Dilexit nos: Amar e servir como quem rompe o coração e gasta as solas a cuidar do irmão 

O serviço, na sua essência de disponibilidade para a doação, nunca passa ao largo da dinâmica do amor. Neste sentido, só aquele cujo coração se abriga no lado aberto do Senhor Jesus encontra os elementos necessários para discernimento fundamental: servir ou servir-se? 

Se buscas palco, cenário e promoção pessoal então está claro que queres servir-te!

Na verdade, o serviço autêntico não faz alarde nem busca visibilidade. Pelo contrário, doa-se no silêncio e no ocultamento dos corações dos intervenientes. 

O único brilho que aí se encontra é, talvez, aquele que reflete o fulgor do Coração do Senhor — modelo consagrado de serviço por amor — ou então nos olhos agradecidos de quem recebe, ou num sorriso sincero que esboça a alegria de um bem-haja.

Seguramente que verdadeira recompensa brota da satisfação de nos aproximarmos do Coração de Jesus e, de como Ele, passarmos pela vida dos irmãos fazendo o bem (cf. At 10,38). Ou então sentir a gratidão que brota do Coração misericordioso de Deus, que ao ver o que está oculto aos olhos embriagados pela cultura da aparência, nos reserva no céu o prémio na medida do nosso amor. 

Reconheço aqui o valor de uma dupla proximidade ao Senhor Jesus: ao seu Coração Eucarístico (teológica e espiritualmente) e ao seu Corpo Místico (eclesial). Esta dupla pertença ajuda-nos a crescer no amor, na esperança e na fé — realidades que se aprofundam quanto mais se exercitam (cf. DN 212).

Amar o Coração de Jesus é vê-lo prolongado nos irmãos — que, pela graça do batismo, são parte do Seu próprio corpo — nos seus corpos, nos seus contextos de vida e nos seus lugares de missão (cf. DN 212).

É aprender a amar com o mesmo Coração que o de Jesus, semelhante na carne, mas discípulo da Sua santidade. 

Na verdade, aquilo que, no Coração de Deus, é essência, é para o nosso coração humano potência: esforço, caminho, queda e, sobretudo, vontade de se levantar e não ceder ao cansaço da jornada, recusando permanecer prostrado, como o Coração perseverante de Jesus nos ensina a caminho do Calvário.

Acredito que um dos remédios para o atual panorama societal seja a recuperação da dimensão admirativa do amor como distintivo dos cristãos. Era esta uma prática das primeiras comunidades, um critério de visibilidade — paradoxal para a cultura dominante — que se tornava fonte de inquietação e subsequente conversão por via mimética, ou seja, pela imitação.

«Portanto, se nos dedicarmos a ajudar alguém, isso não significa que nos esquecemos de Jesus. Pelo contrário, encontramo-lo de outra forma. E, quando tentamos levantar e curar alguém, Jesus está lá, ao nosso lado. Com efeito, é bom recordar que, quando enviou os seus discípulos em missão, “o Senhor cooperava com eles” (Mc 16, 20). Ele está lá, trabalhando, lutando e fazendo o bem connosco. De forma misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço; é Ele próprio que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras» (DN 2014).

O Papa exorta-nos a cultivar, na terra do nosso coração humano, a semente da ação colaborativa com o Coração de Jesus — uma espécie de interpretação poética do adágio paulino: “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”.

Podemos dizer que é para um coração operativo (que age: irrequieto e inquieto diante da dificuldade do irmão) que aponta leitura que o Papa Francisco faz desta devoção e das suas ações de culto, em linha como o que os sinais destes tempos exigem da Igreja. 

Nisto acredito que estamos em sintonia: na emergência em explorar a doce disponibilidade do Coração de Jesus, que vivo e ressuscitado nos indica o caminho da Galileia — lugar onde, com Ele, a nossa humanidade foi elevada ao Céu.

“Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos” — é esta a promessa que ao encarnar no nosso quotidiano se torna certeza firme da continuidade da presença do Coração de Jesus na prática pastoral da Igreja.

Esta que é uma comunidade fraterna de corações recriados, pela água do batismo — a mesma que brota Coração do Senhor —, moldados à sua imagem e semelhança. 

Esta água primordial confiada à custódia da Igreja para ser aspergida, derramada e infundida nas entranhas da nova humanidade convicta de que o Coração do Senhor coopera consigo, certeza motivadora para irmos amar como Ele amou.

De modo prático somos chamados a servir pode ser entendida como uma efetiva troca de dons. O Coração de Jesus pede-nos, em retribuição, que não sejamos barragem no rio de amor que brota do lado direito do altar — o amor que evitou a solidão de Adão, que levou Deus a extrair Eva do seu lado, prefiguração do lado de Jesus aberto na Cruz, donde, com o mesmo amor, Deus fez surgir a Igreja.

