Dado o vigor com que os Jesuítas se dedicam, com amor dedicado, à difusão da devoção ao Coração do Vivente, seria impensável que, no seio deste documento, o Papa Francisco não abordasse o contributo específico da Companhia para a sistematização da teologia e espiritualidade do Coração de Jesus. Desde logo, no modo como o fundador organiza os seus «Exercícios Espirituais», imprimindo neles a necessidade visceral de fixar os olhos na ferida da lança e de sentir, nessa experiência, o convite a uma entrada confiada no Coração de Jesus (cf. DN 144).
Diz o Papa que um tal modelo de relação ao mistério do Coração aberto do Senhor constitui «um caminho para amadurecer o próprio coração pela mão do “mestre dos afetos”» (DN 144). O «mestrado da afeição», ministério predileto de Inácio de Loyola, pode também descrever perfeitamente o modo sinóptico como o Coração de Jesus se assume como um «educador de corações».
Amar seguindo e servir amando é, portanto, o binómio que somos chamados a cultivar no nosso próprio coração, não de um modo estático e estarrecido, como quem admira uma estrela da cultura atual, congelado e imóvel diante da visão idolátrica do objeto da sua admiração, mas num sentido fecundo e proativo de querer ser como Jesus, replicar a sua dinâmica amorosa de «passar fazendo o bem» (cf. DN 144).
O Papa reconhece ainda o papel das emoções e dos gestos para conhecer o Coração de Jesus (cf. DN 144), uma prática tão esquecida no coração das nossas comunidades, onde uma distância sanitária se imiscuiu nas relações fraternais pela incapacidade dos cristãos em lidar com os seus próprios afetos e emoções.
A falta de inteligência emocional pode estar na base da recusa da oblação do coração ao exercício dos sentidos humanos, tão fundamentais para nos conhecermos mutuamente, para sentirmos os irmãos e para escutar as ânsias e angústias do mundo que habitamos.
Um possível remédio pode passar por imitar a tendência do Coração de Jesus para ir ao encontro, uma marca ontológica do Coração do Senhor que acredito que o Papa Francisco transportou para o seu pontificado, ao exortar os cristãos a sair em direção às periferias existenciais, uma atitude característica de um coração de Pai que ama apesar da tortuosa geografia e que perdoa, apesar da nossa incessante teimosia que nos torna como mortos-vivos, a precisar de escutar a voz do Coração de Jesus que, com similar intuito, pede a Lázaro que «sáia cá para fora» (cf. Jo 11, 43), intimando-o a deixar a inércia do sepulcro e a sentir reviver o coração animado pela pulsação do amor pelo encontro dos seus.
Este convite reiteradamente feito pelo Papa Francisco a todos os que, ainda vivos, experimentam uma condição mortuária semelhante à que aprisionara o coração de Lázaro na região da morte – agem como se não tivessem sangue a ferver-lhes nas veias ou como se lhes faltasse o fôlego para gritar a verdade de que proclamar o Coração de Jesus vivo entre nós é sempre sublimar o odor putrefato que afasta, e difundir no seu lugar os perfumes da unção real e da memória constante de que o Coração de Cristo não nos extrai da morte para a inércia, mas sim para uma ação concreta de apostolado e de contágio positivo do amor recebido. Nesse sentido, amá-lo é seguramente ir e anunciá-lo.
Precisamos cultivar a perceção, afirma o Papa, de que «tal conhecimento do interior do Senhor não se constrói com as nossas luzes e esforços, mas pede-se como um dom» (DN 145). Esse dom só pode retribuir-se no sentido de uma dádiva completa, que se expressa por meio de um apostolado enérgico.
Retomando a tendência para o encontro como sinal profundo de um novo modo de proceder, que vence o medo da contaminação que impossibilita a pureza ritual, o Papa exemplifica: fá-lo diante da purulência das chagas do leproso; fá-lo junto ao poço, sem medo do rubor de um amor irregular que habita o coração da samaritana segregada à hora do calor em Sicar; fá-lo olhando de baixo para cima e clamando pela hospitalidade de Zaqueu (cf. DN 146).
