Introdução
Seguindo o apelo da Igreja, reunimo-nos neste dia para celebrar a solenidade do Coração de Jesus, com a qual se conclui o ciclo das celebrações pós-pascais – depois do Pentecostes: A SSª Trindade, o Corpo e Sangue de Jesus e o Coração de Jesus, que concentra o nosso olhar sobre a razão de ser do agir de Deus: o seu amor salvador revelado e atuado na vida, morte e ressurreição de Jesus.
Este amor continua vivo na Igreja, através de cada discípulo e discípula que adere ao Coração humano e divino de Jesus e por Ele se deixa modelar. De um modo especial, está presente no ministério ordenado para o serviço da Igreja. Por isso, nesta solenidade se celebra uma jornada especial de oração pela santificação dos sacerdotes, que aqui também nos reúne.
Além disso, a nossa Diocese colocou também neste dia a celebração dos jubileus de ordenação dos presbíteros que estão ao seu serviço. Este ano, temos o gosto de celebrar juntos o dom concedido aos seguintes oito irmãos para o serviço do Povo de Deus na nossa Igreja de Leiria-Fátima:
- D. Serafim Ferreira e Silva 70 anos Presbítero e 45 anos Bispo
- P. Elias Ferreira da Costa 70 anos Presbítero
- P. Agostinho de Sousa Matias 60 anos Presbítero
- P. José Mirante Carreira Frazão 50 anos Presbítero
- P. João Nuno Pina Pedro 25 anos Presbítero
- P. Manuel Vítor Pina Pedro 25 anos Presbítero
- P. José Henrique D. Pedrosa 25 anos Presbítero
- P. Orlandino Barbeiro Bom 25 anos Presbítero
Com eles, damos graças a Deus pelo dom e pela escolha que lhes dirigiu, agradecemos o serviço que têm prestado à Igreja, concretamente na nossa Diocese de Leiria-Fátima e pedimos que continue a assisti-los com o seu Espírito, para puderem continuar com fidelidade e alegria a testemunhar o seu amor, no serviço ao seu Povo.
E, também com eles pedimos perdão das nossas imperfeições e falta de correspondência aos dons recebidos, implorando a Sua misericórdia e o dom do Seu Espírito, para celebrar dignamente esta Eucaristia.
Homilia
As leituras que proclamamos nesta solenidade deixam-nos uma mensagem e um caminho fundamentais para a vida pessoal, para o nosso relacionamento com Deus e com os irmãos/ãs e para a nossa missão, na Igreja e no mundo, a partir do Coração de Jesus.
Na linguagem da Bíblia, falar de Coração significa falar da interioridade de uma pessoa, da verdade daquilo que é, da essência do seu ser. Muitas dessas expressões entraram na nossa língua: “Falar de coração”; “falar ao coração”; “ter bom coração”. Na Bíblia, o coração não é a sede dos sentimentos, do amor. Falar desses sentimentos usa-se a simbologia de “entranhas”, como no texto que hoje escutámos: “ter entranhas de misericórdia, de compaixão, de repulsa. O coração, na linguagem bíblica denota sobretudo a memória grata ou adversa, o pensamento, a ponderação e a decisão.
Sublinho três caraterísticas fundamentais, provenientes das leituras que escutámos, para exprimir o que significa falar de “o Coração de Jesus”.
1. O amor carinhoso e paterno e carinhoso de Deus (Os 11,1-9)
O profeta Oseias, através da experiência dolorosa de um amor apaixonado pela própria esposa que lhe é infiel, e da situação paradoxal de filhos queridos, mas igualmente ingratos e rebeldes, é levado a entender, na própria carne, a grandeza do amor de Deus para com o seu povo, exprimindo-o com duas imagens: o amor esponsal para com a esposa e o amor paternal, para além de toda a falta de correspondência.
Na leitura de hoje, o profeta apresenta-nos a segunda destas imagens, falando de Deus que trata o seu povo Israel como seu filho querido, “com laços humanos, com laços de carinho”. As memórias da libertação do Egito, da travessia do deserto e do dom da terra, são vistas pelo profeta à luz da atitude de um pai que acarinha, sustenta, ensina a caminhar e provê os seus filhos e filhas de tudo o que é necessário à vida, ao crescimento e à felicidade.
Desta imagem faz parte também a incompreensão, a rebeldia e ingratidão dos filhos, que poderiam ser ocasião para castigo, repúdio e exclusão, pois provocam dor, amargura e ira no coração de qualquer pai humano. O profeta, que fez bem a experiência destes sentimentos na sua casa e na sua relação com a esposa e os filhos, entende o coração de Deus: “O meu coração agita-se dentro de Mim, estremecem as minhas entranhas”. Mas o Coração de Deus é bem mais compassivo e misericordioso do que o de qualquer pai humano: “Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti, e não me deixo levar pela ira.”
Oseias exprime, assim, de um modo novo e determinante a santidade de Deus, como distinta e bem acima dos sentimentos humanos. Um coração que não exclui ninguém, nem exerce violência ou morte, porque permanece fiel ao seu ser um Deus “misericordioso e benevolente, lento para a ira e cheio de amor e de fidelidade” (Ex 34,6).