Como diz o Papa, é nos nossos contextos que somos chamados a replicar o amor que cultivamos no terreno fértil do nosso coração, irrigado pelo sangue e água de Cristo, derramados para a remissão dos nossos pecados: «Ele te envia a fazer o bem e te impele a partir do teu interior. Para isso, chama-te com uma vocação de serviço: farás o bem como médico, como mãe, como professor, como sacerdote. Onde quer que estejas, poderás sentir que Ele te chama e te envia para viveres esta missão na terra» (DN 215).

Trata-se de um contínuo “vai e faz o mesmo” (cf. LC 10,37): aprender a ser um coração novo, de carne, e não apenas osso oco, insensível quando morto.

Continuando a leitura da encíclica, lemos que Deus fala de amizade ao seu povo — uma amizade mais transcendente do que a tibieza com que a nossa linguagem distinguiu “ser amigo” de “ser amado” uma vez que somos exímios em separar, distinguir, compartimentar. 

Contudo no Coração de Deus, essa distinção não existe! E a única vez que Jesus a refere, fá-lo como alerta à fragilidade de Pedro — uma espécie de diagnóstico após duas radiografias ao seu coração (cf. Jo 21, 15-17).

Não tenhamos dúvida que ser enviado é dispor-se a ser prolongamento de quem nos envia. Então como podemos anunciar alguém que ignoramos ou conhecemos apenas superficialmente?

Neste campo o Papa Francisco é claro: «Ele próprio nos diz: “Envio-vos” (Lc 10, 3). Isto faz parte da amizade com Ele. Para que essa amizade amadureça, é preciso deixar-se enviar por Ele para cumprir uma missão neste mundo, com confiança, generosidade, liberdade, sem medo. Se te fechares no teu conforto, isso não te dará segurança; os medos, as tristezas e as angústias aparecerão sempre. Quem não cumpre a sua missão nesta terra não pode ser feliz, fica frustrado» (DN 215).

Vejamos que enviar alguém é sempre um ato de confiança, celebrado tacitamente nos corações daquele que envia e daquele que é enviado. Não é, de modo nenhum uma troca autoritária. Em quem envia permanece algo de quem foi enviado. Já que, poeticamente falando, foram trocados fluidos existenciais — água e sangue de uma dádiva total do ser.

O Papa aproveita ainda a ocasião, deste texto, para denunciar, mais uma vez, a desumanização provocada pela obstinação mercantilista que impregna as relações humanas. Alerta-nos para as consequências dramáticas deste flagelo dizendo: «Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas» (DN 218).

Ainda assim não percamos a esperança. O Papa tranquiliza o nosso coração ao recordar que: «O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre» (DN 218). 

Também aqui, no plano espiritual, o Coração de Jesus opera o milagre da ressurreição, comunicando vida ao coração murcho e encarquilhado pela falta do exercício do amor.

É profunda a convicção de Papa Francisco de que «Só o seu amor tornará possível uma nova humanidade» (DN 219). «A Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades. Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece sempre de novo a quem quer amar. 

«Peço ao Senhor Jesus Cristo que, para todos nós, do seu Coração santo brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligimos, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos impulsionar a fim de aprendermos a caminhar juntos em direção a um mundo justo, solidário e fraterno. Isto até que, com alegria, celebremos unidos o banquete do Reino celeste. Aí estará Cristo ressuscitado, harmonizando todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto. Bendito seja!» (DN 220).

No derradeiro número da Dilexit Nos, o Papa Francisco oferece-nos ao Coração de Jesus numa prece da qual somos todos beneficiários (cf. DN 220). Nela implora ao Coração do Senhor que derrame sobre os nossos pequenos corações o dom da água viva, capaz de sarar tudo o que em nós é ferida, crosta ou infeção. 

Assim, libertos de todos os pesos e amarras, poderemos abandonar-nos ao doce jugo e à leve carga do Senhor, onde se entrevê o sentido teológico do Coração de Jesus, concretizado na sua vertente sacramental como profundo património de cura e serviço.

Na referência à intensificação da «capacidade de amar e servir», reconhece-se a condição operativa do sentido espiritual da fé, assim como o caminhar juntos evoca a nota da sinodalidade — expressão plena do sentido eclesial — que tive oportunidade de destacar no trabalho sobre o Coração de Jesus realizado nos estudos de mestrado em teologia.

E, por fim, a realidade do “banquete do Reino celeste”, no qual todos esperamos participar, e que surge como horizonte escatológico, isto é, a meta última desta nossa caminhada: a plena comunhão no Coração de Cristo, Ressuscitado, Vivo e Glorioso. 

Ao longo destes meses procuramos estudar este rico texto que o Papa Francisco nos ofereceu. Com este conjunto de notas espero ter contribuído para motivar a uma leitura desta encíclica confrontando-a com o nosso quotidiano, com as nossas relações comunitárias e com o próprio Coração do Senhor. Acredito que aprender dele é uma aventura de humanidade espantosa. Procuremos espaço para o conhecer e anunciar é o desafio que fica de todo este estudo.  

Tema de Estudo: ‘Dilexit Nos’
https://www.leiria-fatima.pt/tag/dilexit-nos
Criação de Unidades Pastorais e equipas presbiterais
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a 11 de Maio
Jubileu das Vocações
17 de Maio
, às 09:00
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