CAMINHAR NO DESERTO – Reflexão Quaresmal de 2020

Neste tempo santo a Comissão Nacional de Justiça e Paz (CNJP) convida todos os cristãos e pessoas de boa vontade a que nos deixemos “conduzir como Israel ao deserto (cf. Os 2, 16)”.
http://lefa.pt/?p=24850

O Papa Francisco convida-nos a viver mais uma vez a Quaresma como “um tempo propício para nos prepararmos para celebrar, de coração renovado, o grande Mistério da morte e ressurreição de Jesus, fundamento da vida cristã pessoal e comunitária”.

Neste tempo santo a Comissão Nacional de Justiça e Paz (CNJP) convida todos os cristãos e pessoas de boa vontade a que nos deixemos “conduzir como Israel ao deserto (cf. Os 2, 16)”.

O conhecido poema de Sophia de Mello Breyner lembra-nos que é preciso atravessar o deserto:

Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

(Sophia de Mello Breyner Andresen, in ‘Livro Sexto’) [Sophia de Mello Breyner foi membro da 1ª Comissão Nacional Justiça e Paz.]

O mundo é um deserto que queremos atravessar para podermos, como afirma Sophia, “viver em pleno vento”, transcendendo-nos.

Cristo viveu 40 dias no deserto. Passou fome, sede, solidão. Permitiu que o espírito do Mal o tentasse e, atravessando o deserto, fez face à tentação. Deixemo-nos converter nesta Quaresma. Na sua etimologia a conversão (do latim conversio) significa sofrer uma mudança, ser alvo de transformação, de uma alteração de vida, seguindo o caminho oposto àquele que seguíamos.

Para que façamos tal processo temos de ter consciência do nosso pecado e da tentação a que somos sujeitos no deserto, tal como Cristo foi tentado. Sejamos humildes e reconheçamo-nos pecadores.

Como Cristo somos tentados, mas ao jeito de Cristo podemos fazer face à tentação, mudando o nosso percurso de vida e transformando-nos numa pessoa melhor.

Para que façamos tal processo temos de ter consciência do nosso pecado e da tentação a que somos sujeitos no deserto, tal como Cristo foi tentado. Sejamos humildes e reconheçamo-nos pecadores.

A tentação de acumular coisas

Deparamo-nos no dia a dia com o apelo ao consumo desenfreado, tropeçamos na dependência de comprar coisas e objetos para fazer face aos vazios da nossa alma. Experimentamos a fome de acumular coisas. De um modo determinista ciclicamente sentiremos de novo a mesma fome… como num eterno retorno, um ciclo destrutivo sem fim.

Mas essa “fome” pode ser vencida pela confiança na Palavra de Deus, Ele proverá o alimento na hora certa, da forma certa, sem inverter a realidade das coisas com os valores inerentes a ela: “não vos preocupeis… olhai os lírios do campo… as aves do céu… a cada dia basta seu mal; o amanhã cuidará de si mesmo” (Mt 26, 26).

Em contraponto à fome de ter, em jeito de transformação escolhamos uma frugalidade de vida: vivamos com menos e sejamos muito; tenhamos consciência de que os recursos do planeta são limitados, portanto há que usar responsavelmente aquilo que nos foi dado; façamos face às alterações climáticas através do compromisso com uma vida mais simples, reduzida ao essencial, em que deixar de “ter” se pode transformar numa forma de “ser” mais e melhor. Escolhamos o “decrescimento” como forma de fazer face ao crescimento desenfreado.

Enumeremos aquilo de que podemos prescindir na consciência de que há muitos que não possuem nada. Ultrapassemos um cuidado excessivo do corpo e da saúde, das dietas de última moda, para pensar em tantos que passam fome e que não têm o essencial para viver. Exercitemos a prática do jejum em contraponto a verdadeiras “orgias” na forma como lidamos com os alimentos, com os objetos, com a palavra (e o maldizer), com aquilo que consumimos (por exemplo o abuso dos telemóveis e das redes sociais). Carlos Maria Antunes [Só o Pobre se Faz Pão. Paulinas, 2013] convida-nos a “comer com ação de graças [o] que implica uma atitude de veneração perante o alimento (…). Comer é uma oração (…). A refeição pode ser um tempo lento e um cuidado”.

