Quase dez anos depois do conclave que o elegeu, o Papa Francisco reuniu, em Roma, nos finais de Agosto e durante dois dias, os cardeais de todo o mundo para lhes apresentar as reformas em curso no governo central da Igreja. De um total de 226 cardeais, participaram quase duas centenas. Embora com algumas resistências, a grande maioria dos presentes acolheu bem a nova constituição para a Cúria Romana, a quarta desde o século XVI.
No discurso de abertura, Francisco referiu que tinha tentado realizar as reformas solicitadas antes da sua eleição e encorajou os seus irmãos cardeais a falar livremente. A maior parte da discussão centrou-se na nova constituição Praedicate Evangelium “Pregai o Evangelho” (cf Mt 16,15), elaborada durante nove anos em diálogo com os bispos de todo o Mundo, e que tinha entrado em vigor no Domingo de Pentecostes (05.06.2022).
Segundo Francisco, a nova Constituição procura concretizar o espírito do II Concílio do Vaticano, melhorando o serviço da Cúria às Igrejas locais e abrindo espaço para lideranças laicais nas estruturas centrais da Santa Sé. Na prática, o que se pretende é que a Cúria Romana viva menos em função de si mesma e mais centrada na missão evangelizadora da Igreja – como o indica o nome da Constituição -, menos predisposta a controlar e mais disposta a ouvir e a acompanhar. Subjacente à sua elaboração está um novo espírito que promove o serviço em vez do poder.
Mas para que esta perspectiva possa crescer, era e é necessário enfrentar a cultura do carreirismo, presente nas estruturas eclesiásticas. Por isso, as novas regras definem mandatos de cinco anos, renováveis uma vez, e depois, por princípio, determinam o regresso dos colaboradores às suas dioceses de origem.
Outra das novidades da Constituição, a mais inovadora, prende-se com o facto de qualquer fiel – homem ou mulher – poder liderar departamentos da Cúria Romana. A Constituição de João Paulo II, de 1988, quatrocentos anos depois da primeira, reservava o exercício do poder de governo na Igreja para os que recebem o sacramento da Ordem.
Por detrás desta orientação estão questões teológicas, nomeadamente a relação entre o poder do sacramento da Ordem e o poder de governo na Igreja. Contudo, segundo o cardeal Gianfranco Ghirlanda, teólogo e especialista em direito canónico, numa comunicação por ocasião da publicação da constituição Praedicate Evangelium, o poder de governo na Igreja não vem da ordenação, mas da “missão canónica”, conferida a alguém pela autoridade competente, isto é, o Papa.
Também o cardeal Marc Ouellet, Prefeito da Congregação dos Bispos, num artigo publicado em Julho no Observatório Romano, confirmava esta perspectiva, apontando o precedente histórico da autoridade exercida pelas abadessas e outras superioras gerais das ordens religiosas femininas, onde é claro que o poder de governo está separado da ordenação.
Mas Ouellet vai mais longe ao dizer que é necessário superar a perspectiva jurídica, circunscrita à missão canónica, e procurar o seu fundamento nos dons do Espírito Santo. Ou seja, qualquer missão canónica deve ser precedida por um tempo de “discernimento de carismas” para que se torne evidente a relação entre os dons de Deus a cada fiel e a missão confiada pela autoridade competente a um dos seus membros para o bem de todo o Povo Santo de Deus.
Deste modo e no contexto do processo sinodal em curso, Francisco põe em prática o que tinha escrito em 2013, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium n. 32, ao afirmar que “também o Papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam de ouvir o apelo a uma conversão pastoral”.