Dilexit nos: A declaração de um amor verdadeiro, coerente e apaixonadamente próximo da nossa história! 

Havendo reconquistado, como vimos nas notas partilhadas anteriormente, um corpo próprio que imprime na espiritualidade uma concreta de missão apostolado para rejuvenescimento e operatividade da Sua devoção vemos expressa a intencionalidade do Coração de Jesus em desenhar para Si um novo paradigma teológico, espiritual e missionário. 

Ancorado neste novo enquadramento estético com que Coração de Jesus escolheu revelar-se a Santa Margarida Maria – recorde-se que aparece glorificado com o coração fora do peito e sobre o manto, conservando as consequências da paixão como que afirmando que é possível, por meio da sua aceitação e ressignificação, ir para além delas –, surgem algumas figuras-chave que o Papa faz questão de evocar. 

Estes modos de resposta ao amor contribuem para o desenvolvimento de uma nova estrutura reflexiva assente na consubstancialidade de que o Coração do Vivente, revestido de uma unicidade intrínseca, é o mesmo que encarnou, viveu, padeceu, foi crucificado, morreu e ressuscitou.  

O primeiro pensador desta lista é São Cláudio de La Colombière, que ao ter notícia dos encontros místicos de Margarida Maria, «tornou-se imediatamente o seu defensor e divulgador» (DN 125) o que o constitui um importante cronista a quem cabe o papel de fazer uma «reportagem de fundo», investigando as similitudes da mensagem das aparições com as verdades contidas no Evangelho e, simultaneamente, extrair-lhe o húmus teológico como critério de autenticidade daqueles relatos místicos inéditos, para melhor anunciar o mistério do Coração de Cristo sem quaisquer sentimentalismos.

Acredito que São Cláudio, sentindo-se mandatado de uma especial missão de «arauto e proto-hermeneuta» da mensagem confiada ao apostolado de Santa Margarida Maria, empreende um esforço de clarificação que, como descreve o Papa Francisco, «evidencia que a contemplação do Coração de Cristo, se for autêntica, não provoca complacência em si mesmo nem vanglória nas experiências ou esforços humanos, mas um abandono indescritível em Cristo que enche a vida de paz, segurança e decisão» (DN 126).

São Cláudio enaltece o carácter comunicativo dos eventos do Coração de Jesus, usados como alavancas e meio de expansão de um modo concreto de ser humanidade, que consegue ir além do pendor confidencial e pessoal da manifestação (cf. DN 127) propondo-o aos exercícios da vida, da partilha e do testemunho num horizonte universal. 

Assumindo o compromisso de quer ser instrumento ao serviço da divulgação do Coração de Deus, concebe-o como objeto de uma espécie de comunicação de massas, isto é, um ideal a ser proposto face a face e de viva voz a todos os seus contactos, uma realidade, que confessa com entusiasmo, já haver inspirado a tantas pessoas (cf. DN 127).

A intuição teológica de São Cláudio, diz o Papa, sintetiza o carácter estético da experiência mística de Margarida Alacoque num modo muito próprio da espiritualidade inaciana, nomeadamente na exploração do conceito de moção do Espírito, a saber a disposição interior que, no Coração de Jesus, se traduz no dinamismo de ir ao encontro e em perdoar sem barreiras, um modo inaudito de ser que não deixa de emocionar, afetar e deslumbrar quem o contempla (cf. DN 128) nestas proporções.

Acredito residir nesta manifestação um inegável e efetivo teor comunicativo que toma corpo em duas vertentes fundamentais: o anúncio da verdade evangélica e a comunicação do perdão enquanto sinal sacramental, que adjudicam a condição essencial para subsistir no Coração de Jesus, isto é, para permanecer no amor (cf. Jo 15, 9-11) indo ao encontro do irmão, num efetivo exercício da dinâmica providencial de participar da condição essencial de ser e estar autobiográficas de um Deus, que envolve intencionalmente o devoto num vigor coerente com toda a Revelação Divina: no fundo um Deus que busca incessantemente encontrar-se connosco – fá-lo na sarça, na coluna de nuvem e no próprio corpo humano de Jesus como lugares de comunicação amorosa.

Este encontro com o Coração de Jesus permite-nos reduzir a nada o veneno dos ódios e contendas, colocando em seu lugar a plenitude das talhas do nosso coração, cheias até cima, com o vinho novo do amor integral pelo qual ouvimos, na reflexão do Papa, La Colombière suspirar: «Represento para mim mesmo aquele Coração sem amargura, sem azedume, cheio de verdadeira ternura para com os seus inimigos» (cf. DN 128). 