A disponibilidade para o serviço à Igreja e ao Papa, como característica que marca o carisma da Companhia de Jesus, leva a um constante e profundo sentido de se colocar à disposição num dinâmico anúncio da realidade do amor do Coração de Jesus e da sua exequibilidade à escala humana.
Deste sentido de apostolado pedido pela Igreja aos Jesuítas, sinto exalar, para a teologia e espiritualidade do Coração de Jesus, um odor de perenidade que se colhe de uma essência performativa e adaptável às necessidades existenciais do coração da humanidade, que se quer permeável à imitação dos gestos, palavras e moções que se respiram ao reclinar a cabeça no peito do Senhor (cf. DN 147). Essa devoção aparece como remédio intemporal para as convulsões do mundo. Daí que não seja de estranhar a sua manifestação como uma constante na vida espiritual, por meio da proposta do Coração de Cristo como caminho seguro, ouvido atento, companhia para a jornada, um Coração providente cuja afabilidade não julga nem pesa e cuja exigência é um jugo suave, semelhante ao da paternidade, pois o pesado fardo das inconsistências humanas já Ele próprio carregou aos ombros na cruz (cf. DN 148).
Diante desta nascente incomparável de amor, escutamos apenas um pedido: a oferta sincera do nosso coração e, com ele, a inteireza do nosso ser, que a matriz semita do conceito transporta consigo, não num sentido tirânico e de domínio, mas como uma sociedade caracterizada por uma permuta de dons diante da qual, afirma o Papa, «implica aceitar que o próprio coração se una ao de Cristo» (DN 148).
Acredito que aquilo que o Papa propõe é que o Coração de Jesus seja uma «ontologia da atualidade», isto é, uma proposta de encarnação no coração dos crentes dos mesmos sentimentos, ações, emoções e palavras e que, por meio deles, se estabeleçam práticas humanistas que permitam ultrapassar os múltiplos desafios que o exigente exercício do viver no atual contexto societal a todos reclama (cf. DN 149).
Como realidade multiforme, vemos que esta devoção tem sido objeto de um desenvolvimento integral, assumindo diferentes matizes que sublinham uma ou outra vertente da narração evangélica do Coração de Cristo e do modo como Ele se tem manifestado na vida dos crentes (cf. DN 149) – vivência dos seus valores, moções do Espírito e revelações privadas – e até mesmo desenvolvimentos expressos pelo assentimento da religiosidade popular (cf. DN 154), tão profícua no ato de descomplicar a densidade da linguagem teológica.
O Papa recorda, no decurso do n.º 149, o benefício de afirmar, nestes nossos tempos, a noção do Coração de Jesus em movimento, isto é, «colocando uma forte ênfase na vida gloriosa do ressuscitado», ideal com o qual concordo plenamente, pois permite dissolver o caráter incompreensível do sofrimento diante de uma conjuntura de banalização da morte como solução fácil para a crescente incapacidade de perceber a dor como parte integrante da vida.
O caráter docente do Coração de Jesus não fica esquecido. O Papa coloca-o ao falar da ação evangelizadora e educativa, que ancoram a sua ação na recordação de que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus é uma materialização da Cristologia. A sua manifestação está intrinsecamente ligada à ação: um amor dinâmico que se dá em movimento voluntário para a cruz.
Acredito que o Coração de Jesus é o Deus cujo amor dança ao som do peso da cruz. Ao tomar sobre os ombros os passos mal andados da humanidade, habita-os de uma beleza idêntica à de uma valsa nupcial, com a qual se abre o baile de uma vida nova, onde já não há espaço para a solidão.
Destaca-se, ainda neste ponto, a importância dos santuários dedicados ao Coração de Jesus enquanto lugares de bênção. Neles, entre quem está, quem passa e quem regressa, reluz «uma atraente fonte de espiritualidade e fervor» (DN 150).
