“…porque não havia lugar para eles na hospedaria.”
Quando lemos esta frase, sobejamente conhecida, surge em nós de imediato um sentimento de angústia causada pela imagem que a ela associamos de um episódio aflitivo: um casal jovem, chegado de uma longa viagem, a esposa grávida em fim de tempo, sem sítio onde possam ficar e sobretudo onde ela possa dar à luz.
Causa-nos também perplexidade o facto de, nesse cenário que mentalmente construímos, não haver aparentemente ninguém que se compadeça, que dê guarida, parecendo até que muitos lhes fecham a porta.
Além da angústia e da perplexidade, não deixa também de surgir em nós um fugaz sentimento de revolta perante a dureza de coração de tantas pessoas, nesse tempo, como agora.
Sabemos o final do episódio, conhecemos o seu significado e o seu sentido, em que Deus feito homem nasce de modo humilde e simples para Se revelar aos humildes e aos simples.
A imagem deste cenário tem sido ilustrada ao longo dos tempos através de várias formas de arte, por vezes com algum dramatismo, inclusive no cinema.
Contudo, se pensarmos um pouco na forma como a construímos mentalmente e tentarmos enquadrá-la no contexto cultural e social da época, bem como no contexto histórico e bíblico, parece-nos que há coisas que não batem certo.
Efectivamente, há perguntas que nos ocorrem e que ficam por esclarecer, dúvidas que sentimos e que gostaríamos de dissipar, questões que necessitam de ser aprofundadas para podermos também aprofundar a nossa fé, dar-lhe consistência e solidez, iluminá-la com nova luz.
Uma das perguntas que ocorre é: por que é que José foi tão imprudente ao ponto de deixar chegar ao fim a gravidez de Maria para fazer uma viagem tão longa?
Além disso, como se explica que, numa sociedade onde a hospitalidade é coisa sagrada, não tivesse havido consideração por estes viajantes e ninguém os tivesse acolhido em sua casa?
Estas duas perguntas já são suficientes para nos ajudar a perceber que a imagem que foi sendo construída nas nossas mentes no que toca ao episódio de Belém foi também sendo acrescentada, ao longo do tempo, com elementos que dificultam a compreensão para a sua transcendência, profundidade e amplitude.
Não tenhamos receio de nos inquietar com estas perguntas e procuremos, então, respostas para elas.
A primeira e fundamental fonte para obtermos as respostas tem de ser a Sagrada Escritura.
S. Lucas e S. Mateus foram os únicos evangelistas que afloraram o nascimento de Jesus, com o primeiro a fornecer maior número de detalhes. Porquê estes e não os outros dois, é outra pergunta que nos surge, mas lá chegaremos.
Na passagem do Evangelho proclamado na Missa da noite de Natal escutámos: “Enquanto ali se encontravam, chegou o dia de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito.”
Na tradução da Difusora Bíblica editada pelos Franciscanos Capuchinhos podemos ler: “E, quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito…” (Lc 2, 6.7a)
Na versão dos monges de Maredsous (Bélgica) traduzida pelo Centro Bíblico Católico (edição Claretiana de 1975) lemos: “Estando eles ali, completaram-se os dias dela.” (Lc 2, 6)
Depressa percebemos que em lado nenhum encontramos a expressão “quando eles ali chegaram”, o que é já um pormenor significativo.
De facto, existe uma diferença subtil, mas importante, entre dizer “quando eles ali chegaram” e “enquanto ali se encontravam”, “quando eles ali se encontravam” ou “estando eles ali”.
Significa isto que, muito provavelmente, a Sagrada Família já se encontrava instalada em Belém, que José tinha sido um pai previdente, cuidador do bem-estar de Maria e do Menino, que tinha feito a viagem com tempo, que tinha correspondido à missão que Deus lhe confiara. Tinha preparado tudo para cumprir a ordem do recenseamento promulgada pelo imperador César Augusto, cuidando também da sua família. Na sua humildade, no seu escondimento, foi um modelo a contemplar e a procurar imitar.
Continuemos a procurar na Sagrada Escritura respostas para as nossas perguntas.
Na Missa da noite de Natal escutámos também: “José subiu também da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e da descendência de David…”
Na tradução dos capuchinhos podemos ler: “Também José, deixando a cidade de Nazaré, na Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e da linhagem de David…”
Na edição Claretiana encontramos: “Também José subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, porque era da casa e família de David…”
Nas culturas do oriente médio as relações familiares mantêm-se fortes, mesmo que os seus membros não se conheçam pessoalmente, e a hospitalidade e o acolhimento são regras de ouro. Com base neste conhecimento sociológico não é difícil imaginar que José terá sido bem acolhido em Belém, que os seus familiares lhes terão proporcionado condições para lá se instalarem e que rapidamente se terão integrado na comunidade, continuando José a exercer a sua profissão de carpinteiro, sempre necessária em qualquer sítio. Começa assim a ganhar outra luz a expressão “Enquanto ali se encontravam”. Ficamos mais tranquilos quando percebemos que a Sagrada Família, certamente, não terá andado de noite, aflita, à procura de um local onde se abrigar.