No fundo, o Coração de Jesus inspira uma coerência absoluta que transpira fidelidade, pois, ainda que Lhe falhemos nos nossos compromissos, o Coração do Senhor permanecerá fiel – disponível, de modo apaixonadamente recorrente, para nos encontrar, perdoar e resgatar – porque recluso voluntariamente no amor de não querer negar-se a Si próprio (cf. 2 Tm 12-13).

Mudando as referências hagiográficas, o Papa enfatiza o papel do Espírito Santo, ainda que por interposta pessoa, na reformulação de alguns elementos da devoção ao Coração de Jesus, expresso no contributo que, sem uma intencionalidade reformista clara, nos fornecem as intuições de São Charles de Foucauld e de Santa Teresinha do Menino Jesus. 

A natureza amorosa da experiência relacional destes dois enamorados pelo Coração de Jesus instiga-nos «a compreendê-la de uma forma ainda mais fiel ao Evangelho» (DN 129).     

Simultaneamente, sublinha-se a importância de encarnar na vida de apostolado as verdades evangélicas acreditadas, em profundo e constante diálogo com a pessoa de Jesus, tendo sempre a consciência de que o carácter polissémico da revelação do seu Coração pode originar modos de desenvolvimento teológico e espiritual tão diversos (cf. DN 129) quanto coerentes. 

E, porque convoca experiências de encontro únicas, esboça uma certa personalização que desponta de um sentimento de se ser um especial destinatário da mensagem do Coração do Senhor, que inunda o coração do fiel de uma compulsividade de o anunciar, narrada doravante tendo por base o seu próprio património linguístico, cultural e de fé e, nesse sentido, oportunidade de atualização e concretização constante na vida dos devotos. 

O Papa começa por Charles de Foucauld e pela sua intuição da necessidade de conhecer o Coração de Jesus (cf. DN 130) como ponto de partida para fazer a experiência de amar plenamente, ainda que apenas por aproximação, isto é, revela-se útil ter a ânsia de cultivar a humildade e de aprender por imitação, tal qual a criança que dá os primeiros passos ou que balbucia as primeiras palavras. 

No fundo, trata-se de compreender e colocar em prática o sentido performativo das palavras de Jesus: «Se não vos tornardes como criancinhas, não entrareis no reino dos céus» (cf. Mt 18, 3-6) em tudo similar ao sentimento de bem-estar, experimentado pelos discípulos no Tabor – «como é bom estarmos aqui» (cf. Mt 17, 1) –, e que exala da continuidade reiterada de um profundo encontro «cor ad Cor». 

Assim, cultivar na terra do coração humano significa nutrir uma «amizade com Jesus, de coração a coração, [que] não tinha nada de devocionismo íntimo» (DN 132), movida por uma admiração interior que enforma o ato deliberado de amor comummente chamado de consagração (cf. DN 131). 

Esta realidade revestida da operatividade de uma relação de muita proximidade e intimidade, uma espécie de admiração operante que incita a prolongar no mundo as maravilhas do Sagrado Coração de Jesus (cf. DN 132) e que São Charles de Foucauld sente como um impulso de amor para se entregar ao Senhor, vencido pela quantidade de vezes que o seu diretor espiritual lhe havia falado deste mistério. 

Assim, possamos nós fazê-lo sem um pudor sentimentalista, que já não serve de todo à missão pastoral dos nossos dias, em que a razão se sobrepõe à emoção e ao afeto, e em que as coisas simplesmente profundas já não produzem em nós uma reação de admiração, tão pouco um arrepio existencial que acione o mecanismo de uma entrega confiada e total tal qual pressupõe uma consagração.

No caso de Santa Teresinha do Menino Jesus, recorda o Papa, encontramos a originalidade, um rasgo de coragem em sentir de um modo inaudito o mistério do Coração de Jesus sendo uma admiradora praticante de um amor pessoal, esponsal e seguro de que uma história de amor nunca é igual a outra. 

Tendo respirado a profundidade da devoção ao lugar do amor no «Coração cercado de espinhos» (DN 134), oceano que inundava a França do século XIX, e soube vivê-la de um modo extraordinário tal como confessa numa carta: «Sabes, eu não vejo o Sagrado Coração como toda a gente; penso que o coração do meu Esposo é só meu, como o meu é só dele. Então falo-Lhe na solidão desta deliciosa intimidade, esperando contemplá-l’O um dia face a face» (cf. DN 134).

