No início da tarde, com a desmobilização do corpo, a mente tem mais dificuldade pela lentidão dos seus instrumentos, favorecida por um sol tímido, mais quente do que luminoso: neste início de tarde, sem renunciar a nada do que Deus me oferece em cada momento, procuro uma distracção que não seja alienante, mas se torne espaço para a conciliação do físico com a mente e o espírito.
Felizmente consigo um programa televisivo que não faz qualquer cedência ao mercado das loucuras que a cada momento nos envolvem, explorando de forma cruel as fomes de um mundo perdido em pastagens que não fazem mais do que alimentar as fomes de fingem matar.
Celebram-se os duzentos anos da estreia da Nona Sinfonia, que os especialistas designam por Sinfonia Coral; a tradição consagrou com o nome de Hino da Alegria.
Afinal, parece que este seria antes o nome do poema que serviu de base ao compositor, que se me fixou na memória da juventude, não só por ter sido o primeiro disco que comprei, gastando todo o dinheiro que tinha então no bolso – era estudante e os discos muito caros – mas também pela história que me contaram, não sei se verdadeira, segundo a qual o compositor teria dirigido a primeira execução da sua obra, já completamente privado da capacidade auditiva.
E disseram-me ainda que se trata de um poema medíocre. O que não tenho competência para comentar; talvez seja uma vantagem, porque assim aproveito melhor a beleza imorredoura da música.
Hino da Alegria, duzentos anos depois!
Que graça imensa da Bondade de Deus! Sem renunciar a nada do que é humano, do descanso ao prazer estético, louvando-O pela generosidade da Criação, repetir, na intimidade dos meus aposentos, aquela oblação, sacrifício perfeito, que fiz com toda a igreja, no altar da Eucaristia, a minha quotidiana recriação do Calvário.
Depois de sentir e emocionar-me com tudo o que esta beleza me ajuda a contemplar, salta-me à mente a pergunta espantada do salmista
“Porque se amotinam as nações, e os povos fazem planos insensatos? Revoltam-se os reis da terra, os príncipes conspiram juntos contra o SENHOR e contra o seu ungido:
«Quebremos as algemas e atiremos para longe de nós o seu jugo!»
Aquele que habita nos céus sorri; o Senhor escarnece deles” (Sl 2, 1-4).
“Escarnece deles”, modo de falar próprio do Antigo Testamento, onde nem sempre é clara a imagem que se transmite de YHWH: porque, de facto, Deus não escarnece de ninguém.
No entanto, não posso descurar o tom e as palavras com que Jesus, no longo discurso de despedida, exorta os discípulos a não ficarem tristes por deixarem de o ver:
«Agora vou para Aquele que Me enviou e nenhum de vós Me pergunta: ‘Para onde vais?’. Mas por Eu vos ter dito estas coisas, o vosso coração encheu-se de tristeza. No entanto, Eu digo-vos a verdade: É do vosso interesse que Eu vá.
Se Eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas se Eu for, Eu vo-l’O enviarei. Quando Ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do julgamento: do pecado, porque não acreditam em Mim; da justiça, porque vou para o Pai e não Me vereis mais; do julgamento, porque o príncipe deste mundo já está condenado»” (Jo 16, 5-11).
Tradução oficial que não contesto; mas que me permito arrancar a uma possível representação judicial, que pode reduzir o significado da profecia do Mestre, muito menos temporal e mais profundo do que aparece nos vocábulos portugueses, segundo o uso que deles fazemos actualmente.
Afinal, que fará o Paráclito, enviado pelo Filho, da parte do Pai?
Mostrará como é profunda a humilhação do mundo, mergulhado no pecado da incredulidade, que lhe tirará o visão do que só se descobre pela fé, transformando em injustiça, tudo quanto legisla sem fundamento divino.
É assim o mundo que busca os seus fundamentos em razões e motivos que destruíram a harmonia original; e assim continuará, com a mesma destruição, até à consumação da história: momento em que, pelo tradicionalmente chamado Juízo Final, ficará claro que só Deus é a Verdade e o resto ausência d’Ele, cobrindo o seu nada absoluto com todo o tipo de máscaras, que não terão mai aparências para se apoiar.
Daí a solenidade da expressão de Jesus, tão difícil de traduzir na nossa linguagem actual, talvez demasiado dependente de figuras jurídicas, também limitadas pelo mau funcionamento de muitos tribunais, civis e eclesiásticos.
O poder deste mundo está julgado!
O poder é mais que um príncipe: e o seu julgamento, em vez de uma sentença judicial, uma classificação irreparável.
Mas nada disto se percebe sem a abertura ao dom do Espírito, para termos o Qual, o Filho morreu, ressuscitou e se escondeu.
“É do vosso interesse que Eu vá.
Se Eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas se Eu for, Eu vo-l’O enviarei”.