Retomamos aqui esta nossa viagem pelo 3º capítulo da Encíclica «Amou-nos», com a temática do «amor sensível» como proposta de um modo de ser que predica a humanidade no ápice da sua beleza. Na visão do Papa, «amor e coração não estão necessariamente unidos» (DN 59), o que significa que possuir um coração, no estrito sentido anatómico, não impede que nele reinem sentimentos nefastos e desumanos: «o ódio, a indiferença e o egoísmo» (DN 59). Se a humanidade assim proceder, afasta o amor do trono da sua intimidade, excomungando-se do Coração de Deus e embarcando num eterno êxodo rumo a um desencontro infinito, que impedirá a concretização do desígnio reservado por Deus para cada pessoa humana, que se expande e realiza numa relação umbilical com a capacidade de amar. Trata-se, portanto, de uma questão de escolhas, de correspondência a um amor primogénito, oferecido à humanidade no altar do Coração humano de Jesus, como as primícias mais belas de um renovado alvorecer para a criação. Diz-nos Francisco que os sentimentos humanos de Jesus, o Deus humanado, «tornam-se o sacramento de um amor infinito e definitivo» (DN 60) e que, por esse motivo, são sinal da realidade do seu corpo humano, «que torna possível que Cristo tenha emoções e sentimentos muito humanos – como nós –, embora plenamente transformados pelo seu amor divino» (DN 60). Com estas palavras, o Papa faz a exaltação de que Jesus é a narração da harmonia entre as suas duas naturezas (cf. DN 62), uma unidade que não despreza a humanidade que a divindade escolheu assumir, não para se lhe sobrepor, mas para a amar profundamente, recriar dinamicamente e salvar derradeiramente. A sensibilidade do amor é uma expressão que vai buscar atualidade ao sentido popular do «coração como centro afetivo de todo o ser humano» (DN 61), para descrever o modo inaudito como «o amor divino de Cristo está unido para sempre e de modo inseparável ao seu amor integralmente humano» (DN 61). Acredito que, dado o seu caráter essencialmente operativo, o amor não pode ficar recluso numa excessiva teorização que lhe faça perder a dimensão empírica e vivencial, que lhe imprimem os sentimentos, conservada pelo sentido prático das religiosidades populares (cf. DN 63). O Coração de Jesus é, assim, modelo a imitar, e, pelas virtudes que condensa em si, converte-se no sinal de um constante palpitar apaixonado que predica, de modo invisível e inefável, «toda a verdade do seu amor divino e infinito» (DN 64). O Coração do Senhor declina-se, segundo o pontífice, numa tríplice condição cristológica, que se exprime no «amor divino infinito que encontramos em Cristo» (DN 65), na «dimensão espiritual da humanidade do Senhor» (DN 65) e no «símbolo do seu amor sensível» (DN 65). Harmonia, coerência e constância são, no meu entender, os atributos necessários à articulação destes «três amores», que não se justapõem, antes se entrelaçam para formar o tecido deste miocárdio onde corre o fluxo sanguíneo, sinal «constante de vida» (DN 66). A realidade, a vontade humana e a normalidade que reinam no Coração humano de Cristo fazem com que, ao transpormos o pórtico da chaga da lança, nos sintamos «amados por um coração humano, cheio de afetos e sentimentos como os nossos» (DN 67), que nos confere o acesso pleno ao seu Coração divino, igualmente repleto de amor. O Papa alerta ainda para a importância do caráter unitário dos mistérios de Cristo, autoesclarecidos quando considerados de forma articulada. Isso, naturalmente, questiona o nosso íntimo sobre a necessidade de compreender que a pessoa, no seu conjunto, é muito mais do que a soma das suas partes físicas, envolvendo necessariamente toda uma dimensão afetiva e psicológica que engloba os sentimentos, as intenções, os pensamentos e as ações concretas. Um tal cenário exige-nos ter como premissa que, em Jesus, Deus faz-se