Sejamos contidos, resistamos à solicitação do imediato, ao gesto compulsivo. Ultrapassemos a necessidade de satisfação imediata do desejo, ultrapassemos este imediato: como podemos, na educação das nossas crianças fomentar o seu sentido de generosidade responsável, de consciência de que não são o centro do mundo, de construção de uma cidadania? Comecemos nós, adultos, a lhes dar o exemplo.

Reencontremos o verdadeiro sentido do sacrifício: o ato de abrir mão de uma coisa por outra. A palavra latina era composta por SARCER, “sagrado” e FACERE, “fazer”. Numa tradução literal, SACRIFICIUS seria “tornar um ato sagrado”. Que os nossos atos, nesta quaresma, se tornem, assim, sagrados.

A tentação do poder

Na segunda tentação, o demónio oferece a Jesus poder e glória sobre o mundo se Ele o adorar. Que sentido temos de “poder”? Que é para nós a “glória”? Vivemos num tempo em que nos confrontamos de uma forma opressiva com a nossa imagem. Usamos de forma pervertida os meios de comunicação social para sublinhar essa imagem. No facebook ou noutras redes sociais alimentamos narcisisticamente o nosso “eu”. Tem valor apenas o que “aparece” no seu momento de glória que, frequentemente é transmitido pelos órgãos de comunicação social: “o que sentiu?” “o que viu? Confrontamo-nos com o narcisismo do “eu” enquanto centro do mundo. E somos tão pequenos se nos cingirmos a essa imagem supérflua e superficial… Mas o que é a imagem senão o espelho da alma?

Afirma Sophia: “Cá fora à luz sem véu do dia duro/Sem os espelhos vi que estava nua/E ao descampado se chamava tempo”. Sim, estamos nus perante Deus, despidos dos nossos espelhos, das nossas imagens. Nu, face a Pilatos, Cristo afirma: “O meu reino não é deste mundo”. Onde está o nosso reino?

Somos tentados pelo “poder” que, em si, é bom se for poder para servir. Mas é perversa a assunção que o poder apenas existe em proveito próprio. Pretendemos ser reis absolutos mas a necessidade de ver tudo e todos a circular em torno de nós torna-nos escravos. Tudo se reduz à nossa ambição e interesse próprio, numa narcísica autocomplacência, num estatuto que é apenas vazio. Ajoelhamo-nos face ao poder como se este sagrado fosse. Entendemos o poder como um jogo entre os poderosos – veja-se o perigo do confronto entre os Estados Unidos e o Irão. O tráfico de armamento enquanto poder que suscita a guerra. Vivemos no medo. Onde está a ousadia dos filhos e filhas de Deus?

E o poder como serviço? O poder que deve “circular de mão em mão” (Michel Foucault); o poder enquanto possibilidade de entregar poder aos outros, despertar neles o seu próprio poder (“empoderamento”), a responsabilidade pelas próprias vidas e das dos outros.

Para nos tornarmos senhores de nós próprios, para nos libertarmos, para que me torne “senhor de mim mesmo”, despojemo-nos daquilo que é acessório e nos limita, disfrutemos a liberdade dos filhos de Deus: saboreemos a leveza da liberdade. Mas agarremos com as duas mãos o poder que temos e usemo-lo para transformar o mundo e a vida. Descubramo-nos irmãos do outro e não queiramos submeter o outro aos nossos caprichos e necessidades. Não nos deixemos corromper, uma tentação que está sempre à nossa porta, mesmo na política, no mundo empresarial ou dos negócios. Afirma Sophia: “por ti deixei meu reino meu segredo”.

