Dilexit nos: O segredo é deixar-se transubstanciar o coração no Amor do Coração de Jesus

Retomamos estudo da «Dilexit nos» com a análise de um conjunto de números agrupados num tópico chamado «A oferta ao Amor», e que acredito poder definir-se como a opção decidida e apaixonada em oferecer-se ao Coração de Cristo por intermédio de ações de amor, que Lhe agradam, e cujos beneficiários são os irmãos e os seus contextos de existência.           

Para sistematizar o tema, o Papa Francisco serve-se dos argumentos da «luminosa espiritualidade de Santa Teresinha do Menino Jesus» (DN 195), em quem acredito residir um apelo ao exercício do discernimento enquanto critério orientador da aplicação da reparação – recordemos que as circunstâncias, as intenções e os beneficiários moldam necessariamente o ato de reparar.              

Neste sentido o Papa recorda que Teresinha não se compraz na forma extrema de reparação, popularizada pelo século do seu tempo – praticada por procuração, isto é, por alguém que se oferece para substituir o penitente em ordem à satisfação da sua dívida à «justiça divina».  

Para a santa carmelita tal iniciativa já havia sido plenamente assumida por Jesus no abraço à cruz daí ser mais proveitoso optar por outro caminho, pois, Teresinha está convicta que, tal como refere o Papa, a «insistência na justiça divina acaba por levar a pensar que o sacrifício de Cristo fosse incompleto ou parcialmente eficaz, ou que a sua misericórdia não fosse suficientemente intensa» (DN 195). 

É desta proveitosa inquietação de Santa Teresinha que nasce o ânimo para encontrar como resposta para tal equação, uma afeição e estilo próprios capazes de gerar sentidos novos à sua experiência da reparação que tranquilize e satisfaça.

Para esta enamorada pelo Coração de Jesus, tecer um afeto próprio para a reparação passa por não se satisfazer na aparência, mas a buscar sempre a essência das coisas, das pessoas e dos lugares de destino da reparação.       

A originalidade da proposta desta centra-se, julgo eu, num constante dispor-se para ser recetáculo do amor divino que, qual cálice da eucaristia, assume a vocação de ser instrumento da partilha do Sangue do Coração de Jesus aos irmãos uma vez que «com a sua intuição espiritual, Santa Teresa do Menino Jesus descobriu que existe uma outra maneira de se oferecer, em que não é necessário saciar a justiça divina, mas deixar o amor infinito do Senhor difundir-se sem entraves» (DN 196).    

O Papa enaltece a profunda admiração que Santa Teresinha nutre pelo amor do Coração do Senhor, que lhe faz brilhar os olhos e estremecer o coração, nomeadamente no imenso respeito pelo tempo e liberdade de cada um: «vimos que ela adorava todas as perfeições divinas através da misericórdia, e assim as via transfiguradas, radiantes de amor» (DN 197) que não agride, não provoca e não desrespeita, apenas ama.  

Movida pela brisa do Espírito, que sopra do lado aberto do Senhor e lhe acaricia o rosto, Teresinha sente-se impulsionada a olhar mais longe. Percebe que esse vento favorável deve ser aproveitado para içar as velas do barco do coração e lançar-se na misericórdia do amor divino. No entanto, essa travessia não é solitária: não se trata de uma regata a solo, mas de uma viagem na barca da sua amada Igreja, a esposa do Coração de Jesus.

Decidida a reparar o Coração de Cristo de uma forma diferente, Teresinha, como recorda o Papa, deste modo, nasce o seu ato de oferecimento, não à justiça divina, mas ao amor misericordioso» (DN 198).  

Esta preferência pela misericórdia do «bom samaritano» ao carácter «cirenaico» de daquele que se substitui ao penitente, cumprindo a pena em seu lugar, Teresinha  manifesta uma nova oportunidade de se associar à obra da redenção pela originalidade e autenticidade de uma entrega total: «ofereço-me como vítima de holocausto ao vosso amor misericordioso, suplicando-vos que me consumais sem cessar, deixando transbordar para a minha alma as ondas de ternura infinita que estão encerradas em Vós, e que assim eu me torne mártir do vosso Amor, ó meu Deus!» (em DN 198). 