Concebendo-a como uma devoção da consolação, o Papa não poupa esforços para demonstrar que a satisfação da redenção não invalida a oportunidade da consolação. Assim, o Coração de Jesus é lugar de simbologia pascal, e as chagas são sinal de uma tríplice adjetivação – consentâneo, consubstancial e unívoco – gravada nos elementos estéticos (o coração, as chagas, a coroa de espinhos) que definem a imagem tradicional do Coração de Jesus. O Papa considera estes elementos «inseparáveis desta devoção» (DN 151).
Estes atributos da paixão que o Ressuscitado transporta consigo são o garante da sua identidade e expressão da coerência de um mesmo mistério. O Papa não nega que, diante de todos os tormentos sofridos, seja natural responder de modo recíproco, associando a veneração a uma dor. Ainda assim, o seu sentido apostólico e missionário não se presta a um rigoroso exercício de compunção, tão incompreensível aos olhos do mundo, sendo mais benéfica a via da consolação dos sofrimentos oferecidos por Cristo na cruz.
Com este intuito, acredito que a sugestão do Papa, no número 152, traduz uma teologia do enamoramento, de um afeto tão profundo que não pode resistir a retribuir com um amor consolador o sofrimento do ser amado.
A Pio XI, Francisco vai buscar a condição atemporal do Coração de Jesus e da carga transcendente que a Paixão de Cristo transporta consigo. O modo como a redenção não se vincula a um tempo e espaço de ação, mas «por graça de Deus, transcende todas as distâncias do tempo e do espaço», é de uma relevância singular.
Deste modo, se Ele se entregou também pelos pecados futuros – os nossos pecados – transcendendo o tempo, estes chegaram ao seu coração ferido, assim como os atos que oferecemos hoje pela sua consolação (DN 153).
Este Coração, cuja profundidade de amor se torna mais importante do que as coordenadas da geografia e os tempos da cronologia, sente-se no coração humano como uma saúde viva, capturada nos movimentos compassados que adaptam a sua biologia à morfologia do amor que se encontra em Jesus.
Para entender as razões do coração, acredito ser necessário tomá-lo como um receptáculo onde se acolhem dores, amores, golpes e consolações. Algo que não se entende por via da erudição, mas por meio dos sentidos do corpo. Na simplicidade que, quotidianamente, ressalta, o Papa Francisco encontra no sentir do povo que, arredado das, por vezes, complicadas definições conceptuais, «intui aqui algo de misterioso que ultrapassa a nossa lógica humana e que a paixão de Cristo não é um mero evento do passado, pois dela podemos participar a partir da fé (DN 154)».
Acredito que a intenção do Papa seja considerar o contributo do sentir sinodal e corresponsável das nossas comunidades, que propiciam uma reflexão sobre as dinâmicas do amor. Quando despertas para o papel da sensibilidade dos fiéis, tantas vezes despreocupada com razões formais, possibilitam ver mais longe e com outra naturalidade pela lente da vivência do amor, pois «a meditação da entrega de Cristo na cruz é, para a piedade dos fiéis, algo mais que uma simples recordação» (DN 154).
Neste sentido, é-nos pedido que construamos uma consciência de que o amor sofrido não pede contas, apenas solicita uma entrega de vida, sem grandes questionamentos, confiando na ação benéfica de Deus, fonte última de consolação. Neste campo, diz o Papa, «o coração tem as suas razões» (DN 154).
Deste número sobressai uma questão que considero central na abordagem desta temática e que o é igualmente no texto da encíclica: a de perceber o benefício de interpretar esta devoção pela esfera da unidade, que permite nutrir uma resposta para a inquietação de «como é possível relacionarmo-nos com Cristo vivo, ressuscitado, plenamente feliz e, ao mesmo tempo, consolá-lo na paixão» (DN 155).
