Dilexit Nos: Para amar é preciso ter um corpo capaz de sentir o Coração de Jesus

Continuamos a partilhar algumas notas sobre a leitura da Encíclica «Amou-nos» que o Papa Francisco em boa hora ofereceu à Igreja e ao mundo como tesouro concreto para este tempo tão desumanizado, desencarnado e desconcentrado. Nesse sentido aprender com o Papa por meio das figuras que ao longo dos séculos encostaram a cabeça ao Coração de Jesus é sempre uma experiência emocionante.     

 Várias místicas, diz o Papa, «relataram experiências de encontro com Cristo, caracterizadas pelo repouso no Coração do Senhor, fonte de vida e de paz interior» (DN 110). A profundidade destas experiências convoca todo um património sensorial que reclama a sinergia de todos os sentidos do corpo humano. Santa Gertrudes, por exemplo, relata a escuta do compasso dos batimentos do Coração de Cristo, ao repetir, ela própria, o gesto de amor do discípulo do Quarto Evangelho. A santa alemã, dotada de uma lucidez intemporal, confessa, num tom em tudo semelhante ao quadro que hoje vivemos: «a doçura destes batimentos foi reservada aos tempos modernos, para que, ao escutá-los, o mundo envelhecido e morno possa renovar-se no amor de Deus» (DN 110).

É este mesmo diagnóstico que o Papa Francisco recupera para este nosso tempo, como que num grito de alerta para a natureza cíclica do desamor na história humana, que, pelo seu teor glaciar, necessita de se deixar aquecer constantemente pela paixão ardente do Coração de Jesus. Tal como o fervor contemplativo da vida monástica desenha, na devoção ao Sagrado Coração, «um meio de encher de afeto e proximidade a sua relação com Jesus Cristo» (DN 111), uma vez que, diz o Papa, «quem entra pela ferida do Seu Coração é abrasado em chamas de afeto» (DN 111).

Seguidamente, o Papa desenvolve, por meio de um conjunto de figuras, os contributos para o relato teológico da personificação do amor de Deus em Jesus de Nazaré, atribuindo a João Eudes a paternidade de uma consciência solene como meio de vivência da devoção, que necessita de ser celebrada de modo festivo e triunfal (cf. DN 113). Acredito que este esforço de afirmação da devoção, rasgando espaço litúrgico e eclesial, se insira na dinâmica balthasariana do reconhecimento do amor pelo amor, sendo natural a celebração festiva de uma realidade fulcral da vida da Igreja, como é o Coração que tanto amou a humanidade, assumindo-a para si, num primeiro momento, e entregando-se à morte por ela como ápice da consumação de um coração que ama tudo e todos.

Expressão primeira de um esforço local que se expande à Igreja universal, esta consciência assume-se como prioridade para tantos pensadores católicos que o Papa faz questão de mencionar (cf. DN 113).

A São Francisco de Sales, o Papa vai buscar a intuição de lançar não só a âncora da contemplação, que oferece segurança em meio às águas agitadas do viver hodierno, mas também um necessário momento de paragem na rota que havíamos, de antemão, estabelecido, para que, reunidas enfim as condições necessárias, mergulhemos num encontro pessoal, coração a Coração, com Jesus, «que nos convida a habitar dentro dele numa relação pessoal de amor, na qual se iluminam os mistérios da vida» (DN 114). Dos contributos de Francisco de Sales, o Papa convida a confiar sem medida em Deus (cf. DN 116) e a encontrar no Coração de Cristo o hospedeiro que, diante do arrefecimento da nossa piedade amorosa, nos recorda a necessidade de o encarnar no mundo, por meio de uma ação habitante, alicerçada no fazer o bem ao nosso redor e, com essa atitude genuinamente apostólica, «simbolizar até onde o amor de Cristo por cada um não é abstrato ou genérico, mas implica uma personalização em que o fiel se sente valorizado e reconhecido em si mesmo» (DN 115).

O que se pretende é a coragem de nos mergulharmos inteiros no rio que corre do Coração de Jesus de modo pleno e quotidiano. Aqui, entendo ser benéfico recuperar os conceitos de constância, confiança e coerência como critérios operativos para conseguir uma configuração a Deus baseada numa ação simétrica ao Coração de Jesus, isto é, imitando como Jesus procede na distribuição do seu amor (cf. DN 117-118). Encontramos, na teologia e espiritualidade de Francisco de Sales, um convite a ver, na geometria do Coração de Jesus, as referências cartográficas onde residem as coordenadas fundamentais para um viver feliz.

Neste contexto de fervor espiritual, o Papa evoca os «acontecimentos de Paray-le-Monial», que ele apelida de «uma nova declaração de amor», agrupados nos números 119 a 124. Acredito que a novidade deste tempo se centre mais na forma do que no conteúdo. O conteúdo, como convém, insere-se no dinamismo revelador iniciado pela encarnação do Verbo em Jesus. Já a forma rasga, no horizonte da devoção, uma consciência de apostolado, o que até aqui era impraticável no quadro de uma devoção profundamente contemplativa e centrada no símbolo físico do Coração e nas consequências que para ele teve o mistério da Paixão.