Esta é a primeira palavra que alimenta e modela, hoje, o nosso coração, para o tornar mais parecido com aquilo que o Profeta Oseias sentiu de Deus. Ele está constantemente ao nosso lado e acolhe-nos, guia-nos e refaz-nos, mesmo quando a nossa incompreensão, infidelidade e rebeldia nos afastam dele. Ao mesmo tempo, modela igualmente a nossa atitude e os nossos relacionamentos, formando um coração sacerdotal à imagem de Jesus, sensível para sentir a dor do sofrimento, do mal e da violência, mas igualmente atento e misericordioso para reparar o que está quebrado e cuidar do que está ferido.
No caminho sinodal que estamos a percorrer em toda a Igreja, tudo começa com esta atitude de Deus como Pai. No Batismo, Ele dá-nos o seu Espírito, isto é, a sua vida, que nos torna filhos e filhas queridos. Olha-nos com ternura e amor fiel e eterno de Pai. A cada um/a dos que são batizados, Deus diz, como a Jesus no Jordão: “tu és o meu filho / minha filha querido/a”.
2. O amor até ao dom da vida, que gera reconciliação (Jo 19,31-37)
A segunda caraterística do coração sacerdotal provém do texto do Evangelho e explicita bem até que ponto Deus vem ao encontro do ser humano débil e pecador, respondendo à incompreensão, à violência e à corrupção, e assumindo toda a negatividade humana, em atitude de absoluto amor e dom da vida. Na lança que trespassa o peito de Jesus acabado de morrer na cuz, o discípulo João contempla a revelação do amor que habitava esse Coração humano, morada do Espírito de Deus, até à sua última palpitação: a fidelidade ao projeto salvador de Deus e a comunicação da sua vida (do Seu Espírito) à humanidade.
O golpe da lança, culmina toda a lógica de ódio, violência e morte de que a humanidade é capaz. Mas, ao mesmo tempo, faz derramar sobre a mãe de Jesus e o grupo de discípulos/as, aos pés da cruz, o dom do amor, da reconciliação e da vida, no sangue e na água, vistos como o dom do Espírito de Deus. É aos pés da cruz e na contemplação de João, que entendemos o “Coração de Jesus”, que podemos, também nós, entender o nosso ser e missão como cristãos e o do dom do sacerdócio.
Somos chamados, em primeiro lugar, a contemplar e integrar, no nosso viver, julgar e agir, o anúncio dos profetas e de toda a Palavra de Deus, mas sobretudo a revelação humana do Seu amor, nos gestos e nas atitudes de Jesus. Esse é o modo de escutar o seu convite: “aprendei de mim que sou manso e humilde de Coração”. Ele é nosso modelo, nosso Mestre e nossa esperança.
Em segundo lugar, somos convidados a entender, na nossa forma de atuar, que é apenas através do Espírito do Senhor, revelado na cruz, que a nossa missão pode dar fruto. Isso nos leva à fidelidade àquele que nos chama e a fazer da nossa vida um dom de serviço generoso e desprendido àqueles a quem somos enviados, como diz S. Paulo: “o amor de Cristo nos compele, ao pensar que um só morreu por todos e, portanto, todos morreram. Ele morreu por todos, a fim de que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou.” (2Co 5,14s).
É nesta atitude que nos unimos a Jesus, sendo presença sacramental dos mistérios que celebramos, por obra do Espírito, no batismo que oferecemos em nome e pelo Espírito de Jesus e nos outros sacramentos que passam pelo nosso ministério. Este serviço há de ser vivido com grande alegria, mas igualmente com grande humildade e constante atitude de dom e de serviço, para ser autêntico. A cruz de Jesus e o seu peito trespassado são fonte constante de inspiração e de identificação, para que possamos dizer como Paulo: “Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2,19s).
3. Hão de olhar para aquele que trespassaram (Jo 19,37)
O Evangelho que proclamámos dá-nos ainda um último e importante sinal para entender o nosso coração de filhos e filhas, à imagem do Coração do Senhor Jesus. Para São João, o peito trespassado de Jesus pela lança que revela o seu Coração, isto é, a verdade do seu ser, das suas atitudes, como homem e como Filho de Deus, que traz a salvação pelo dom do seu Espírito. E confirma esta visão culminante da morte de Jesus com dois testemunhos da Escritura que aludem à libertação do Egito pelo sangue do cordeiro (cf. Ex 12,46; Nm 9,12) e à atitude do povo que rejeita o enviado de Deus e lhe dá a morte, mas acaba por reconhecer o seu erro e o seu pecado e faz luto por aquele que trespassou: “derramarei sobre a casa de David e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de benevolência e de súplica. Eles contemplarão aquele a quem traspassaram; chorarão por ele como se chora um filho único e lamentá-lo-ão como se lamenta um primogénito” (Zc 12,10).
Olhar para aquele que foi trespassado pela nossa injustiça, violência, desprezo e exclusão e reconhecê-lo na sua dignidade e na sua missão como o enviado de Deus, o Salvador e o dador da vida do Pai do Céu, é o caminho a que nos leva o batismo, à radical transformação da vida e ao compromisso de configurar com Ele a nossa vida e a nossa missão no mundo. É identificar o mal que existe em nós e no mundo e aceitar a palavra de Jesus que nos diz: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito” (Mt 11,28-29). É esta configuração com Cristo, enviado do Pai, que nos torna membros da Igreja e construtores de um mundo novo. Levantemos também nós os olhos para Aquele que foi trespassado pelo pecado da humanidade e peçamos diariamente: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei o meu coração semelhante ao vosso”