Dilexit nos: A reparação, possibilidade humana de colaborar com a obra do amor Divino 

Ao prosseguir no estudo da Encíclica «Dilexit nos» do Papa Francisco escutamos um constante apelo a colocar as mãos na terra da nossa condição humana e a ir «Reparar os corações feridos», que o Papa formula não apenas como projeto de amor, mas como autêntica vocação, de sabor profundamente evangélico, para a vida do cristão. A lucidez com que o Santo Padre lê, à luz do Coração de Jesus, os sinais destes tempos fá-lo desenhar um outro sentido para a reparação, que não se pode ficar pela superfície da pele, deve antes impregnar a nossa carne e ser capaz de renovar, de modo profundo, o interior do coração da humanidade. 

Ora como podemos então operacionalizar esta revolução? A resposta do Papa é clara, e surge na forma de exame de consciência, pois se «cada um pensar nos seus próprios pecados e nas consequências para os outros, descobrirá que reparar os danos causados a este mundo implica também o desejo de reparar os corações feridos, onde se produziu o dano mais profundo, a ferida mais dolorosa» (DN 185). fazendo cada batizado o que à sua humilde escala lhe compete.

Diante do olhar do Coração de Jesus – e necessariamente do nosso – estão naturalmente os corações feridos, onde se apercebe um lugar visceralmente teológico e, no entender do Papa, uma janela para a humanidade colaborar com a ação beatífica do Coração de Deus, que quer para o coração dos seus filhos uma vida feliz e abundante em graça e misericórdia (cf. Jo 10,10; Jr 29, 11; Dt 30, 19-20). Uma vida necessariamente exercida em harmonia com a restante criação correspondendo à vocação pessoal consagrada no nome próprio, característica diferenciado única e irrepetível pela qual Deus nos conhece.  

Nesta linha ouso perguntar: Que adianta à humanidade ganhar o mundo se se perder a si própria (cf. Mt 16, 26)? Que lhe serve querer reparar o mundo sem olhar para o seu próprio coração? Desta atitude manifesta de autonegligência resulta tantas vezes um coração murcho, envelhecido, desfigurado, desleixado, desapontado e descontextualizado da essência, da verdade e do amor para os quais foi originariamente criado.  

Não resisto, pois, à tentação de transcrever na íntegra o número 186 da encíclica onde o Papa Francisco afirma que «o espírito de reparação “convida-nos a esperar que cada ferida possa ser curada, por mais profunda que seja. A reparação completa parece por vezes impossível, quando se perdem definitivamente bens ou pessoas queridas, ou quando certas situações se tornam irreversíveis. Mas a intenção de reparar e de o fazer concretamente é essencial para o processo de reconciliação e para o regresso da paz ao coração”» (DN 186).  

Daqui somos convidados pelo Papa Francisco a compreender que a reparação nunca pode estar desligada da reconciliação, a quem chamo a sintonia da coerência do corações – do penitente com o de Deus, e do penitente com o ofendido – como confluência de amor que promove nos corações frutos de paz e de quietude, espaços de respiração tão essenciais nos ofegantes dias que nos envolvem e submergem. 

Podemos ainda intuir igualmente deste número um apelo ao respeito pelo carácter cronológico da cura e nos seus tempos e cadências próprios de cada ferido e na biodiversidade de mecanismos de sarar cada ferida. 

Na verdade, diante das dificuldades e da purulência das chagas, que vamos diagnosticando, podemos sentir-nos tentados à prepotência de um sarar a todo o custo, isto é, a sucumbir ao autoritarismo egocêntrico de querer impor ao irmão, uma profilaxia e uma terapêutica segundo o nosso tempo, as nossas expectativas e a nossa ânsia de ajudar. O Papa Francisco ensina-nos que não é, nem pode ser, assim e que tal comportamento não difere muito de uma ação de violência em pele de cordeiro, um bálsamo mais para nós do que para os irmãos necessitados.

Recorde-se que o convívio com a fragilidade alheia, pode gerar em nós um «sentimento de imprescindibilidade» e o natural esquecimento de que para tocar o irmão, no lugar que doi, é preciso prepará-lo para se deixar tocar e isso, e tal obra de misericórdia é sempre um percurso (sinodal) a construir em conjunto – note-se que para aceder ao seu coração ferido, é preciso mais do que apenas razões de esperança, mas sobretudo motivos de confiança, para usar a linguagem do Papa Francisco. 