Esta consciência de que o Amor não é «express», «fast-food», «light» e muito menos automático, o Papa Francisco faz-nos perceber do pensamento de Santa Teresinha o diálogo entre a nossa vida no mundo e o nosso apostolado em Igreja realidade da qual diz o Papa: «é importante notar que não se trata apenas de deixar que o Coração de Cristo difunda a beleza do seu amor no nosso coração, através de uma confiança total, mas também que, através da própria vida, chegue aos outros e transforme o mundo» (DN 198). 

Este desafio fortalece em mim a convicção de que é no hoje da nossa humanidade e no agora da história que somos chamados a prolongar, também na Igreja, a graça do amor recebido do Coração de Jesus no batismo — um anseio profundo do coração de Santa Teresinha que confessa «no coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor […], assim o meu sonho será realizado» (em DN 198). 

Graças ao contributo de Santa Teresinha, que o Papa Francisco convoca, aprendemos a docilidade e a importância de deixarmos transubstanciar o nosso coração no Amor do Coração de Jesus, ela fez essa profunda experiência da qual suspira à sua irmã: «amo-te mil vezes mais ternamente do que habitualmente se amam as irmãs, visto que posso amar-te com o Coração do nosso Celeste Esposo» (Santa Teresinha em DN 199).  

Um tal arrebatamento da nossa realidade, requer uma configuração quase metamórfica ao jeito de redução fenomenológica ao essencial teresino, possível apenas para aqueles que vivem e cumprem plenamente o adágio paulino: «já não é o meu coração que vive, mas é o Coração de Cristo que vive em mim» (cf. Gl 2,20).

Aprendemos que a intensidade do nosso amor não é constante, mas varia conforme a nossa proximidade ao Coração de Jesus. Como em qualquer encontro entre viventes que se deixam apaixonar à medida que se conhecem, os frutos desse amor surgem no tempo certo, quando a relação atinge a maturidade da qual a carmelita suspira: «como eu queria fazer-vos compreender a ternura do Coração de Jesus, o que Ele espera de vós!» (Santa Teresinha, DN 199).

No seguimento destes contributos o Papa encoraja-nos, de modo convicto, a «que desenvolvamos esta forma de reparação, que é, em última análise, oferecer ao Coração de Cristo uma nova possibilidade de difundir neste mundo as chamas da sua ternura ardente» (DN 200). 

Não se trata de esquecer completamente a «reparação por procuração» e o necessário desagravo que também reclama o Coração de Jesus, mas de imprimir à vida Igreja e dos seus membros um novo horizonte – desenhando assim «novas expressões da força restauradora do Coração de Cristo» (DN 200) – do qual o  Papa Francisco afirma que «o modo mais adequado é que o nosso amor, em troca daqueles momentos em que foi rejeitado ou negado, dê ao Senhor a possibilidade de se dilatar» (DN 200). 

Mas afinal como podemos encarnar tal desafio? O Papa esclarece: «isto acontece se o nosso amor ultrapassa a mera “consolação” a Cristo, de que falámos no capítulo anterior, e se transforma em atos de amor fraterno com os quais curamos as feridas da Igreja e do mundo» (DN 200). 

Assim, entendo que a visão do Papa nos convida a extrair um novo paradigma para os nossos atos de reparação. Para isso, proponho a metáfora de uma oficina com uma linha de montagem, onde cada um desempenha uma função essencial na obra do amor. Dessa imagem, surge a noção de corresponsabilidade no amor, pois nos será pedido contas sobre a forma como cumprimos a nossa parte no múnus universal de amar.

Certo de que os momentos de dureza nos unem à paixão do Coração de Cristo e a consolação que dela resulta liga-nos, necessariamente, glória por ele experimentada (cf. DN 201) leio nas palavras do Papa Francisco, o reforço desta noção acrescentando que «a reparação que oferecemos é uma participação, que aceitamos livremente, no seu amor redentor e no seu único sacrifício» (DN 201). 

Perante isto, uma tal coerência entre o nosso e o Seu Coração opera em nós o milagre de ser «o próprio Cristo que prolonga através de nós os efeitos da sua doação total no amor» (DN 201). 

Ao ler o texto do Papa podemos entender a nossa participação na paixão de Cristo como solidariedade, uma vez que o Coração de Jesus operou o milagre de converter, pela livre oferta da sua vida, o exercício solitário da morte num evento profundamente solidário para connosco, e nessa medida abrir um novo sentido transcendente para a história humana da participação humana no seu mistério.   

