Mirando o sol radioso da manhã, que parece quer dizer-nos que não foi para nada que, obedecendo às dinâmicas do Criador, há semana e meia iniciou a descida do seu zénite, sento-me no sofá do meu repouso, com o propósito de fechar os ouvidos a qualquer solicitação, externa ou interna, que queira perturbar a tranquilidade interior que desejo para rezar melhor os textos que a liturgia eucarística desta terça-feira propõe à minha leitura e meditação.
Assim, ´como quem se entrega ao comodismo de não pensar em mais nada, egoisticamente apegado à ideia daquele colega – Deus o tenha na Sua glória – que me recomendava calma, porque o trabalho não se azeda, abri o leccionário e fiquei considerando de novo. por momentos a palavra confortante do Apóstolo: não, de facto, parece-me que não sou mentiroso, já que afirmo que Cristo é Deus e procuro permanecer n’Ele, para poder ter plena confiança quando, Ele Se manifestar e não ser confundidos por Ele na sua vinda (Cfr 1Jo 2, 22-28).
Numa penada, João mostra-me o único necessário para viver sem temos, nem da vida nem da morte, nem do julgamento divino.
Os santos doutores da Igreja, Basílio e Gregório, dois companheiros de estudo, primeiro, émulos na fidelidade ao ministério episcopal, depois, que celebramos hoje, apesar do muito e acertado que escreveram, não diriam melhor.
E nós não precisaríamos de repetir continuamente os votos, tão ruidosos e talvez pouco sinceros, que fazemos uns aos outros, a propósito da passagem de ano.
O pensamento ia-se-me pouco a pouco escorregando para uma crítica mais apressado do que justo do mundo, quase como se não fizesse parte dele.
Até que esbarro com João Baptista, tal como no-lo apresenta um dos dois seguidores que, conduzidos por ele, se tornaram os primeiros discípulos de Jesus Cristo; discípulos e apóstolos, no sentido mais amplo da palavra.
João Baptista e eu! Aqui e agora.
Claro. Não visto de pele de camelo, nem tenho o deserto da Judeia; e falta-me o Jordão, com a abundância das suas águas e o espaço fértil e acolhedor das suas margens.
Não tenho nada disso; mas tenho o deserto imenso das multidões que, perdido o rumo das tribunas adequadas, com o crescimento do silêncio das vozes encarregadas de clamar a mensagem da salvação, se perdem nas ribeiras inquinadas de tantos “vendedores de banha de cobra”, quinta coluna inconsciente ou não, da voracidade das multinacionais.
João Baptista e eu!
É evidente que o Espírito Santo não guiou a mão do hagiógrafo, apenas nem principalmente, para que eu tivesse mais um documento, uma nota biográfica sobre a existência histórica do personagem de quem o mesmo hagiógrafo dissera:
“E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco. E nós contemplámos a sua glória,
a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14).
Não. Não foi principalmente para isso, mas para que eu percebesse como se constrói, hoje e à minha volta, o reino messiânico: não contemplando, nem propriamente imitando cenas ou figuras do passado, fazendo a parte que deus quer de mim, para que tais cenas e figuras sejam do presente.
Resistir à tentação de me distrair com descrições do calendário que, apesar de cientificamente correctas, belas e sedutoras como o fruto da árvore do Paraíso, utilizadas esquecendo, tantas vezes mesmo contrariando a verdade da sua raiz última, não produzem mais que uma tremenda sensação de medo e nudez (Cfr Gen 3, 6-9).
Saltei do sofá do meu repouso, transportando o texto sagrado, convencido de que, como João Baptista, tenho um deserto para ser aí uma voz que clama; mesmo que não passe disso. uma voz que clama no deserto.
Nas margens deste Jordão, que corre a sumir-se nas águas estéreis e paradas do Mar Morto, há gente que confunde tudo, pessoas inquietas que têm fome da verdade, curiosos que querem apenas saber, e espiões zelosos, ao serviço de ideologias e interesses inconfessáveis.
A mim, compete-me apenas ser a voz que clama, sem medo das dificuldades, agruras e perseguições do deserto, que deixaria de o ser, se as multidões me aclamassem.
“Endireitai os caminhos do Senhor (YHWH) (Is 40, 3-5).
Um deserto em que os únicos que seguem a Palavra e me podem deixar algum conforto, serão precisamente os que logo me abandonam, por acreditarem no que tem de ser a conclusão última e permanente do meu testemunho:
“No dia seguinte, João encontrava-se de novo ali com dois dos seus discípulos. Então, pondo o olhar em Jesus, que passava, disse: «Eis o Cordeiro de Deus!»
Ouvindo-o falar desta maneira, os dois discípulos seguiram Jesus” (Jo 1,35.37).
Claro.
João não aponta Jesus aos seus ouvintes, sem primeiro fixar n’Ele o olhar!
Esta é a diferença contra a qual tenho de travar uma luta contínua.