A chama que nunca se apaga
A noite caía suavemente sobre Leiria quando lenços coloridos começaram a povoar a entrada da Sé enquanto a chuva teimava em cair no átrio. O ar vibrava com uma mistura de nostalgia e expectativa. Não era uma noite comum – era a noite em que o escutismo da Diocese de Leiria-Fátima celebrava seu centenário, cem anos depois daquele 20 de março de 1925, quando o sonho de Joaquim Pereira dos Reis, Sebastião da Costa Brites e Augusto dos Reis deu seus primeiros passos oficiais.
As luzes da cidade pareciam mais brilhantes, como se também quisessem participar desta celebração histórica. Escuteiros de todas as idades, alguns com cabelos grisalhos e olhares que carregavam décadas de histórias, outros com rostos jovens cheios de entusiasmo, reuniam-se para honrar um legado centenário.
À medida que o relógio marcava 21h15, a cerimónia evocativa do centenário na escadaria da Sé de Leiria começava. A inauguração da lápide alusiva ao centenário era mais do que um símbolo – era a materialização de um século de histórias, acampamentos, promessas e serviço.
O regresso às origens
Quando o padre José Henrique, assistente regional do escutismo, tomou a palavra, a sua voz carregava o peso e a honra de representar gerações de escuteiros que haviam caminhado antes dele.
“Foi junto à Sé de Leiria que começou o Escutismo na nossa Região,” iniciou ele, com um brilho nos olhos que revelava profunda conexão com a história que narrava. “O Grupo 14 – Nuno Álvares Pereira, tinha a sua sede numa das ruas da baixa, perto do Largo da Sé.”
A admonição que antecedeu a Eucaristia levou todos os presentes numa viagem no tempo, relembrando como tudo começou naquele dia, 20 de março, data da oficialização da Junta Regional.
“Assinalamos, neste dia, 100 anos desta aventura que teve em Joaquim Pereira dos Reis o seu rosto e motor inicial,” continuou, lembrando também do papel fundamental do cónego Galamba, que “deu novo impulso a este movimento que passava por um tempo de fragilidade.”
As palavras ecoavam no templo, enquanto olhares se cruzavam entre gerações. Veteranos assentiam em reconhecimento, jovens escuteiros absorviam com reverência.
“A Sé é a casa mãe da nossa Diocese, e também do nosso Escutismo Católico. Por isso, neste lugar tão significativo, nos reunimos para agradecer a vida e a história de tantos que, ao longo de 100 anos, marcaram a vida da nossa Região, com a sua entrega, disponibilidade e vontade de deixar o mundo sempre um pouco melhor.”
Celebração eucarística: a luz da Fé
Às 21h30, o início da celebração da Eucaristia, presidida por D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima, não era apenas um rito religioso – era o coração desta comemoração, unindo a espiritualidade que sempre caracterizou o escutismo católico com a gratidão por um século de jornada.
O interior da Sé, iluminado por velas e pelo brilho nos olhos de centenas de escuteiros, transformou-se num espaço de comunhão entre passado e presente, entre memória e esperança.
Quando D. José Ornelas se levantou para proferir sua homilia, um silêncio reverente tomou conta da Sé. As palavras, profundas e tocantes, ofereciam não apenas uma reflexão sobre o centenário, mas uma meditação sobre o próprio significado do escutismo e da fé cristã.
“Recordar 100 anos do escutismo na nossa Diocese é, antes de mais, um convite a olhar para aquilo que se passou antes de nós e a ter bem consciência de que a vida não começou connosco,” iniciou o bispo, com a sua voz a ressoar entre as colunas centenárias da Sé. “Nenhum daqueles que estão aqui foi o início desta história do escutismo.”
As palavras sobre a memória cristã tocavam os presentes: “O cristão, como diz o Papa Francisco, é uma pessoa de memória. No credo, afirmamos: ‘Creio em Deus, que criou todas as coisas; creio no Senhor Jesus, que nasceu da Virgem Maria e percorreu um caminho’. O que nós professamos é uma fé baseada na memória daqueles que viveram antes de nós.”
