A morte é, provavelmente, a palavra mais complicada de definir no dicionário dos sentimentos, sobretudo quando nos toca de perto. Todos sabem que é o destino natural de quem nasce. Todos esperam, no entanto, que nunca chegue. E todos tentam, de múltiplas formas, encontrar uma explicação ou um sentido que a torne menos dolorosa.
Neste Ano da Misericórdia, em que somos convidados a meditar e viver as “obras” que a concretizam, encontramos a formulação do “sepultar os mortos”. Mais do que cumprir rituais fúnebres, esta 7.ª obra de misericórdia corporal remete-nos para o processo do luto, de aceitar a perda de quem nos é mais querido e aprender a viver com essa separação aparentemente definitiva. E também de oferecer ajuda a quem está nessa situação.
A resposta religiosa, na multiplicidade das suas formulações, aponta o horizonte do eterno como perspectiva de leitura da vida terrena que é finita e cimenta aí a esperança numa nova vida que exige a morte como passagem. No caso concreto da fé católica, é a ressurreição de Jesus Cristo que dá sentido e confirma essa esperança, como passagem (Páscoa) para a vida plena e perfeita com Deus. Ainda assim, porque somos humanos, é inevitável sofremos com a separação visível dos que amamos e cuja companhia não queremos perder.
Se já é difícil conviver com a morte dos pais ou dos amigos, muito maior provação é a perda de um filho ou de um irmão em idade jovem, sempre considerada como precoce e fora de tempo. A procura de sentido ou explicação torna-se mais complicada e a dor mais insuportável. Nesta abordagem, fomos ao encontro dessa realidade, através do testemunho de quem a vive e do trabalho de ajuda proposto pela associação “Laços Eternos”.
Retomamos, ainda, a recente conferência do médico Pinto da Costa sobre o tema do luto, em Leiria, e a sua insistência na necessidade de uma “educação para a morte”, baseada no princípio de “viver bem a vida”.
Uma associação que ajuda no luto
“Laços Eternos” conforta pais e irmãos
Durante cerca de 12 anos, existiu uma associação a nível nacional, intitulada “A Nossa Âncora”, que visava apoiar os pais em luto. Encerrou em dezembro de 2012, e foi então que um grupo de pais da Igreja do Campo Grande, alguns em luto muito recente, decidiram retomar esse trabalho e formar uma nova associação, registada a 5 de junho de 2013, com o nome de “Laços Eternos”.
O presidente é o psicólogo Carlos Céu e Silva, o único que não é “pai em luto”, mas tem uma vasta experiência nesta temática e já acompanhava a extinta associação. Acompanham-no na direção Natália Fernandes e Ana Cristina Farias, sendo os outros membros dos corpos sociais também pais e mães em luto.
Recentemente, a associação contactou a Diocese de Leiria-Fátima, dando conta da intenção de formar aqui um grupo local e procurando ajuda para encontrar um espaço onde pudesse reunir-se. Nesse contexto, procurámos saber junto de Natália Fernandes um pouco mais sobre a sua organização e modo como concretizam a ajuda a quem vive este drama.
O que é a “Laços Eternos”?
É uma associação de pais e irmãos que partilham em comum a saudade e o futuro sem aqueles que mais amam, os seus filhos e irmãos que partiram tão precocemente. É um lugar de amor, onde há uma linguagem única e compreendida por todos. Aqui, as mãos estão dadas umas nas outras, mesmo quando não se tocam. E os olhos vêem o que outros olhos nem sempre conseguem ver.
Assume-se como estrutura nacional, como a sua antecessora?
É essa a nossa intenção, embora ainda não tenhamos avançado muito com a organização nacional. É um processo complicado, dados os escasso recursos, pois somos uma associação sem fins lucrativos e não dispormos de qualquer ajuda, a não ser a quotização (50 euros anuais) dos cerca de 25 sócios e alguns donativos em nome individual.