No número 202 o Papa Francisco coloca o dedo na ferida, ao diagnosticar a proveniência egocêntrica da maioria dos sofrimentos que hoje experimentamos, que mais que um mal que afeta, sem dúvida, a nossa vida espiritual, revelam que as feridas no nosso ego, provocam tantas dores que, por não serem de origem física, não encontram remédio na medicina humana. 

Mas até para essas há esperança, mesmo essas podem ser ocasião de oferta para exercer a reparação, pela oportunidade que nos dão de experimentar o bálsamo da «humildade do Coração de Cristo que nos indica o caminho do abaixamento» (DN 202) como que um convite a experimentar no nosso coração de um amor semelhante ao que motivou a própria encarnação de Deus que, como recorda o Papa, «quis vir até nós humilhando-se, fazendo-se pequeno» (DN 202). 

Assim é para um Deus que a narração bíblica revela que «o seu amor se mistura com a vida quotidiana do povo amado e torna-se mendigo de uma resposta, como se pedisse licença para mostrar a sua glória» (DN 202). 

Por outro lado, diz Francisco, «talvez uma só vez, com palavras suas, tenha o Senhor Jesus apelado para o seu coração. E salientou este único traço: “mansidão e humildade”. Como se dissesse que só por este caminho quer conquistar o homem». 

O Papa prossegue na sua catequese escrevendo que quando Jesus evoca o paradigma da docência: «aprendei de mim, porque sou manso e humilde decoração» (Mt 11, 29), indicou que «para se exprimir necessita da nossa pequenez, do nosso abaixamento» (DN 202). 

Na verdade, perceber esta lição carece mais do sentimento que do intelecto, pois, nasce de uma sensação que apenas os corações, que já tiverem experimentado amar conseguem compreender.

Estou convicto de que um coração exacerbado e cheio de si, não tem espaço para amar, porque vive obstinado numa autocontemplação constantemente e se compraz num movediço e promiscuo monólogo, sempre vazio de sentido. 

Amar por amar também não basta, temos de colocar nesses atos um pouco da «alma e divindade do Coração de Jesus», pois só «Ele permite-nos amar como Ele amou e, assim, Ele próprio ama e serve através de nós» (DN 203). 

Neste sentido acrescenta o Papa Francisco que «um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através duma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo, torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos» (DN 203).

Certos de que tudo o que é simples, pequeno e humilde é mais difícil de alcançar, pois, movidos por um ego desmedido, tendemos a ambicionar projetos grandiosos, à maneira da Torre de Babel. No entanto, esquecemos que o que verdadeiramente satisfaz o coração é a constância, a coerência e a sabedoria presentes nas pequenas coisas. Essa é a sabedoria profundamente evangélica e, por isso, cristológica e trinitária que acredito que o Papa quer ver exercitada e ensinada nas nossas relações. 

A reparação não é apenas uma questão cristológica; ela está intimamente ligada ao mistério de Deus Trindade e exige da humanidade coerência e resposta. Trata-se de uma participação real de cada um de nós no Coração de Deus.

Para isso é preciso tomar consciência de que somos templos de Deus — “Não sabeis que sois templo de Deus?” — e que o Espírito Santo habita em nós, compreender profundamente a importância da reparação nos tempos em que vivemos e contextos em que vivemos.

Creio que há benefício em refletir sobre o número 204, à luz da teologia paulina, que ensina que nosso coração e corpo são templo do Espírito Santo (cf. 1Cor 6,19-20). Da mesma forma, a comunidade, enquanto expressão visível do Corpo de Cristo, participa desse mesmo mistério (cf. 1Cor 3,16-17).

Neste campo, e para que não restem dúvidas, o Papa Francisco esclarece que «a nossa reparação ao Coração de Cristo dirige-se, em última análise, ao Pai, que se compraz em ver-nos unidos a Cristo quando nos oferecemos por Ele, com Ele e n’Ele» (DN 204). 

Assim entendo que a reparação proposta pelo Papa tem necessariamente de ir beber inspiração à fonte da eucaristia, sinal máximo do amor que repara, reconstrói e regenera.           

Em síntese podemos extrair destes números da Encíclica um conjunto de ferramentas úteis para a nossa vida de cristãos que, de modo livre e consciente, ousam fazer acontecer o Coração de Jesus nas realidades que habitam, exercendo a dimensão de corresponsabilidade reclamada pelas águas do batismo.  

Tema de Estudo: ‘Dilexit Nos’
https://www.leiria-fatima.pt/tag/dilexit-nos
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