A tentação da riqueza

Francisco fala-nos da “sede desenfreada de lucro, que é uma forma de idolatria”, sobre “ a acumulação que corre o risco de embrutecer [o ser humano], fechado no seu egoísmo”. Deixamo-nos corromper frequentemente para conseguir maior riqueza. Em Portugal abundam os casos de corrupção a tantos níveis, da pequena à grande corrupção. Adoramos o “bezerro de ouro” e esquecemos que somos filhos de Deus à imagem de Jesus Cristo. Ajoelhamo-nos face ao dinheiro, essa grande tentação? Que dizemos da fuga desenfreada aos impostos que são apenas o dinheiro que pomos em comum para as nossas necessidades coletivas? Fugir aos impostos é claramente uma omissão.

Nesta “caminhada pelo deserto” Deus propõe-nos a partilha dos bens com os mais necessitados, o trabalho de combater estruturas que mantêm uma quantidade significativa das pessoas em situação de pobreza. Portugal é um dos países europeus onde existe maior discrepância entre os mais ricos e os mais pobres (10% dos mais ricos ganha 9 vezes mais que 10% dos mais pobres), o índice de pobreza atingiu 17,3% do total da população. O dinheiro deve circular, senão queima as nossas mãos. O dinheiro tem que necessariamente ser partilhado.

Francisco fala-nos de “uma economia que mata” e pede uma reflexão sobre “as dimensões estruturais da economia”. Durante a Quaresma, entre 26 e 28 de março, decorrerá em Assis um encontro de jovens para traçar as linhas de uma verdadeira “economia de comunhão em contraponto à economia do capital.

Que é então a caridade, a esmola, a partilha? Queremos, como o jovem rico, recusarmo-nos a dar aquilo que temos aos pobres? Queremos voltar as costas a quem mais precisa? Ignorá-los na nossa cegueira?

Fala-se no pecado da “omissão” enquanto ausência cuidado e atenção aos outros, enquanto passividade e inércia face às situações de opressão que nos envolvem. Cobardemente “lavamos as nossas mãos”.

Para ultrapassar o deserto de nós mesmos

Neste tempo de Quaresma ajoelhemos perante Deus. Cultivemos a bondade e a compaixão em contraponto à sede de poder em proveito próprio. Encontremos o verdadeiro sentido de amar os inimigos. Deus ama também os seus inimigos (cf. Mt 5, 43-48). Como podemos desejar o bem e o bom a quem nos faz mal? Como oferecer a outra face sem nos negarmos a nós mesmos, na convicção de que há uma consequência para os atos que praticamos?

Francisco fala do “amor de Deus, que sempre nos precede e sustenta”. Fazemos de Deus o centro das nossas vidas? O nosso sustento? Abrimo-nos à salvação neste tempo quaresmal? Francisco convida-nos: “Deixa-te salvar sempre de novo”. Sejamos “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13-14).

Ao jeito da samaritana, tenhamos sede da água que nos salva: “Quem beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna” (Jo 4,13-14).

No livro do Petit Prince Saint Exupéry afirma que o deserto esconde um poço de água: “Levantei o balde para os seus lábios. Ele bebeu. De olhos fechados. Era doce como uma festa. Esta água era bem mais do que um simples alimento. Ela nascera da caminhada sob as estrelas, do canto da roldana, do esforço dos meus braços. Ela era boa para o coração, como se fosse um presente. (…) a água que me deste a beber era como uma música, por causa da roldana e da corda…lembras-te?… era boa”. A água que brota porque atravessamos o deserto e contemplamos as estrelas.

Na caminhada pelo deserto desta Quaresma, procuremos o poço da “água viva”, desejemos a água que Cristo nos oferece, a água que sacia, que nos oferece a vida eterna. Ajoelhemo-nos perante a água que jorra do deserto. E caminhemos para a Luz “vivendo em pleno vento”.

Lisboa, 26 de fevereiro de 2020

Partilhar / Print

Print Friendly, PDF & Email

Leia esta e outras notícias na...

Receba as notícias no seu email
em tempo real

Pode escolher quais as notícias que quer receber: destaques, da sua paróquia

plugins premium WordPress