Um outro fator que sempre nos perturbou foi o facto imaginarmos que era Inverno e ser tempo frio, com toda a carga emocional que isso acarreta.
De novo temos de ir à Sagrada Escritura para encontrar respostas, ainda que indiretas.
Na Missa da noite de Natal ouvimos proclamar: “Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos.”
A edição da Difusora Bíblica apresenta-nos: “Na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite.”
A edição Claretiana escreve: “Havia nos arredores uns pastores, que vigiavam e guardavam o seu rebanho nos campos durante as vigílias da noite.”
Depressa percebemos que, se os pastores daquela região dormiam nos campos durante a noite é porque o tempo não era rigoroso nem frio. De facto, qual é a altura do ano em que, com toda a certeza, ninguém dorme ao relento? Não é, certamente, o Inverno. Os pastores sabem isso perfeitamente.
De novo, temos a imagem que foi sendo criada nas nossas mentes e que aponta para os rigores do Inverno associados ao nascimento na manjedoura. Mas, objectivamente, desconhece-se a altura do ano em que isso aconteceu.
Como é sabido, o Natal começou a ser festejado a partir do século IV com a adaptação da festa pagã do solstício de Inverno, em que os dias começam a ser maiores. O Evangelho não tem o intuito de ser uma biografia. A sua finalidade é diferente.
Continuando a centrar-nos no nascimento de Jesus, começamos a perceber uma imagem com outros contornos, com outras tonalidades, mas o essencial permanece inalterado.
Façamos agora outra pergunta: o Evangelho segundo S. Marcos foi o primeiro a ser escrito e não faz qualquer referência ao nascimento de Jesus. A esse respeito está completamente em branco. O Evangelho segundo S. João foi o último a ser escrito e também não faz qualquer referência ao nascimento de Jesus. Pura e simplesmente o ignora. Apenas os Evangelhos segundo S. Mateus e segundo S. Lucas o fazem. Porquê? Não era importante? Porque é que aqueles nem sequer o afloram? Andariam distraídos? Muitas pessoas gostariam de saber mais pormenores sobre o nascimento e a infância. Para eles, (Marcos e João) afinal, o que é que era importante? As suas atenções seriam diferentes das de Mateus e de Lucas?
De novo, para obtermos respostas, vamos recorrer à Sagrada Escritura e ler o primeiro versículo de S. Marcos:
“Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.”
Obtemos logo a resposta. O fundamental para S. Marcos é a afirmação de que Jesus Cristo é Filho de Deus. Tudo o resto gira à volta deste eixo, que vai culminar na expressão do centurião romano junto à Cruz: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!”
Vamos ler também o início do Evangelho segundo S. João para perceber o que é que é fundamental para este evangelista.
“No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus.” (Jo 1, 1)
Um pouco adiante: “E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco.” (Jo 1, 14)
Percebemos, com este Prólogo de S. João, o que é que para ele é fundamental: o Verbo de Deus existiu desde sempre em Deus e fez-Se homem em Jesus Cristo.
Também para S. João, tudo vai girar em torno deste eixo.
S. Mateus e S. Lucas têm a mesmíssima preocupação: declarar que Jesus Cristo é Filho de Deus, e homem como nós.
Então, porque é que abordaram, além do nascimento de Jesus, a sua concepção no seio virginal de Maria, a par de outras referências?
As comunidades cristãs no início sempre proclamaram esta verdade da Fé: Jesus Cristo é Filho de Deus feito homem como nós. Mas, muito cedo, surgiu uma perspectiva de que isso teria acontecido somente a partir do baptismo de Jesus e não antes, até porque o Evangelho segundo S. Marcos no versículo 2 evoca o profeta Isaías e passa de imediato para a Teofania no rio Jordão (a manifestação trinitária da voz que se ouve e do Espírito que desce sobre Jesus).
A razão para a inclusão feita por Mateus e Lucas é simples: acrescentaram na sua intenção o desejo de clarificar que Jesus é Filho de Deus a partir do momento da sua concepção e não somente a partir do baptismo.
Mateus salienta isso através da descrição da linhagem de David e do sonho pelo qual o Anjo de Deus revela a José que “o que ela concebeu é obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20b) Não se alonga em tantos pormenores como Lucas porque escreve para comunidades de origem judaica, para quem a linhagem sucessória era importante e a figura jurídica paterna a que prevalecia.