coração humano e, por isso, ao contacto do seu modo inaudito de ser, nós, seus discípulos e amigos, não podemos ser frios, insensíveis e distantes. Ter um coração como o de Jesus significa ter um músculo que se exercita a amar; é ser aprendiz de uma santidade operativa que reflete a proximidade do Reino, como oportunidade para aprender a ser humanidade nova e diferente, que testemunha um encontro pessoal com Deus (cf. DN 68). A consciência de que a chaga é porta, veículo e lugar de encontro de corações de carne que apenas diferem no grau de consumação do «amor imensurável de Cristo Ressuscitado (que) não é sentido como estranho à nossa vida» (DN 69), transforma-nos de dentro para fora, como que extraindo a essência que se encontra oculta pelo nosso esforço de aparência. O Coração de Jesus é fonte de um amor trinitário e, apesar de ser marcadamente cristológico, «não podemos ignorar que, ao mesmo tempo, Jesus se apresenta como o caminho para ir ao Pai» (DN 70). Assim, o sentido proativo da sua devoção não se limita à cristologia de pés assentes na terra, mas aponta sempre para o céu, como morada definitiva da humanidade e de Deus Trindade Santíssima. Daqui podemos retirar uma imagem pedagógica da peregrinação para o Coração do Pai, do Filho e do Espírito Santo: a casa, ao modo bíblico, oferece-se como analogia para a compreensão do itinerário de fé do cristão (cf. DN 71). O Coração de Jesus ensina-nos que, pela oração sincera, se toca o Coração do Pai e que esse pórtico da proximidade com Deus escreve o contínuo apelo a permanecer junto de si (cf. DN 72). A familiaridade com que Jesus nos mostra que Deus é Pai continua a escandalizar, uma vez que sentimos que a omnipotência, enquanto atributo de Deus, fica comprometida por esta afetuosa proximidade no tratamento. No meu entender, acontece precisamente o contrário na lição dada pelo Sagrado Coração de Jesus, que recorda que a proximidade física do Reino de Deus, ilustrada pelo mistério da encarnação, se consuma na primeira pessoa: Jesus, que nos convida a chamar Deus de «paizinho». A chaga do Coração é, nessa medida, a manifestação do beliscar voluntário da omnipotência divina, que se traduz na mais perfeita fórmula do amor, à luz da qual toda a vida deve escrever, nas páginas do tempo, um autêntico Salmo de louvor: Enquanto o meu coração bater, louvarei o Senhor! Ele, que com o seu sangue me aqueceu as veias, louvarei o Senhor! Pela sua luz que me ilumina o rosto, louvarei o Senhor! (cf. DN 73-74). O Papa não esquece que o Coração de Jesus é, igualmente, rosto do Espírito Santo, esse fogo santo que «enche o Coração de Cristo e arde n’Ele» (DN 75), e que aqueceu, na conversa ao longo do caminho, o coração dos discípulos desalentados de Emaús, dando-lhes de novo as armas para reconhecerem o Coração de Jesus ao partir do pão. Por meio dele, santificam-se os dons, operam-se os sacramentos e nasce a Igreja, vinda do lado aberto de Jesus, outro modo com que podemos traduzir imageticamente este mistério tão profundo. Na ação do Espírito Santo reside ainda o potencial transformador, que apela a imprimir na terra, por arar do nosso coração, a orografia do Coração de Jesus, que é Filho e que ama o Pai em espírito e verdade. Ele pode transformar as nossas relações – com Deus, com o mundo e com os irmãos – «sob o impulso do Espírito, que nos orienta para o Pai, fonte da vida e origem última da graça» (DN 77). Em síntese, vemos que o amor que ferve no Coração de Jesus é fruto de uma relação sincera e autêntica, escrita na sua carne humana. Mais do que ser expressão de uma autorreferência cristológica, ela narra-se em profundo diálogo com o amor trinitário que caracteriza a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, uma realidade que estes números da Encíclica propõem redescobrir e incrementar na vida e missão da Igreja.