“Suscitar-lhes-ei um profeta como tu, dentre os seus irmãos; porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar” (Deut 18, 18).
De Nazaré a Cafarnaum, tudo quanto, do ponto vista da escrita, nos diz São Marcos de Jesus, pode sintetizar-se em três verbos: caminhar, pregar e maravilhar.
Verbos cujo significado procuro aproximar da respectiva etimologia, para torná-los mais funcionais, mais adequados ao que quero dizer com eles. Peço perdão a quem, assumindo as suas razões, achar que estou a manipular a linguagem; mas não conheço outro meio de escapar às ciladas que a denotação produzida pelo uso das armas aos ouvintes, atraiçoando muitas vezes os falantes.
CAMINHAR: por estranho que pareça, este verbo, conservado em todas as línguas românicas, segundo a respectiva evolução fonética, não deriva do latim — “caminus” —, que significa fundamentalmente, “forno”, “forja”; não deriva do latim, mas de um suposto *”camminus”, da língua celta, que se conservou na fala popular, acabando por se cruzar, quanto ao significado, com “caminus”, muito usado, sobretudo no a AT e na linguagem eclesiástica, com sentido tanto negativo como positivo.
Em qualquer dos casos, ainda que enfraquecido pelos contextos em que era usado, o significado original da palavra latina, contaminou o termo de origem celta, com a ideia de algo que reclama diligência, esforço para conseguir um objectivo.
PREGAR.: também de origem profana, significava primitivamente, mesmo na linguagem eclesiástica, dizer com solenidade, proclamar. Acção muito mais solene do que o que nas últimas décadas se passou a exprimir quando, na liturgia sacramental, se começou a dizer “proclamar”, em vez de “fazer uma leitura”.
MARAVILHAR: aqui dir-se-ia que a etimologia pode tornar um pouco mais difícil entender o que quero exprimir, já que no português actual se trata, de um verbo intransitivo, a reclamar o seu objecto indirecto. Formado a partir de “maravilha” (mirabilis>mirabilia<mraculum>milagre), algo que é digno de ser observado, pelo sinal que comporta consigo.
Mas deixemo-nos de etimologias e digamos abertamente o que, nas leituras deste domingo, me enche o espírito de alegria e aparece como um novo impulso para, como outro Cristo, tornar real na minha vida a presença do reino messiânico.
A promessa tão solene, guardada pela tradição hebraica, segundo o livro do Deuteronómio, está cumprida:
O profeta que dispensa os homens dos medos do Sinai, está aí: já não fala em nome de outro, não manda a outro que percorra os caminhos dos homens em busca da Terra da Promessa; e não precisa de pedir auxílio a outro para realizar as acções que significam e produzem a salvação.
O profeta, que se continua no povo por ele renovado, aumentado, quebrando todo o tipo de fronteiras, evitando a ilusão dos entusiasmos passageiros e recusando dialogar com o inimigo de sempre, cada vez mais intrometido, cada vez mais mascarado.
Nós somos este povo, num certo sentido, somos também este profeta.
E temos, em qualquer dos casos, se queremos, como devemos querer, sinalizar que o reino já chegou, que as promessa do AT se realizam com a nossa adesão ao Novo, de identificar-nos cada vez mais com Jesus Cristo.
Cito um parágrafo do Vaticano II, que fala da união de todos os baptizados, na Igreja de Cristo:
“Os apóstolos e mártires de Cristo que, derramando o próprio sangue, deram o supremo testemunho de fé e de caridade, sempre a Igreja acreditou estarem mais ligados connosco em Cristo, os venerou com particular afecto, juntamente com a Bem-aventurada Virgem Maria e os santos Anjos e implorou o auxílio da sua intercessão. Aos quais bem depressa foram associados outros, que mais de perto imitaram a virgindade e pobreza de Cristo e, finalmente, outros, cuja perfeição nas virtudes cristãs e os carismas divinos recomendavam à piedosa devoção dos fiéis.
“Mais ligados connosco…” (Vaticano II, LG. 50).
Isso mesmo! Os santos de todos os tempos, de todas as condições sociais, homens e mulheres, que conseguiram e lutam ainda hoje por conseguir pôr Deus no centro e no ápice de todos os seus pensamentos, projectos e acções.
O trecho de São Paulo aos Coríntios que lemos hoje, ao contrário do que afirmam certas pessoas, não é uma utopia moral: eu diria tratar-se de um aviso solene a todos, casados e solteiros, que se os cuidados da vida escondem a primazia de Deus, nem o casamento, nem a viuvez, nem a virgindade, nem o celibato, serão alguma vez sinal vivo da chegada do reino.
E não há “consagração” que os salve.
Esta a verdadeira novidade da doutrina do Cristo.