D. José Ornelas conectou as leituras do dia com a realidade do escutismo, tecendo uma reflexão sobre sonhos e legados:
“Hoje, à mesa, falámos de memórias do escutismo na nossa Diocese, memórias de pessoas reais, pessoas que sonharam e deram fundamento a este ideal, que é hoje o escutismo aqui. Tudo nasceu de pouco. Mas são precisamente estas pessoas que têm sonhos e criam histórias.”
Muitos escuteiros veteranos absorviam o discurso quando o bispo falou sobre Abraão, Moisés, Jesus e tantos outros que “acenderam chamas de esperança” e transformaram vidas através do escutismo.
A parábola do rico e do pobre Lázaro ganhou nova dimensão: “O que aconteceu ao avarento? Não se diz que ele era uma má pessoa ou que fosse corrupto. Apenas se afirma que, à porta dele, estava um pobre – e ele nunca o viu. Criou um fosso entre si e o resto do mundo, pensou apenas nos seus bens e no seu poder.”
Esta reflexão ressoou especialmente quando o bispo a ligou com o espírito do escutismo: “O escutismo ensina-nos a viver em grupo – não uma multidão dispersa, mas um grupo criativo.” Partilhou ainda a história inspiradora de um jovem que se tornou arquiteto desenvolvendo capacidades que começou a explorar no escutismo, e de outros que se tornaram médicos, psicólogos, engenheiros, “porque aprenderam a colocar os seus dons ao serviço de um mundo melhor.”
As palavras finais da homilia ficaram gravadas nos corações: “Façamos jus a esta tradição e sejamos verdadeiramente aqueles que estão sempre alerta para sonhar, para construir juntos, para dar sentido ao nosso mundo. Que, todos os dias, com a nossa vida e o nosso testemunho, possamos servir e criar o sonho de um mundo novo.”
Ação de graças: histórias ao redor da fogueira
O momento de ação de graças, conduzido pelo dirigente Carlos Martins, trouxe a intimidade e o calor da tradicional fogueira dos acampamentos para dentro da Sé.
“Hoje estamos aqui reunidos para celebrar, para recordar o legado de 100 anos de vida e de história!” iniciou. “Por isso, como caracterizam as nossas tradições, estamos juntos, ao redor do fogo, para partilhar as histórias do caminho (e um escuteiro, tem sempre uma história, uma aventura para contar).”
O dirigente transportou os presentes para uma cena da sua própria história, remontando a 1990, quando ele, um lobito de 9 anos, ajudava a montar uma exposição comemorativa. Relatou como uma “pessoa mistério” comentava sobre as celebrações do Agrupamento 36 da Marinha Grande e como seria impossível para eles celebrarem os “127 do 127”.
“Carlos, ainda faltam 97 anos. Eu já cá não estarei. Tu, dificilmente! Vai ser uma celebração para ser vivida pelos teus filhos ou provavelmente os teus netos,” tinha dito aquela pessoa.
Com emoção palpável na voz, Carlos refletiu: “Hoje, 35 anos depois (já só faltam 62!), recordo aquelas sábias palavras da pessoa mistério com uma renovada sabedoria e com um significado muito pessoal e muito particular.”
Partilhou ainda a conexão familiar com a história do escutismo na região: “A 20 de Março de 1925, o desafio que Joaquim Pereira dos Reis aceitou o de lançar as sementes do Corpo Nacional de Escutas na diocese de Leiria tornou-se real, tornou-se oficial. Nessa altura a minha avó paterna tinha 6 anos, idade para ser lobita. Ela nunca foi escuteira! O filho também não. Os netos percorreram todo o caminho de lobitos a dirigentes, e hoje, 100 anos depois, a sua única bisneta é exploradora!”
As suas palavras sobre o legado e a importância de “ousar, que os sonhos são para realizar, que Possível se escreve chutando o IM para longe” tocaram os presentes, especialmente quando concluiu com uma oração de agradecimento: “Obrigado por nos fazeres sentir que vale a pena o que hoje fazemos para que os nossos bisnetos possam estar aqui reunidos, daqui a 100 anos, a celebrar este movimento, este legado.”
Uma surpresa inesperada: a folha da azinheira
O silêncio que se seguiu à ação de graças foi interrompido por uma surpresa. Nuno Reis, neto do primeiro chefe regional, Joaquim Pereira dos Reis, aproximou-se do altar com um objecto nas suas mãos, pequeno, mas de valor inestimável.