Em síntese, devemos contemplar no Coração de Jesus sempre o mesmo e único mistério pascal de Cristo – que é simultaneamente padecido, morto, crucificado e ressuscitado – e que a sua já completa habitação no corpo glorioso da eternidade não invalida que a dura vivência da paixão mereça a devida consolação. Assim, a imensidão de amor do redentor merece uma multidão de consoladores (cf. DN 157).
Estas dinâmicas entendem-se, diz o Papa, por via de uma reciprocidade: «Acontece que participamos neste mistério na nossa vida concreta, porque anteriormente o próprio Cristo quis participar na nossa vida, quis viver antecipadamente, como cabeça, o que o seu corpo eclesial viveria, tanto nas feridas como nas consolações» (DN 157). Por isso, «quando vivemos na graça de Deus, esta participação mútua torna-se uma experiência espiritual» (DN 157), isto é, viver na graça implica experimentar viver segundo o Espírito de Deus que a todos consola.
A compunção, ou a irresistível afeição em consolar, diz o Papa, é atitude natural de quem, diante do rosto humano carregado de amor de Jesus, o coração de Deus, reconhece em si tudo aquilo que é vazio de sentido, recusa em partilhar, objeção à dádiva sincera de amor. Desencadeia em nós os mecanismos que «nos deixam mais sedentos de Deus e menos obcecados por nós próprios» (DN 158), o que necessariamente conduz à aplicação prática na vida e nas suas relações, ancorada na certeza de Francisco de que «quanto mais profundo se torna o desejo de consolar o Senhor, mais se aprofunda a compunção do coração fiel» (DN 159) – o desejo de querer ser melhor, mais irmão e mais humanista.
Ciente da propensão humana para o julgamento frio e tantas vezes irracional, o Papa alerta, ao jeito de súplica, com uma lucidez que não resisto a transcrever na íntegra: «Peço, portanto, que ninguém ridicularize as expressões de fervor devoto do santo povo fiel de Deus, que na sua piedade popular procura consolar Cristo. E convido cada um a perguntar-se se não há mais racionalidade, mais verdade e mais sabedoria em certas manifestações desse amor que procura consolar o Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e mínimos de que somos capazes aqueles que julgamos possuir uma fé mais reflexiva, cultivada e madura» (DN 160).
Retoma aqui aquilo que considero como a dimensão espontânea do amor que, na maioria dos casos, foge sempre aos nossos planos bem estruturados, pois o amor é sempre inaudito no sentido de ser hábil em escapar às nossas mais seguras expectativas. Fazer a experiência de se deixar consolar é caminho para obter sucesso no alívio. Só aquele que sentiu a dificuldade, a dor, o desespero e a desolação e se sentiu acarinhado e consolado pelo Coração de Deus fica com as ferramentas necessárias para identificar nos irmãos as situações de dificuldade, tantas vezes camufladas por frágeis muros de aparente felicidade. O Papa apresenta uma gradação do sentir, isto é, um conjunto de etapas que parte da contemplação das dimensões da entrega do Coração de Jesus e da consolação de nos sentirmos resgatados. Nesse sentido, «a dor que sentimos no coração dá lugar a uma confiança total e, por fim, resta a gratidão, a ternura, a paz, o seu amor reinante na nossa vida» (DN 161). Lemos, nestes números da Dilexit Nos, uma carência profunda das nossas sociedades em fazer a experiência do amor cravado na cruz, cuja natureza avassaladora reclama uma reação à altura do amor recebido e que, no caso concreto do coração eucarístico do Senhor, merece um verdadeiro movimento de adoração, uma reverência profunda e, no fundo, um amor apaixonado que nasce de um sentir-se especialmente amado, cuidado e consolado. A fechar este quarto capítulo, fica ainda a urgência em «procurar aprofundar a dimensão comunitária, social e missionária de toda a autêntica devoção ao coração de Cristo. Com efeito, o coração de Cristo, ao mesmo tempo que nos conduz ao Pai, envia-nos aos irmãos» (DN 163).