Em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, conseguimos alugar um espaço para a sede, onde se reúnem mensalmente três grupos para pais e um para irmãos. Conseguimos abrir o primeiro grupo fora da nossa sede, no dia 11 de Fevereiro, no Centro Paroquial da Parede. E vamos abrir em março, com a ajuda do Hospital de Évora, o primeiro grupo no Alentejo.
Qual tem sido a procura de ajuda e a vossa capacidade de resposta?
A procura de ajuda tem sido bastante e nós tentamos dentro do que nos é possível atender todos aqueles que nos procuram. Temos muitos pedidos do Norte do País e estamos a encetar diligências para, o mais brevemente possível, abrir um grupo no Porto.
Qual o “quadro típico” de quem procura a associação?
A nossa experiência revela que pais e irmãos em situação de luto apresentam quadros depressivos graves, isolamento e comprometimento da qualidade de vida na esfera pessoal, laboral e social. Paralelamente, após a perda de um filho, as famílias apresentam sérias dificuldades em se reorganizarem, carecendo de um apoio com muita proximidade que facilite a sua reestruturação após a perda. Por vezes desencadeiam-se ainda processos de exclusão social e relacional grave, resultantes de baixas prolongadas, reformas antecipadas e situações de divórcio decorrentes do luto.
Quais são os principais objectivos do vosso trabalho?
Os principais objectivos são ajudar os pais a fazer o seu luto e o seu caminho de uma forma o mais serena possível, tentando aliviar ou suprimir a sintomatologia patológica decorrente do luto, facilitar a adaptação da família à perda e ausência permanente do seu ente querido, e auxiliar na recuperação do bem-estar psicológico.
Há um método definido?
Na sua intervenção, a “Laços Eternos” privilegia a qualidade da relação humana e a protecção e promoção do equilíbrio psicossocial de pais e irmãos, promovendo a sua integração no tecido familiar e social envolvente. Este trabalho é feito através de grupos de entreajuda e/ou atendimentos individuais, primeiro por pais com um luto mais antigo e posteriormente, se necessário, por psicólogos. Cada um de nós dá o seu testemunho de caminhada e as “ferramentas” que vai arranjando para lidar com esta enorme dor.
A questão da fé e da prática religiosa contribui de alguma forma para esse processo?
Encontramos duas reações: há pessoas que através da sua fé conseguiram uma maior paz espiritual e continuam a seguir o caminho de Deus, e há outras que, sendo católicas, ficaram com uma total revolta e deixaram de acreditar. O nosso papel restringe-se a ouvir todos e todas, sem argumentar o que quer que seja. Como nos temos sempre pautado por ser independentes religiosamente e acolhermos todos de uma maneira geral, tentamos não ferir susceptibilidades.
Mas o vosso testemunho inclui a experiência pessoal de fé?
Sim, em total harmonia e liberdade, falamos da nossa fé e damos o nosso testemunho de como ela nos ajuda a ultrapassar a perda. E a associação tenta estar presente sempre que há celebrações religiosas, como no caso do Dia das Mães, em Fátima, no mês de maio, ou na Missa do Dia Internacional em Memória dos Filhos que Partiram, em dezembro. Vemos que alguns pais e mães que estão “zangados” com Deus se sentem bem ao participar, o que para nós é uma grande alegria.
Pelo que observa, há uma capacidade diferente de encarar o luto por parte de quem acredita?
Na minha opinião, a fé torna o luto menos doloroso, pois também eu acredito que um dia vou voltar a estar com o meu querido filho e não mais nos separaremos.
Testemunho
Sei que a Ana olha por mim
e está sempre comigo
Carolina Sobrinho
A perda da minha irmã mais velha num acidente de viação, aos 22 anos, mudou completamente a minha vida e a da minha família, mas também a minha vida de fé.
Nunca tinha passado por nenhuma perda de alguém tão próximo e, aos 17 anos, acabei por perceber que a vida na Terra é uma oportunidade para vivermos e sermos felizes. Mas, ao mesmo tempo, é passageira e no momento que Deus quer pode levar-nos para junto d’Ele.