Santa Teresinha é a prova de que cada relação com o Coração de Jesus é única, íntima, apaixonada e que não há nenhum mal nisso, antes pelo contrário, aí reside o benefício    de um clima poético de uma paixão que aprofunda a relação, como que uma antecipação profética da beatitude futura concretizada por uma sensação de arrebatamento diante de um encontro belo, sereno, acolhedor e amoroso.

Este turbilhão de emoções ordenadas, enquadradas pela relação esponsal, reflete-se não só na sua consciência estética, espiritual e teológica, mas também numa expressão poética com que narra a sua relação de amor com o Coração do Salvador (cf. DN 133), sendo os textos citados nos números 135 e 136 os que melhor representam os significativos vestígios deste amor tão particular.

Como em todas as dimensões da vida cristã, também aqui podemos vislumbrar a perigosa tendência do dirigismo e que o Papa identifica nas «mentes moralizantes, que pretendem controlar a misericórdia e a graça» (DN 137) transversais as todos os tempos, bem como a veleidade, incrustada e fabricada como lugar «comum em alguns círculos cristãos» (DN 137), de querer sequestrar o Espírito Santo. 

Acredito que tais cenários tenham como consequência imediata a perda da oportunidade de nos deixarmos encarnar pelo modo de proceder do Coração de Cristo e, tal como adverte o Papa, «retiram à espiritualidade de Teresa a sua bela novidade que reflete o coração do Evangelho» (DN 137).

Recordemos que Teresinha é a esposa do Ressuscitado e, por isso, não consente amar um morto e, por isso, o seu Esposo não poderia ser outro que o Coração glorioso do vivente. Nesse sentido, não se contenta com as facetas de espiritualidade do Coração de Jesus que O contemplam exangue e morto e que exploram o primado da dor, encarando-a como meta e não como meio de redenção. O Papa Francisco lê tal atitude como ocasião para um antropocentrismo, isto é, um absolutismo do «esforço humano, no mérito próprio, na oferta de sacrifícios, em certas tarefas para “ganhar o céu”» (DN 139).

A intuição teológica de Teresinha sobre as proporções do amor que arde no Coração de Deus leva-a a partilhar com a sua irmã Léonie, tal como anota o Papa Francisco no número 140 da sua encíclica: «Garanto-te que Deus é muito melhor do que tu imaginas. Contenta-se com um olhar, com um suspiro de amor… Quanto a mim, acho a perfeição muito fácil de praticar, porque compreendi que nada há a fazer senão ganhar Jesus pelo coração».

A ideia de ganhar Deus pelo coração parece-me uma magnífica forma de entender, pela analogia do coração materno, o amor de Jesus por nós. Ele que é o Deus com um coração humano semelhante ao nosso (cf. DN 140). Pelo excerto da carta de Santa Teresinha ao padre Adolphe Roulland, que o Papa transcreve para o corpo da sua encíclica, vemos como ela tem uma aguçada consciência de que o amor de Deus não pode ficar refém de rigorismos. Seria incompreensível e muito improvável que alguém, que ama sem limites, pudesse propor a dificuldade sobre-humana como meta a alcançar, como segredo a desvendar ou como convite a dialogar (cf. DN 141). 

Nesta linha, Teresinha prefere a Palavra de Deus a toda a palavra sábia e inteligente da humanidade, como aliás confessa: «a minha pobre inteligência cansa-se muito depressa; fecho o sábio livro que me quebra a cabeça e me seca o coração e pego na Sagrada Escritura» (DN 141).

A teologia do Coração de Jesus proposta por Santa Teresinha, certamente inspirada pela vivência de uma santidade familiar, vai buscar raízes nas relações de amor levadas à cena num qualquer lar verdadeiramente cristão, onde se sentem as tensões da correspondência no amor infinito. Daí que destaque a ternura de um filho que fala ao coração de um Pai, que, consciente da fragilidade do filho, não lhe recusa a segurança do colo ou o quente aconchego do coração (cf. DN 142). Razões de sobra para anunciar, viver e testemunhar que o amor do Coração de Jesus é instrumento de progressão na vida espiritual e nascente de tantas possibilidades de declarar o amor verdadeiro, coerente e apaixonadamente próximo da história concreta de cada um de nós.

Tema de Estudo: ‘Dilexit Nos’
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