“Tenho aqui uma folha da azinheira do dia em que ocorreu o milagre do sol,” anunciou ele, enquanto olhares de espanto se fixavam nas suas mãos. “O meu avô, Joaquim Pereira dos Reis, um dos primeiros chefes deste agrupamento de escuteiros, era, na altura, responsável pelo quartel de Leiria e foi chamado para garantir a segurança da multidão que se reunira no local.”
A história que se seguiu era ainda mais surpreendente: “Tanto quanto sei, o meu avô era ateu, mas aquele dia marcou a sua conversão. No meio da comoção, viu a população a despedir-se das folhas da azinheira e conseguiu apanhar uma delas. É essa folha que tenho aqui hoje e que faço agora questão de entregar.”
O padre José Henrique recebeu a relíquia com visível emoção, explicando que a folha seria entregue ao bispo e posteriormente exposta no espaço museológico do CNE no Ninho do Corvo. “Trata-se de uma doação do nosso primeiro chefe regional, que viveu um momento tão especial a 13 de outubro de 1917. No exercício das suas funções, teve a oportunidade de contemplar tudo o que acontecia naquele dia, um momento que marcou a sua conversão e que esteve na origem do seu percurso, levando-o também a iniciar o escutismo na nossa região.”
Esta revelação adicionou uma dimensão espiritual ainda mais profunda à celebração, unindo as origens do escutismo na região não apenas a uma decisão administrativa, mas a uma profunda experiência de fé ligada a um dos eventos mais significativos da história religiosa de Portugal.
A chama que se propaga
Aproximando-se o final da celebração, o assistente regional, padre José Henrique, anunciou o momento simbólico que se seguiria:
“Ao aproximar-nos do final desta celebração, vamos convidar os antigos chefes regionais, ou seus familiares ou representantes, a aproximarem-se do altar.”
O que se seguiu foi um ritual significativo: o bispo, partindo do Círio Pascal, acendeu velas que foram entregues pelos guias aos antigos chefes regionais ou seus representantes. A chama chegou até Pedro Nogueira, o atual chefe regional, que a entregou aos guias, que por sua vez acenderam o Círio do Centenário.
“A luz que parte de Cristo, uma chama com toda a sua força e fragilidade, mas que transporta em si a vontade de deixar que este fogo do Escutismo, nascido há 100 anos na nossa Região, se continue a propagar e incendiar a vida de muitas crianças, jovens e adultos,” explicou o padre José Henrique.
Cada agrupamento recebeu então seu círio, aceso com a ajuda dos guias, juntamente com uma peça de lego para o totem do Centenário – símbolo de que cada um é parte fundamental na construção deste movimento centenário.
A voz da Junta Central
A presença do padre Daniel Nascimento, assistente nacional do escutismo, representando a Junta Central do CNE, trouxe uma dimensão ainda mais ampla à celebração.
“É com muita alegria que estou aqui presente, como assistente nacional, representando, portanto, a Junta Central nestes 100 anos da região de Leiria-Fátima,” iniciou ele, “por dois motivos. Em primeiro lugar, gosto sempre de recordar e perceber que o Corpo Nacional de Escutas é, de facto, um corpo. E um corpo tem muitos membros.”
A analogia paulina do Corpo de Cristo ressoou no templo: “O CNE precisa desta parte que é Leiria-Fátima. Muitas vezes diz-se que o todo é mais do que a soma das partes, mas, neste caso, esta parte é muito mais do que uma mera divisão do corpo.”
O padre Daniel propôs também uma reflexão sobre o tempo e o seu significado: “E outra palavra que vos queria deixar é esta ideia de século que aqui vivemos, uma unidade de tempo grande. O CNE celebrou há pouco tempo 100 anos, mas, nestes 100 anos, há muitos ‘100 anos’.”
A mensagem de comunhão e unidade culminou em palavras de encorajamento: “Para a frente é que é caminho. Bom caminho, boa caça, região de Leiria-Fátima!”
Uma visão para o futuro do chefe regional
Quando Pedro Nogueira, o atual Chefe Regional, se aproximou para proferir o discurso final, a expectativa era palpável. A suas palavras não eram apenas um encerramento, mas uma visão para o futuro.