Não foi fácil – e continua a não ser hoje, passados quase quatro anos daquele dia – aceitar que a Ana já não está cá fisicamente para partilhar cada momento comigo e com os que mais amava.
Contudo, é a Fé que tenho e saber que a minha irmã está a olhar por mim, bem junto de Jesus, que me dá força nos momentos mais difíceis – e são muitos, acreditem! É uma alegria especial quando algo de bom me acontece, porque sei que tem um toque não só d’Ele, mas dela também.
A dor e esta perda também me fizeram relativizar muito os problemas e aqueles que achava que eram enormes para uma jovem com a minha idade, agora não são em nada relevantes.
No fundo, a força que tenho, eu sei que me é dada por estas duas fontes tão importantes, Deus e a minha irmã, que me fazem ficar tão feliz em momentos bons e menos triste nos momentos difíceis. Sei que a Ana olha por mim e está sempre comigo, o que torna este processo de luto menos complicado do que seria se sentisse que estava sozinha. Porque tenho a certeza de que não estou, “eles” não deixam!
A lição que retiro de tudo o que me aconteceu é que nós não estamos sozinhos. Deus sabe o que faz e quem tem do seu lado – as melhores pessoas que Lhe dão uma ajudinha a olhar por nós cá em baixo.
O meu conselho para todos é que, nos momentos de desespero ou de escuridão na fé, olhem para o céu, para as estrelas, porque vão sentir aquele aconchego que só cada um sabe que recebe, bem no fundo do coração.
Testemunho
O Pedro foi um
“gentleman” do Espírito
Teresa e Acácio Lopes
Luto. Palavra tabu. Significa dor, partida sem regresso, saudade. Sobretudo porque vivemos numa sociedade egoísta e consumista que investe na eternidade terrena. Também era este o meu estado de alma e da Teresa. Éramos um casal normal, como todos os outros, e jamais nos passava pela mente perder um filho jovem.
O Pedro partiu em Abril de 2015, com 26 anos. Era um filho extraordinário; física e moralmente sadio, humilde por educação e virtude, generoso, indiferente à vaidade, de uma inteligência brilhante. Trabalhava numa multinacional. A sua carreira profissional era potencialmente promissora. O seu namoro era sedutor.
Um ano antes, foi-lhe diagnosticada uma doença grave. Aos pais, a equipa médica informou que a sobrevivência era curtíssima (um ano). Ao Pedro foi dito que o seu estado de saúde era preocupante. Não era preciso acrescentar mais nada para ele perceber o desfecho, tanto mais que a namorada estava a acabar medicina…
Nós olhámos para o Céu, mas este também parecia escuro. Pedimos a Jesus e a Maria que nos desse o privilégio de não perdermos a Fé e ajudasse o Pedro e os pais nestes momentos de tormenta. A oração e o acreditar foram também uma arma.
Porém, sempre acreditámos num possível milagre. Foram momentos muito dolorosos, mas inexplicavelmente tranquilos. Chorámos muito, perguntámos porquê; mas Maria esteve sempre presente e guiou-nos para o essencial. Sempre mantivemos a calma e a dignidade. A oração e a Fé estavam sempre presentes.
O Pedro sempre manteve a sua calma e o seu humor. Num momento de maior dor, perguntei como estava. Respondeu: “o pai parece mais preocupado do que eu”. Na empresa, mantinha o profissionalismo que não dispensava. Tinha ordens superiores de, não podendo ir à empresa, podia trabalhar em casa. Naturalmente, a tristeza acompanhava-o continuamente, mas nunca se revoltou e tudo procurou fazer bem. A mãe relembra a frase que o Pedro sempre mencionou: “Eu sei que Deus não me vai deixar ficar mal”. Maria foi uma Mãe incansável. De facto, o Pedro foi um “gentleman” do Espírito.