Lucas tem o mesmo objectivo, escrevendo para comunidades cristãs de origem pagã, com a sua mentalidade e cultura próprias baseadas na mitologia grega. Alonga-se em mais detalhes para ajudar a compreender claramente as diferenças entre a incarnação do Verbo de Deus e os mitos das divindades gregas e romanas. Esta preocupação de Lucas aparece já na forma como ele começa o Evangelho, usando uma introdução próxima da argumentação filosófica greco-romana: “Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos factos (…) resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente (…), expô-los a ti por escrito (…) a fim de reconheceres a solidez da doutrina.”
Resumindo: a preocupação de todos os evangelistas é só uma: afirmar que Jesus Cristo é Filho de Deus feito homem, que morreu na cruz e ressuscitou para nossa redenção.
A descrição do nascimento de Jesus tem de ser integrada nesta finalidade, purificada de aspectos romanceados que ofuscam o essencial.
Resta uma pergunta, de entre as que foram feitas: porque é que não havia lugar para eles na hospedaria?
Mais uma vez, vamos à Sagrada Escritura.
Na missa de Natal escutávamos: “Envolveu-O em panos e recostou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.”
Na tradução dos monges de Maredsous encontramos: “E deu à luz seu filho primogénito e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria”.
A edição dos Capuchinhos traduz deste modo o versículo 7: “…e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria.”
Esta mesma edição da Difusora Bíblica remete-nos para uma nota de rodapé pertinente, onde se lê, entre outras informações: “Hospedaria: O termo grego pode designar uma sala (22, 11), uma área de repouso das caravanas ou uma habitação (Mt 2, 11). A tradição da “gruta” é do séc. II.”
Sendo assim, a “hospedaria” não é necessariamente uma estalagem, uma albergaria. Pode ser uma divisão da casa com determinadas funções.
O biblista argentino Ariel Álvarez Valdés, num artigo publicado na revista “Bíblica” em 2004, aprofunda e explica melhor a importância deste pormenor para a compreensão do essencial do Evangelho de Jesus Cristo.
No seu artigo, explica-nos que a palavra original para “hospedaria” no texto grego de S. Lucas é “katályma”. Refere também que esta palavra (“katályma”) aparece de novo em Lc 22, 11 (versículo indicado na nota de rodapé da edição da Difusora Bíblica, acima citada), cujo texto é o seguinte:
“…e dizei ao dono da casa: ‘O Mestre manda dizer-te: onde é a sala (“katályma”), em que hei-de comer a ceia pascal com os meus discípulos?’”
Não deixa de ter significado profundo o facto de S. Lucas associar com a mesma palavra o local do nascimento de Jesus e o local da instituição da Eucaristia. São riquezas muito significativas no original mas que se perdem quase sempre numa tradução.
Contudo, S. Lucas vai mais longe e, no original grego, a parábola do bom samaritano utiliza uma outra palavra que, por via indirecta, nos confirma o sentido que ele quis estabelecer quando escreveu.
Podemos ler em Lc 10, 34,: “Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele.”
Diz-nos Ariel Valdés que a palavra “estalagem”, no original grego não é “katályma”, mas sim “pandogéion”. Segundo este biblista, estas opções de S. Lucas confirmam a ideia de que Jesus terá nascido numa divisão da casa onde a Sagrada Famíla já morava, divisão essa destinada ao período de quarentena das mulheres parturientes (conforme a tradição da lei de Moisés), bem como ao acolhimento e acomodação de familiares ou amigos chegados de viagem, onde eles se hospedavam (“hospedaria”).
Sendo assim, muito provavelmente a Sagrada Família cedeu a “katályma”/hospedaria a pessoas que dela precisavam e, num gesto de humildade, serviço ao próximo e amor desinteressado acomodaram-se noutro local que José preparou para que Maria desse à luz a Luz do mundo. Num gesto de humildade, serviço ao próximo e amor desinteressado que marcará a vida e a missão de Jesus, percebemos que o Presépio é já sinal completo dessa missão, abraçada e vivida pela Sagrada Família.
Mergulharmos neste infinito amor de Deus expresso no Verbo incarnado, Deus feito homem, é tarefa contínua e inesgotável para nos enriquecermos e que nunca deixa de nos espantar, tal como aconteceu aos pastores a quem foi anunciada a notícia em primeira mão pelos Anjos, sabendo nós que Jesus veio ao mundo para preparar para nós um lugar na Sua hospedaria:
“Não se perturbe o vosso coração. Credes em Deus; crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, como teria dito Eu que vos vou preparar um lugar? E quando Eu tiver ido e vos tiver preparado lugar, virei novamente e hei-de levar-vos para junto de mim, a fim de que, onde Eu estou, vós estejais também.” (Jo 14, 1-3)