Tal qual uma dança entre confiança e permissão que foge às mais que estudadas coreografias dos nossos sistemas de expectativas, ritmada pelo compasso dos batimentos do coração, seja na dilatação dos tempos como na necessária adaptação das formas, dos diálogos e sobretudo do espaço de escuta que se lhe antecede. Cada ferida carrega sempre um relato biográfico, porque nasce do ventre de uma relação turbulenta cravada na história de vida de alguém, e isso tem de ser sempre respeitado, acompanhado e amado.    

O Papa enaltece a beleza de reconhecer quando ferimos o coração de alguém, em tantos arranhões irrefletidos, desamor, omissão de auxílio e pasmaceira diante do sofrimento do irmão, ele que é rosto do Coração de Jesus diante de quem escutamos o eco do Evangelho que nos sussurra: cada vez que negastes entregar o vosso coração a um destes irmãos mais pequeninos a Mim o negaste (cf. Mt 25, 45). 

Assim, reforça o Papa, não nos podemos entregar à aparência de um coração tranquilo, muito menos ao afago enganador que as boas intenções, desprovidas das ações correspondentes, nos fornecem. É preciso colocar o amor em movimento! Se não colocarmos os pés a caminho e as mãos à obra, as boas intenções não passarão de ilusões beatíficas que nos saciam o ego, mas que nada aproveitam aos irmãos – que ansiosos continuam a esperar por um pouco de nós nos seus atribulados quotidianos. 

Neste sentido ouso propor como modelo prático aprender com a consciência cristalina e transparente da água, não uma água qualquer, mas aquela que escorre do Coração aberto do Senhor, pois só imitando essa transparência pode deixar brilhar – de dentro para fora de nós – para os irmãos a luz do lume que o Coração de Jesus nos colocou no peito. 

Deixar-se ser farol de uma luz que, não sendo originalmente nossa, é nossa herança pela graça do batismo que recebemos pelas mãos ungidas da Igreja, nas quais reluz o sinal glorioso dos cravos, em Cristo é uma opção fundamental inspirada diretamente das palavras do Papa «não bastam as intenções; é indispensável um dinamismo interior de desejo, que terá consequências externas» (DN 187), e isto traduz-se inevitavelmente como um movimento ao jeito de causa-efeito / ação-reação.  

Consciente de que reparar será sempre dar mais do que aquilo que foi retirado, o Papa sintetiza que «a reparação, para ser cristã, para tocar o coração da pessoa ofendida e não ser um simples ato de justiça comutativa, pressupõe duas atitudes exigentes: reconhecer a culpa e pedir perdão […] É deste reconhecimento honesto do mal causado ao irmão, e do sentimento profundo e sincero de que o amor foi ferido, que nasce o desejo de reparar» (DN 187).

Entendo a pertinência das palavras do Papa Francisco nestes números como um convite a uma «estética do perdão» da qual a coragem evangélica, isto é, aquela abertura natural para a verdade que supera sempre qualquer sentimento doentio de egocentrismo porque obriga a colocar no coração do nosso olhar o irmão ofendido e a contrair o coração e no relaxamento dessa contração a encher-se de humildade. 

Assim, certos da dificuldade para um coração ressequido, por mágoas, cóleras e sentimentos similares, em reconhecer o seu erro, da necessidade em prostrar diante do olhar misericordioso de Deus e ir abraçar de novo o coração ferido pela inadvertência da sua incoerência e deriva autoritária de se sentir «dono da razão e da verdade». 

Corações que padecem de uma tal intransigência tornam-se alvos legítimos para quem as setas aguçadas da incompreensão fazem estilhaçar o eco da pergunta de Pilatos: «Mas afinal o que é a verdade?» (cf. Jo 18, 38). Despertando a inquietação diante da qual apenas o Coração de Jesus pode serenar na estrondosa beleza de um «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» (cf. Jo 14, 6) «vou preparar-vos uma morada no Coração [casa] do Pai» (cf. Jo 14, 2).           