A partida aconteceu. O luto. Continuámos a pedir a Deus que tudo fizesse para nos dar força. Utilizando as palavras da bonita canção “O melhor de mim”, de Mariza – “É preciso perder/para depois se ganhar/E mesmo sem ver/Acreditar” –, acreditamos que o Pedro está no Paraíso. Por isso, todos os dias, todos os momentos, sentimos a sua presença e pedimos-Lhe que nos proteja e dê forças para ir em diante. De facto, Ele tem-nos feito a vontade. Choramos, continuaremos a chorar, porque somos humanos e a saudade não passa. Jesus também chorou aquando da morte de Lázaro. Sem dúvida que sem Fé a nossa vida seria um tormento sem fim.
A família e os amigos também foram e continuam a ser um pilar essencial para o nosso equilíbrio. Sem estes activos virtuosos, a nossa inserção social seria complicada. De igual modo, a ocupação e o trabalho são factores de equilíbrio emocional e de vontade de viver. Agradecemos a Deus e a Maria o privilégio de sermos pais do Pedro e, com ele e por ele, a vitória da vida sobre a morte.
Necessidade de educar para a morte
“Só tem medo da morte
quem não viveu bem a vida”
Como noticiámos na edição passada, o médico José Eduardo Pinto da Costa proferiu, no dia 5 de fevereiro, no Seminário de Leiria, uma conferência sobre “O luto ao longo da vida”. Organizada pelo grupo Cáritas Jovem, a sessão permitiu uma abordagem às noções, modelos e possíveis “ferramentas” para a vivência deste momento doloroso da perda de alguém querido.
O clínico frisou que a morte nos coloca perante a quebra de vínculos e o sentimento de perda, mas também de esperança e de ligação a outra dimensão da vida. Nesse sentido, defendeu uma “educação para a morte”, encarando-a como algo natural e que nos obriga a aceitar um “mundo diferente do que desejaríamos que fosse”. Uma correcta vivência do luto, por vezes com necessidade de recurso a acompanhamento médico, ajudará a esse processo de aceitação e superação da dor.
No final, Joaquim Dias, da Rádio Canção Nova, teve uma breve conversa com José Pinto da Costa, que partilhou com os leitores do jornal PRESENTE:
Falou de uma “educação para a morte” e que esta realidade não se deve esconder, mas a tendência actual parece ir em sentido contrário. Que explicação encontra?
Em regra, as pessoas têm medo da morte, se calhar por terem consciência de que não estão a viver bem a vida. Como sublinhou o filósofo inglês Bertrand Russell, “só tem medo da morte quem não viveu bem a vida”. Talvez uma das razões desse medo seja o modo como procuramos prolongar a vida, com uma sucessão de acontecimentos tão rápida no dia a dia, que não há uma consciencialização do momento que passa. Quando pensamos no que estamos a fazer, já foi ontem. Daí a necessidade de uma educação para a morte como fenómeno perfeitamente natural: nascemos e morremos, temos uma situação corporal e material que na sua evolução normal se há-de desagregar.
Depois, há o processo “para além da morte”, já numa perspectiva magico-filosófica e religiosa. Na multiplicidade de religiões que existem no mundo, mais de 80% da população acredita na vida pós-morte. Portanto, toda a vida deve ser desenvolvida a pensar na morte, mas como “passamento”, como passagem para outra vida.
Referiu que o luto, caso não esteja resolvido em dois anos, é patológico. Como ultrapassar essa patologia?
Há uma tentativa de recuperação, de apoio psicológico e psicoterapêutico, tentando resolver o que está na base dessa patologia. Muitas vezes, confrontando a pessoa com a realidade. Na pior das hipóteses, transformando-o num luto crónico. Hoje já há cemitérios com um café ou bar, para que as pessoas que visitam os seus defuntos possam experimentar um momento de convívio e de integração social no contexto da morte. É um pouco à semelhança dos grupos de “alcoólicos anónimos”, permitindo às pessoas desabafar e partilhar o seu sentimento umas com as outras, o que que é altamente positivo.
Uma mensagem de síntese…
Vivamos bem a vida, para não termos medo da morte!