Recupera-se, assim, para o desenho estético e teológico da devoção, a sensibilidade do corpo. Contudo, ao invés dos primórdios da contemplação do Coração de Jesus na figura do crucificado, com o lado aberto e contemplado já morto e esboçado com os traços a carvão da Paixão segundo São João, envolto na penumbra que cobriu a terra naquela tarde, o Coração de Jesus aparece a Margarida Maria glorificado, pintado com a luz e as cores do vivente (cf. DN 124), que caminha entre nós ao jeito lucano dos discípulos de Emaús, em que o Ressuscitado surge preparado para caminhar com a Igreja nascente do sangue e da água manados do seu Coração.

Posto isto, regressemos ao texto do Papa e ao papel fundamental de Santa Margarida Maria no reforço de uma devoção que, mais do que uma resposta aos inimigos da fé, se afirma como uma proposta de amor para uma vida plena, que o Pontífice afirma como embrião daqueles eventos místicos: «a declaração de amor que se destaca na primeira grande aparição» (DN 119), e que, no meu entender, condensa não só a mensagem de amor, mas igualmente o mandato apostólico nos seguintes moldes: O meu Coração, abrasado de amor pela humanidade, já não pode conter em si as chamas ardentes desse amor; precisa derramá-las por intermédio de ti e manifestar-lhes a riqueza das suas bênçãos, tal como faço contigo (cf. S. Margarida Maria Alacoque, Autobiografia, n. 53 (Braga, 1984), 57-58).

Neste relato de Santa Margarida Maria, vemos a constituição de um modo eminentemente comunicativo, particular de apostolado, expresso pelo imperativo do anúncio do amor, impregnado pelo mesmo odor evangélico ao que havia sido comunicado aos apóstolos: «Ide e anunciai», isto é, comunicai com a vossa vida as maravilhas que vistes e ouvistes enquanto estivestes comigo. Constituída como testemunha participante do mistério do amor, ela encontra aí o seu ministério, propondo deixar-se inflamar pelo fervor que alimenta a ação do anúncio, atitude cuja beleza contagia e anima o tortuoso caminhar de cada coração com o amor consumido e consumado para a nossa salvação (cf. DN 120).

Diz o Papa que «o reconhecimento intenso do amor de Jesus Cristo que Santa Margarida Maria transmitiu oferece-nos valiosos estímulos para a nossa união com Ele» (DN 121). Este modo de proceder permite-nos não só reconhecer o amor, mas também ler as propostas espirituais recebidas à luz do Evangelho, oferecendo-nos uma segurança e uma esperança firme, assente em razões profundas, para viver a espiritualidade do Coração de Jesus e que recorda o odor evangélico do encontro místico a que o Coração de Jesus nos convida diariamente (cf. DN 121-122).

Em traços gerais, o contributo de Santa Margarida Maria, que o Papa aprofunda, corre no sentido prático da espiritualidade, que nos apela a aprender, pela convivência, a obter os frutos de uma plena configuração com o Coração de Jesus. Aqui, ouso propor uma «mística da convivência» como resposta ativa para as inquietações do tempo presente, confiando que Jesus nos toca sempre no que há de mais íntimo e sagrado: o nosso coração. Assim, deixemo-nos derrotar por uma sã loucura que lhe devota tudo o que amamos e somos (cf. DN 123).

Acredito que o número 124 constitua uma síntese dos elementos autobiográficos do mistério do Coração de Jesus, que fazem parte da Sua e da nossa história e que não podem, de modo algum, ser arbitrariamente absolutizados. A sua conexão e interpretação conjunta explicam a condição da Glória pela perspetiva do corpo, que todos temos e que, em Cristo, todos somos. Para amar neste mundo é preciso um corpo. Deus quis tomá-lo na encarnação, oferecê-lo na Paixão e partilhá-lo na Ressurreição. Apenas uma consciência integral de que o único mistério do Coração de Jesus se sente no diálogo entre encarnação, vida, paixão e ressurreição nos permite contemplar o verdadeiro rosto de Deus.

Tema de Estudo: ‘Dilexit Nos’
https://www.leiria-fatima.pt/tag/dilexit-nos
Formação para catequistas sobre ambientes seguros
25 de Janeiro
, às 09:30
Domingo da Palavra de Deus
26 de Janeiro
Retiro 24, para jovens
1 de Fevereiro
ENDIAD – Encontro Diocesano de Adolescentes
8 de Março
, às 09:30
Partilhar

Leia esta e outras notícias na...

Receba as notícias no seu email
em tempo real

Pode escolher quais as notícias que quer receber: destaques, da sua paróquia

plugins premium WordPress