Reconhecer o próprio pecado diante dos irmãos é aprender com o Coração de Jesus e que não se encare esta humildade como «algo degradante ou prejudicial para a nossa dignidade humana» (DN 188), tranquiliza o Papa Francisco definindo-a como um sentimento de auto-compaixão, ou seja, um «deixar de mentir a si mesmo, é reconhecer a própria história tal como ela é, marcada pelo pecado, sobretudo quando fizemos mal aos nossos irmãos» (DN 188).  

A importância e formato deste modo de ser merece ao Papa uma clarificação assegurando que «acusar-se a si mesmo faz parte da sabedoria cristã. […] Isto agrada ao Senhor, porque o Senhor recebe o coração contrito» (DN 188) é recordar o ensinamento do Coração do crucificado «Pai! Perdoa-lhes porque não sabem aquilo que fazem» (Lc 23, 34) apela a tal como reforça o Papa o Coração de Jesus convida cada um a «em vez de se irritar e escandalizar pelo mal feito pelos irmãos, chora pelos pecados deles» (DN 190). 

Tal consideração compreende-se tomando da autobiografia do Coração de Jesus, as implicações da incompreensão escandalosa da condenação de um inocente que não recebem retribuição equivalente, mas antes uma intercessão, cheia de amor misericordioso, pelos criminosos que o maltratavam. Esta atitude de amor genuíno, capaz de tudo perdoar, deve desinstalar-nos e colocar-nos cara a cara com a dor dilacerante do pecado, pedir perdão a si mesmo (reconhecer a culpa), a Deus e ao irmão ofendido. 

O Papa reconhece à reparação o estatuto de «espírito» e insere-a, naquilo que acredito ser um dinamismo essencial, numa estrutura performativa que nos instrumentos que dispõe, aprendidos na proximidade amorosa ao Coração da Trindade, permite ser aplicada de modo prático e concreto como unguento sobre as feridas.  

A metáfora anterior abre ainda portas à contemplação da reparação intimamente ligada à realeza do Coração de Cristo, ilustrada pelo Papa Francisco como «o bom hábito de pedir perdão aos irmãos, que revela uma enorme nobreza no meio da fragilidade» (DN 189), e que não deixa de recordar o adágio paulino da força na fraqueza (cf. 2 Cor 12, 10). 

Assim, argumenta o Papa, que pedir perdão é curar relações (cf. DN 189) porque requer uma imersão no mistério do amor de Deus que «reabre o diálogo e manifesta o desejo de restabelecer o vínculo da caridade fraterna […], toca o coração do irmão, consola-o e inspira-o a aceitar o perdão pedido. Assim, se o irreparável não pode ser completamente reparado, o amor pode sempre renascer, tornando a ferida suportável» (DN 189). 

Intui-se daqui a importância de usar os próprios padecimentos para crescer uma vez que «um coração capaz de compaixão pode crescer em fraternidade e solidariedade, porque como desabafa o «quem não chora retrocede, envelhece interiormente, ao passo que a pessoa que chega a uma oração mais simples e íntima, feita de adoração e comoção diante de Deus, amadurece» (DN 190) e encarnar este espírito é sobretudo educar o nosso coração para a atenção, ou seja, a capacidade de perceber nos irmãos o lugar da desolação escondida da vista desatenta. 

Profundo defensor e difusor daquilo que chamo «economia da atenção», o Papa Francisco ensina a diagnosticar no irmão fazendo uso das ferramentas colhidas no nosso próprio sofrimento, pois a dilacerante dor do sofrimento solitário, nos sintomas que colocam na epiderme do sofredor as marcas e sinais da desolação, apenas compreendidos por quem já passou por semelhante cenário desolador.  

Em síntese, socorrer o irmão aprende-se pela superação das nossas próprias lutas, iluminadas pelo exemplo do Coração de Jesus, que ao sofrer tanto amou a humanidade.        

O Papa apela ainda a uma maior configuração com o Coração de Jesus, no sentido de que o coração da alma que assim se enamora «prende-se cada vez menos a si mesma e mais a Cristo, e torna-se pobre em espírito» (DN 190). 

