus por nós e pelo Pai. É esse amor sublime que impele o Coração do Ressuscitado a acompanhar a comunidade nascente da Igreja no tempo pós-pascal. É o mesmo amor que o leva a prometer-lhes a fidelidade da sua presença eterna: «Eis que estou convosco todos os dias, até ao fim dos tempos» (Mt 28,20).

Diante desse exemplo desconcertante, o que nos resta senão amar «sempre e cada vez mais», amar sem barreiras nem medidas? Afinal, não foi esse o distintivo que Jesus escolheu para os seus discípulos? «Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros» (Jo 13,35).

Na certeza de que, ao partirmos deste mundo, nada mais restará de nós senão o amor, devemos empenhar-nos em deixar essa marca nas causas que abraçamos, nas pessoas com quem nos relacionamos e nos lugares onde vivemos e contribuímos para um mundo mais feliz e melhor.

Diante dessa realidade, surge uma questão essencial: como pode alguém que nunca experimentou amar ou ser amado dizer que compreende o amor?

O amor é um fenômeno e, como tal, a sua existência está intimamente ligada à sua manifestação. Ele brota do Coração do Senhor e ressoa na nossa vocação missionária, chamada a comunicar essa experiência ao mundo. Como destaca o Papa Francisco, «a sua principal preocupação é comunicar o que vivem e, sobretudo, que os outros percebam a bondade e a beleza do Amado através dos seus pobres esforços» (DN 209).

O amor possui uma linguagem própria – carregada de poesia, criatividade, fecundidade e renovação constante. E essa linguagem não existe sem um interlocutor. Ao ser confrontado com o calor amoroso, cada pessoa oscila entre dois papéis: beneficiário e benemérito, aquele que recebe e aquele que doa, num contínuo diálogo que faz do ato de amar uma experiência sempre nova e transformadora.

Fora da dinâmica do amor, encontra-se a autorreferência – uma atitude que o aniquila, sujeitando-o à deterioração provocada pelo egocentrismo e à corrosão do egoísmo.

Por isso, o testemunho da felicidade de quem se sente amado pelo Coração de Jesus torna-se essencial para fomentar um apostolado apaixonado. Como propõe o Papa Francisco, «a missão, entendida a partir da irradiação do amor do Coração de Cristo, requer missionários apaixonados, que se deixem cativar por Cristo e que inevitavelmente transmitam esse amor que mudou as suas vidas» (DN 209).

Mas como podemos concretizar essa missão na prática?

A resposta pode estar nos grandes paradigmas comunicacionais do Evangelho, frequentemente mencionados pelo Papa Francisco, que podem ser sintetizados no seguinte modelo de ação:

  1. Vem e vê como o Coração de Jesus age nas relações comunitárias.
  2. Conhece-o – escuta-o na Sagrada Escritura e no íntimo do teu coração, para que possas verdadeiramente amá-lo.
  3. Ama-o – para que tua vida transborde em amor, graça e misericórdia.
  4. Vive-o – deixa que Ele transpareça em ti, para que, transformado pelo Senhor, possas anunciá-lo com palavras, obras e, sobretudo, pelo testemunho da tua vida.

Entre as grandes lições do Coração de Jesus, destaca-se a vivência do amor que «tudo compreende» (cf. 1Cor 13,7). Esse amor nos oferece, a nós e aos nossos irmãos, a experiência da verdadeira liberdade – a liberdade de amar e ser amado, um dom que só pode ser plenamente compreendido através do coração humano aberto à graça.

Em Deus, o amor é perfeito e, por isso, impossível de ser contido. Esse amor é o fundamento da criação e o centro da redenção. Ele flui naturalmente do Coração de Jesus como um dom para todos, oferecendo-nos a liberdade de querer amá-lo, de aprender do Seu Sagrado Coração (cf. Mt 11,29), de acolhê-lo (cf. Jo 1,12) e, sobretudo, de partilhá-lo com os irmãos (cf. 1Jo 4,7). 

Tema de Estudo: ‘Dilexit Nos’
https://www.leiria-fatima.pt/tag/dilexit-nos
Criação de Unidades Pastorais e equipas presbiterais
5 de Março
Semana de Oração pelas Vocações
4 de Maio
a 11 de Maio
Jubileu das Vocações
17 de Maio
, às 09:00
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