“Todas as histórias começam por ‘Era uma vez…’ e a história da nossa Região também começa da mesma forma,” iniciou ele, captando a atenção de todos. “Era uma vez um Bispo, D. José Alves Correia da Silva, que desafiou Joaquim Pereira dos Reis, Sebastião da Costa Brites e Augusto dos Reis a formarem a Junta Regional de Leiria.”
Com habilidade narrativa, Pedro Nogueira teceu os fios da história, lembrando como “apareceu o Grupo 14, aqui na Sé de Leiria e seguiu-se a magia do Escutismo a disseminar-se por todo o lado, e com mais ou menos turbulência eis-nos aqui 100 anos depois.”
A reflexão sobre o impacto desconhecido daqueles primeiros passos foi particularmente tocante: “Acredito que Joaquim Pereira dos Reis, Sebastião da Costa Brites e Augusto dos Reis quando receberam a notícia que no dia 20 de março de 1925, de que se tinha constituído a Junta Regional terão ficado bastante contentes e felizes. Mas estavam longe de imaginar que hoje estaríamos aqui a celebrar 100 anos e certamente não se aperceberam do impacto que o Escutismo teve na vida de milhares de crianças e jovens que por aqui passam ou passaram.”
O chefe regional prestou homenagem a figuras marcantes como “o cónego Galamba, chefe António Poças da Rosa e o chefe Jacinto Gil,” afirmando que “o entusiasmo que estes três homens tinham pelo escutismo foi enorme, e de tudo fizeram para que o Escutismo crescesse na Região de Leiria-Fátima.”
A explanação sobre o tema do centenário, “100 anos ao redor da fogueira,” foi particularmente poética: “A fogueira não serve só para nos aquecermos nas noites frias, mas simboliza também o Espírito Santo. A fogueira é sempre um momento de confraternização no escutismo e para ouvirmos os conselhos dos irmãos mais velhos e para ficarmos horas a ouvir histórias, cantar ou simplesmente ouvir o seu crepitar. A fogueira é a essência do que somos.”
Citando a letra da música “Fogo Antigo” – “é um fogo mantido por mãos jovens dadas” que “não se perde nunca, que nunca mais se apaga” – Pedro ligou passado e futuro numa visão unificadora.
O seu olhar para o futuro foi especialmente inspirador: “O futuro do escutismo na nossa Região está nas mãos dos Lobitos, dos Exploradores, Pioneiros e Caminheiros que enchem os nossos Agrupamentos e Comunidades. Vocês são o Futuro desta História e contamos convosco para não deixar apagar esta fogueira.”
As palavras finais de Pedro Nogueira encerraram a cerimónia com uma visão audaciosa: “Que os próximos 100 anos sejam de uma fogueira ainda maior, aquecendo o coração de todos os que passam por este movimento.”
Celebração e memória: o sabor do tempo
Encerrada a cerimónia oficial, a celebração continuou num momento de confraternização com a partilha do bolo do centenário. O grande bolo, decorado com o número redondo, foi cortado com aplausos e canções que ecoaram pelo adro da Sé.
Veteranos e jovens escuteiros partilhavam não apenas o doce sabor do bolo, mas também histórias de acampamentos passados, de desafios superados, de amizades forjadas à de fogueiras que há muito se apagaram, mas cujo calor ainda aquecem corações.
A noite culminou com a inauguração do espaço museológico no Ninho do Corvo, onde a folha da azinheira de Fátima agora ocupava o seu lugar. Este espaço, mais do que um museu, torna-se um santuário da memória escutista, preservando e divulgando o rico legado de um século de escutismo na região.
O fogo aceso há cem anos continua vivo, passado de mão em mão, de coração em coração, iluminando o caminho para um novo século de aventuras, serviço e fé. A chama do escutismo, nascida há um século na diocese de Leiria-Fátima, brilha agora mais forte do que nunca, pronta para iluminar os próximos cem anos de história.
Esta reportagem marca o centenário da Junta Regional de Leiria-Fátima do Corpo Nacional de Escutas, celebrado no dia 20 de março de 2025. Uma história de fé, serviço e compromisso que continua a inspirar gerações de jovens a “deixar o mundo um pouco melhor do que o encontraram”.