No contexto de uma espécie de metamorfose voluntária segue o desígnio de que no espírito de reparar há um vínculo claro de prolongamento do Coração do Senhor para a nossa humanidade (cf. DN 191) pois ao assumir a nossa carne, o Coração de Jesus, capacitou-nos a poder imitá-lo, a aprender de si e a testemunhá-lo na nossa carne: «muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador» (DN 192). 

Neste movimento de amor condescendente recuperou para nós a possibilidade de restaurar, para o coração mutilado da humanidade, a condição originária da imagem e semelhança ao Coração de Deus (cf. Gn 1, 26).      

O Papa enfatiza ainda o sentido estético das dores de parto e o seu carácter pedagógico como portal da nossa participação na obra do criador, que vão ao encontro da minha visão da que que a vocação da felicidade não é ensinar, mas sim deixar-se degustar pela humanidade. 

Concebo que a função docente é antes pedida às dores, às angústias e sofrimentos, esses mestres na arte de provocar um agitar das águas da consciência e de suscitar um despertar do transe hipnótico em caímos aprisionados, e levar-nos a aprender uma lição para a vida – por via da glória da superação da fragilidade– bem como ferramentas essenciais para o são exercício da humanidade.   

Será tudo uma questão de temperatura? Uma permanente tensão a natureza quente do Coração de Jesus e da fragilidade e sujeição ao frio que afeta o coração do crente? 

Creio ser proveitoso olhar para a grande amplitude térmica existente entre a autenticidade das chamas do amor no íntimo do Senhor e a artificialidade da brisa gélida da indiferença, que sopra no coração do crente para tentar apagar o ardor da caridade, como espaço de decisão pessoal sobre como «a nossa cooperação pode permitir que o poder e o amor de Deus se difundam nas nossas vidas e no mundo, e a rejeição ou a indiferença podem impedi-lo» (DN 192). 

Acredito que Jesus não quer que sejamos cópias, quer que sejamos repetidores do sinal de wi-fi e executantes do amor que ele nos comunicou pois, assegura o Papa, «a oferta de nós próprios abre um espaço, oferece um canal desimpedido para a efusão do seu amor» (DN 193) – se falharmos na receção do sinal, ou fixarmos a atenção no ruído e na resistência à expansão da mensagem, falhamos na comunicação do amor, atitudes corporizam o que o Papa Francisco chama «a nossa rejeição ou indiferença limitam os efeitos do seu poder e a fecundidade do seu amor em nós» (DN 193). 

Esta atitude de desamor e recusa compromete e limita a fertilidade e fecundidade dos elos da rede de amor inteira, tornando ineficaz a nossa função de prolongamento por meio da originalidade da. nossa vida «única e irrepetível» da ação amorosa do Coração de Jesus (cf. DN 193).  

Tudo isto pode ser feito pela abertura do coração à graça sentindo-a como um desafio, um estímulo e vocação à mimese da essência do Coração de Jesus, no sentido de «rivalizar no amor uns pelos outros» (cf. Rm 12, 10). 

Daqui se salientam os traços do rosto da omnipotência como um profundo mistério onde se vislumbra o efetivo comprimento da vontade do Coração de Deus, por via de um profundo e imenso respeito do altíssimo pela liberdade do coração humano, e que se consagra como marca genética da praxis do Coração de Jesus onde vemos tão próximo de nós um Deus que quis, embora não necessitasse, contar com a nossa colaboração para a sua obra de profundo amor (cf. DN 194). 

O Papa sugere a reparação como espaço para a colaboração humana na obra do amor divino, é a certeza de que a parábola da doação da nossa vida chama-nos a colmatar as brechas, deliberadamente deixadas por preencher na muralha do amor do Sagrado Coração de Jesus, com a argamassa das nossas ofertas e sacrifícios: «uma vez que o Senhor todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a reparação entende-se como o remover dos obstáculos que colocamos à expansão do amor de Cristo no mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega» (DN 194). 

Em síntese, as palavras do Papa Francisco sobre o Coração de Jesus falam-nos de um amor ardente em estado líquido, qual a lava que escorre do coração da terra, varrendo tudo à sua passagem e que ninguém pode conter sem se deixar queimar.

Tema de Estudo: ‘Dilexit Nos’
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24 horas para o Senhor
28 de Março
Jubileu das Grávidas
30 de Março
Peregrinação Diocesana a Fátima
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